terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Gato do Rabino (Le Chat du Rabbin)


O diretor Joann Sfar adaptou o roteiro baseado em sua própria obra literária, apresentando em animação o gato sem nome, que passa a falar após comer o papagaio de seu dono, o rabino Sfar.

Essa é apenas uma das metáforas intrigantes que o filme apresenta. Com muito humor vemos o gato que fala, lê, questiona e em meio a tudo isso é apaixonado por Zlabya, a filha do rabino. O que dá ritmo e aventuras ao filme é a viagem que uma caravana, que inclui o rabino e seu gato, terá de fazer, cruzando a África muçulmana a caminho de Jerusalém – na década de 20, portanto antes da criação de Israel.

São curiosos os embates religiosos que surgem ao longo da trama, tanto entre religiões quanto entre ciência e preceitos religiosos. O fato é que as grandes religiões retratadas no filme são milenares. Desde o judaísmo, a mais antiga, passando pelo catolicismo, que não tem tanto destaque no filme, até a mais recente, o islamismo, com o qual a maioria dos embates são travados, todas são baseadas em doutrinas criadas para uma sociedade muito diferente e incompatível com a atual.

Enquanto as divergências se restringem aos divertidos diálogos do rabino com o gato, que insiste em citar dados científicos como teste de carbono 14, para questionar a idade da terra segundo o judaísmo, as consequências também são restritas à relação do religioso com seu animal de estimação, porém tudo fica mais sério durante a viagem, que obriga os judeus a cruzarem com uma série de etnias, cujos costumes são regidos pelo islamismo.

O longa está longe de ser uma animação infantil e as metáforas e conflitos apresentados, ainda que em uma história que acontece há quase um século, têm claras referências aos dias atuais, talvez pela rigidez dos costumes religiosos sofrerem constantes problemas com seus anacronismos.

O conflito das religiões com a ciência extrapola o questionamento pessoal sobre a veracidade de Adão e Eva em relação ao evolucionismo das espécies. Com maior ou menor intensidade, dependendo de cada país, as religiões influenciam decisões políticas que acabam impondo valores sobre aqueles que não seguem suas doutrinas. Ainda que não consigam supremacia pelas vias maquiadas da democracia, é sob a égide da religião (qualquer uma das três já citadas) que muitos atentados são postos em prática, tanto por grupos extremistas quanto por estados soberanos.

A interpretação literal de textos religiosos escritos há tanto tempo é tão incompatível com a sociedade atual que gera divergência entre os próprios seguidores, fazendo com que tenham que debater a respeito de temas superficiais, cuja discordância não traria nenhum problema. Quando as divergências aparecem entre membros de religiões distintas, extremistas como todas podem ser, a necessidade de se sobressair impera e a racionalidade mais uma vez sucumbe às doutrinas, ou à interpretação que fazem das doutrinas.

Ainda que não tenhamos atingido o ideal de Nietzsche, de uma sociedade sem religião, já que a maioria das pessoas ainda busca o chamado conforto espiritual em tais doutrinas, é latente que a religião continua tendo peso político fundamental em nossa sociedade, que se expressa de formas distintas, mas em essência pode ser bem parecido com o que vemos no filme.

Se nos chocamos, mesmo em um desenho, com pessoas duelando até a morte por um ideal religioso, não deveríamos considerar aceitável que o radicalismo religioso ainda tenha força para impor à sociedade valores incompatíveis com a vida contemporânea. Mesmo que não tenhamos encontros no meio do deserto, regidos por costumes locais e sem leis constitucionais, é inegável que muitas leis ainda são impostas pela pressão de religiões.

O que o gato do rabino, que para seguir por perto de sua amada dona cede aos caprichos da religião, tem a nos ensinar é que a religião não deve extrapolar o plano individual. Qualquer um que queira pautar sua vida em doutrinas milenares pode e deve ter toda a liberdade para isso, mas a partir do momento que essas doutrinas são impostas a quem não quer segui-las, optando por outra ou nenhuma religião, é inadmissível que a solução seja uma versão revisitada das cruzadas ou mesmo da inquisição. Será essa a real solução que qualquer das grandes religiões pregaria?

Questões políticas, religiosas ou filosóficas a parte, a animação tem um estilo de desenho muito agradável, com algumas cenas lembrando o quadro “Noite Estrelada” de Van Gogh. Cenas cômicas quebrando algumas sequências mais sérias e um roteiro repleto de referências culturais. Vale a pena conferir, seja qual for a religião!


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Bróder


O longa de estreia do diretor Jeferson De foi rodado no Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo que normalmente é conhecido pelos altos índices de criminalidade. Poderia ser pela falta de salas de cinema, baixo investimento ou precariedade das escolas. O fato é que a opção do diretor foi exibir, a partir de três personagens que cresceram juntos no bairro, algumas possibilidades que os moradores têm para seguir.

Diferente de alguns bairros, nos quais jovens aspiram às carreiras de medicina, direito, engenharia, entre outras, as opções dos jovens nascidos e criados na periferia parecem bem mais restritas. O primeiro apresentado é Macu (Caio Blat), que logo de cara desconstrói o estereótipo de criminoso.

Macu faz o gênero de bom moço, cumprimenta a todos e mostra ser querido na comunidade onde vive. Ninguém desconfiaria que ele estivesse prestes a participar de seu primeiro sequestro, alegando ser o único, apenas para pagar uma dívida. O que parecer ser a imagem do fracasso – sucumbir ao crime para solucionar um problema – tem como contraponto o personagem Jaiminho (Jonathan Haagensen), que se tornou jogador profissional.

Ao chegar ao bairro em um grande carro importado e coberto de joias Jaiminho é a imagem do sucesso, ao menos do êxito econômico, jogando futebol na Espanha e almejando uma vaga na seleção brasileira. Enquanto Macu obedece às ordens de seu superior, que o induz ao sequestro, Jaiminho obedece ao empresário, que cuida de cada detalhe de sua carreira.

Entre os dois extremos vemos Pibe (Silvio Guindane). O terceiro amigo não ficou rico jogando bola, também não se rendeu ao crime, mas teve um filho e vive imerso na responsabilidade de sustentar a família com um salário irrisório. Apesar de terem seguidos caminhos distintos, é possível ver que os jovens mantém uma união muito forte, que nem mesmo brigas e divergências são capazes de quebrar.

A dúvida que fica após o filme é se a exploração do trabalho de Jaiminho por parte de seu empresário é muito diferente da exploração do trabalho de Macu, que tem suas opiniões ignoradas diante das ordens para a execução do sequestro. Ainda que não tenhamos detalhes do trabalho de Pibe, não restam dúvidas de que sua força de trabalho é vendida a preço baixo e também explorada.

É evidente que não podemos colocar os três no mesmo plano, afinal Jaiminho ganha muito dinheiro de forma lícita, enquanto Macu coloca a vida de outras pessoas em risco, porém o que fica latente é a incapacidade de prover o próprio destino, relegando a outras pessoas o que a emancipação lhes poderia garantir.

O que o filme mostra, talvez de forma exageradamente tímida, é que independente do caminho que os indivíduos acabem seguindo, a formação acaba sendo fundamental. Com a educação pífia que costuma ser oferecida aos jovens das periferias paulistanas, em escolas públicas cujo principal objetivo parece ser desviar verbas do estado, ao invés de formar cidadãos, os jovens não possuem autonomia sobre as próprias atividades, tendo que optar por um explorador, ao invés de uma profissão.

A marca mais forte dos personagens é o grande laço de amizade, não apenas entre os três protagonistas, mas entre todos que permeiam a trama e que cresceram dividindo as mesmas dificuldades e compartilhando os mesmos valores. A lealdade entre os próximos é um valor que o chefe da quadrilha de sequestradores não irá compreender, assim como a preferência pela feijoada a despeito do restaurante Le Jardin, indicado pelo empresário de Jaiminho.

Vemos no filme, nos moradores do Capão Redondo ou em qualquer outra esfera social valores bastante marcantes, formados desde a infância pelos elementos que cercam o indivíduo. Porém esses valores, independentes de quais sejam, são fortemente tentados pelas leis bárbaras do capital, reduzindo prazeres, amizades, lealdades ao dinheiro.

A forte união notável entre os moradores personagens do filme poderia ser canalizada para o desenvolvimento pleno dos indivíduos, conscientes dos conflitos sociais e cientes da capacidade de cada um de prover o próprio destino. Talvez não seja um objetivo tão fácil de ser conseguido, mas longe de ser impossível, é interessante a muitos setores da sociedade que esse tipo de consciência não exista. Não seria rentável (para quem já detém o capital).


terça-feira, 9 de outubro de 2012

A fonte das mulheres (La source des femmes)


Uma pequena aldeia encravada no deserto, onde as mulheres são responsáveis por uma longa caminhada para carregar água até as casas. Esse é o plano de fundo para o filme do diretor Radu Mihaileanu. Com todos os diálogos na língua local e diversas referências socioculturais ao longo do filme, a obra torna-se pouco a pouco uma fonte muito rica de reflexões, não somente em relação à aldeia retratada, mas também ao papel do machismo na sociedade e à relação entre cultura ocidental e oriental.

Carregar a água é papel das mulheres, pois antigamente, durante um período de guerras, os homens se encarregavam de defender a aldeia de invasões. Com o fim das guerras a divisão do trabalho já estava estabelecida. As mulheres continuaram a carregar a água enquanto os homens passaram a observar o trabalho, já que não tinham mais que fazer guerra. A tradição passou a justificar o trabalho pesado relegado a elas. Contra a injustiça proporcionada pela divisão do trabalho, as mulheres da aldeia optam por uma greve de sexo, para forçarem os homens a solucionar o problema de uma forma ou de outra.

1) O machismo, da forma como é mostrado, fica evidente e patético. De fato é absurdo que mulheres, mesmo grávidas, tenham que andar longas distâncias em terrenos acidentados, para voltar com pesados baldes de água nas costas, enquanto os homens passam o dia em um ócio nada produtivo na aldeia. Tudo isso por uma tradição estabelecida em uma época em que os papéis sociais de homens e mulheres eram justificáveis (elas carregavam a água, eles guerreavam).

Hoje em dia, em geral, homens e mulheres das cidades ocidentais, essas em que vivemos, costumam passar o dia todo no trabalho. Chegando em casa no fim do dia é hora da mulher cuidar da casa, dos filhos, das refeições, enquanto o homem relaxa em frente à TV. Afinal, em outros tempos, a única tarefa da mulher era cuidar da casa, enquanto o homem trabalhava fora. Os tempos mudaram, mas mantemos a tradição para o conforto masculino, tal qual uma aldeia isolada do mundo. As tentativas de justificativas podem existir. São risíveis, aqui ou lá.

2) Transitando entre o cômico e o trágico, o filme mostra o poder de mobilização das mulheres, que tanto pode ser interpretado de forma literal, ou seja, mulheres lutando contra as injustiças do machismo, quanto metaforicamente, já que as mulheres podem simbolizar qualquer classe que resolva se unir contra determinada exploração.

A mobilização feminina da aldeia segue um roteiro histórico das mobilizações de greves. As lideranças, as hesitações, descrença inicial por parte daqueles que estão no poder, reações violentas, pressões, chantagens e uma infinidade de técnicas baixas por parte daqueles que querem a todo custo manter o conforto gerado por uma injustiça.

O esperado é que quem assista ao filme fique chocado com os maridos, que tentam acabar com a greve batendo nas esposas diante dos filhos. O ideal seria, além da associação do machismo da aldeia com o machismo na nossa própria sociedade, a ligação da causa da greve feminina com greves trabalhistas atuais, que também tentam quebrar com a hegemonia de uma classe, que se sustenta na zona de conforto baseada na exploração tradicional e sem fundamento da força de trabalho. O risco que corremos é o de agir como algumas mulheres da aldeia, ou seja, estar do lado oprimido, mas considerar que é melhor não lutar.

3) Outra reflexão que o filme instiga é em relação ao estereótipo do mundo árabe que o ocidente vem criando, desde o início deste século. De fato o fundamentalismo religioso é utilizado para subjugar as mulheres, o que é condenável, e uma série de outras atitudes dos homens da aldeia podem ser encaradas como um retrocesso na emancipação – feminina e consequentemente humana. Só não podemos cair na tentação de criar uma relação de causa e consequência entre a religião mulçumana e a forma de agir dos aldeãos.

Conforme já indicado, a estrutura machista que atua no meio do deserto ganha nova roupagem no ocidente, que aprendeu ao longo da história que é mais eficiente ceder pequenos benefícios para manter o cerne da exploração. Ao nos depararmos com problemas sociais gritantes no filme, somos surpreendidos ao pensarmos que os mesmos problemas estão presentes em nosso cotidiano, apenas disfarçados.

O fundamentalismo cristão que impõe sua força ao estado, através de uma bancada evangélica, o machismo que impera em nossa sociedade, a repressão violenta contra os explorados que tentam se rebelar. Para nossa vergonha, elementos criticáveis em uma aldeia perdida no meio do nada passam despercebidos diante de nós, apenas por uma maquiagem tão frágil.


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