terça-feira, 21 de setembro de 2010

Amadeus

O diretor Milos Forman apresentou sua versão para a conturbada vida de Wolfgang Amadeus Mozart através do cinema. Em meio à tantas qualidades do filme chamam a atenção as cenas brilhantes em que os pensamentos dos músicos são exibidos como música de fundo, narrando cada passo da música. A obra ficcional, longe do rigor científico que podemos encontrar no livro “Mozart – Sociologia de um gênio”, de Norbert Elias, possui um lado lúdico mesclado a diversos fatos reais da vida do músico, o que nos permite fazer um interessante paralelo entre as duas obras em questão.

Vemos que o filme inicia deixando claro quem é o narrador, no caso o músico Antonio Salieri, já velho e martirizando-se por ter matado Mozart. Portanto todo o filme é narrado do ponto de vista de Salieri, tratando-se de um relato pessoal e parcial. O diretor indica ser um personagem carente e solitário através do criado, que diante da recusa do músico em abrir a porta do aposento ameaça não visitá-lo nunca mais. As breves cenas no hospício para onde levam Salieri nos dão ideia de como eram tratados os loucos naquela época, extremamente coerente com as descrições de Michel Foucault em seus estudos sobre a loucura.

A figura de Salieri no filme é praticamente uma personificação da sociedade de corte descrita por Elias, velha, já enfraquecida e o principal obstáculo para o fracasso pessoal de Mozart. Sob a ótica sociológica o filme indica diversas nuances condizentes com as teorias de Pierre Bourdieu. Em seu relato pessoal o personagem Salieri indica que o pai de Mozart ensinou o filho a ser músico, diferente de seu pai, comerciante membro da nova burguesia, para qual provavelmente a música tinha como principal função entreter a corte. Este fato refuta, como toda a obra de Bourdieu, a ideia de que Mozart tinha “dom” para a música, pois ainda que suas primeiras obras tenham sido escritas de forma extremamente prematura, algumas com apenas quatro anos, este talento foi desenvolvido, possivelmente como supõe Elias, para chamar a atenção do pai enquanto este ensinava música à irmã mais velha. Assim vemos que o talento do compositor não era inerente à sua personalidade, mas construído socialmente.

Para a sociedade de corte tão marcante quanto o talento musical de Mozart era seu comportamento excêntrico de quem, apesar de sempre ter frequentado os palácios, nunca teve comportamento de nobres. Tom Hulce trabalha este lado do músico com atuação impecável no filme, mostrando os gestos espalhafatosos e o riso marcante – ainda que Mozart estivesse longe da aparência de um galã de cinema. Algumas piadas escatológicas do músico também foram indicadas no filme e esse comportamento também desagradava à corte. Neste ponto é bastante útil a obra “O processo civilizador” de Norbert Elias, na qual o autor mostra detalhadamente como é lento a apropriação de determinados hábitos pelas classes sociais. Ao retratar a família do músico o roteiro do filme não dá tanto destaque ao pai de Mozart, por restringir-se a um período em que o filho se distancia, e dá mais ênfase para a esposa, sendo que a cena em que sua sogra assiste um de seus espetáculos mostra bem como há um abismo entre os hábitos da corte e o comportamento dos que estão socialmente distantes da nobreza.

A grande diferença do habitus da sociedade de corte e da burguesia é notável e marcante durante toda a vida de Mozart e muitos pontos ficam latentes no filme não apenas no comportamento, mas também na obra do músico. Salieri reconhece a qualidade de suas obras, lembrando que aqui este personagem é encarado como a personificação da corte, porém isso não é suficiente para que Mozart deixe de ser um mero serviçal. Sua socialização teve o intuito de formar um músico de acordo com os padrões tradicionais, daí a dificuldade de seu pai aceitar a decisão de deixar a corte de Strasburgo, e em relação à sua obra, a complexidade das músicas de Mozart formava um estilo que não agradavam seu público-alvo. Muitas vezes isso é apresentado no filme quando Mozart é criticado por um suposto excesso de notas em sua música. No livro o sociólogo enfatiza que o sucesso só faria sentido para o músico se vindo da nobreza de Viena, talvez por isso o personagem do filme critique tanto a Itália e seus músicos, mas o paradoxo é que para atingir seu alvo Mozart teria que alterar seu estilo musical, simplificando obras que considerava perfeitas.

A ópera “Figaro” adaptada por Mozart e considerada por ele – no filme – a melhor já escrita mostra o conflito entre uma nobreza já fraca, porém ainda poderosa, e uma burguesia ainda fraca, que aos poucos ganhava espaço, mas ainda não tinha poder para impor seus padrões. A obra foi considerada um fracasso por não ter agradado a corte, novamente por alegação de complexidade, mas na verdade o campo musical que agradaria a nobreza é que diferia do campo que agradava a burguesia. Conforme a indicação do amigo de Mozart, se a obra “Don Giovanni” fosse apresentada para as classes populares faria sucesso, porém não o sucesso que seu autor considerava consagrador. O ponto mais claro da diferença entre o gosto musical da nobreza e da burguesia é notado quando o diretor do filme mostra a família Mozart assistindo a um vaudeville. O filho do músico gosta, já que sendo ainda criança não tem seu habitus consolidado e é socializado em meio àquele tipo de música, mas posteriormente ao falar sobre uma obra do mesmo estilo a Salieri (sociedade de corte) Mozart se refere pejorativamente, dizendo que não era tão bom por ser apenas um vaudeville.

Ao compor “A flauta mágica” Mozart sabia que nunca agradaria a nobreza, mas sim as classes mais populares. O empenho na composição que foi retratado no filme, em parte pelo dinheiro que proporcionaria, e a satisfação do compositor em executar a obra refletem bem a frase citada por Elias: “Você sabe muito bem que os melhores e mais verdadeiros amigos são os pobres. A riqueza não sabe o que significa amizade.” Em “A flauta mágica” o músico utiliza a linguagem popular – sem se preocupar com a dúvida da corte em fazer uma ópera em italiano ou alemão – e fala do amor, ou seja, do tema que tanto insistiu diante da nobreza, que sempre o viu com desdém, chegando a falar sobre viver como um príncipe sem pensar e definindo a sabedoria com a frase “uma mulher é muito melhor que vinho”, bebida muito associada aos nobres, aos quais seriam impensáveis tais referências em uma ópera.

Educado desde pequeno exclusivamente pelo pai e com o intuito de servir à nobreza, Mozart não poderia encontrar a consagração de outra forma, a não ser através do reconhecimento da classe a quem ele pretendia agradar. A loucura, que no filme Salieri desenvolveu em Mozart através do fantasma do pai, não é outra se não a que a sociedade de corte impôs ao músico, recusando-se a reconhecer sua obra e impondo-lhe indiretamente a composição de seu próprio réquiem.

Apesar das pesquisas de Bourdieu terem sido feitas ao longo do século XX podemos notar como algumas semelhanças podem ser traçadas com a época de Mozart, principalmente em relação ao habitus e a socialização. Mesmo a ascensão social, que hoje é mais comum em nossa sociedade, tem suas raízes naquela época, por isso notamos o peso do capital social, muitas vezes decisivo na manutenção ou alteração do status social do indivíduo, semelhante à vida de Mozart.


terça-feira, 14 de setembro de 2010

Como água para chocolate

Laura Esquivel lançou seu romance em 1989 e a própria escritora adaptou a obra para o roteiro do longa dirigido por Alfonso Arau. Desta forma o filme fica mais fiel ao livro, o que neste caso é bastante importante devido ao contexto da obra.

Entre os consagrados escritores latino-americanos vemos o reflexo do machismo histórico que faz predominar o destaque dos homens. Esquivel destaca-se como uma das poucas mulheres escritoras e o próprio romance em questão lança um olhar feminino com predominância de mulheres como personagens, que através do realismo fantástico da obra mostram diversos papéis das mulheres ao longo do enredo.

Da narradora à protagonista acompanhamos quatro gerações da família de Tita (Lumi Cavazos), e se por um lado o eixo da obra é a cozinha – local tradicionalmente relegado às mulheres e onde a personagem demonstra todo seu talento formado desde a infância, que culmina em receitas por vezes com efeitos mágicos – por outro as personagens mantêm distância da dominação masculina. A submissão gira em torno da matriarca, mamãe Elena (Regina Torné), que preza pela manutenção das tradições e da aparência de uma família sem problemas.

No livro é dada maior importância para a Revolução Mexicana, ocorrida no início do século XX, pois no filme apenas algumas cenas fazem menção ao período. O enredo conta com a personagem Gertrudis (Claudette Maillé), uma das filhas de Elena que, com a contribuição involuntária de uma das receitas de Tita, abandona o rancho da família e chega a ser general da guerrilha. De fato as mulheres tiveram destaque pelo envolvimento na causa zapatista e muitas famílias contribuíam com o exército revolucionário de forma voluntária. Como não poderia deixar de ser, dadas as características da personagem, mamãe Elena oferece resistência à revolução, que sob a ótica da matriarca foi reduzida e exposta como algo perigoso – para o tradicionalismo reacionário, de fato foi.

Para Tita o que importava mais que qualquer revolução, era seu amor por Pedro (Marco Leonardi) que desde sua adolescência foi proibido pela tradição de que a filha mais nova de uma família deverá cuidar exclusivamente de sua mãe. A partir da proibição a menina, que aprendeu a cozinhar desde criança com a criada Nacha (Ada Carrasco), teve toda a vida marcada por encontros e desencontros, não apenas com Pedro, mas com os sentimentos que o amor propicia. No livro, ao longo da história de amor, a autora flerta o tempo todo com o senso comum, mas o final sempre inusitado dos acontecimentos surpreende positivamente, refinando a obra.

A transição para a linguagem cinematográfica resultou em um bom trabalho, reorganizando alguns episódios do romance e apresentando em ordem mais simplificada. O diretor explorou ainda os recursos visuais para dar mais valor às sensações provocadas pelas receitas preparadas, e a trilha sonora para expor alguns sentimentos que no livro são bem detalhados. Infelizmente em algumas cenas esses mesmos recursos beiram o dramalhão mexicano que marcam algumas produções televisivas do país, mas não chegam a comprometer o conjunto final.

Mais que uma história de amor conflituosa tanto o livro quanto o filme nos fornecem elementos sobre a história do México, tradições familiares e muitos traços culturais, principalmente pelas receitas que dão água na boca. Além de encantar instiga qualquer um a provar as tortas de natal, as codornas em pétalas de rosa, os chilis nogados, etc.

 

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O Bem Amado

Guel Arraes apresenta sua versão para a obra de Dias Gomes quase quarenta anos após o lançamento da telenovela e trinta depois da série. Marco Nanini substitui Paulo Gracindo com muita competência na interpretação do político Odorico Paraguaçu, prefeito da fictícia Sucupira pouco antes do golpe militar que culminou nos vinte anos de ditadura no Brasil.

Evidentemente muita coisa mudou no cenário político do país, afinal ainda que alguns tentem indicar um suposto milagre econômico da referida época, o fato é que a economia crescia no mesmo ritmo da dívida externa, cujos desdobramentos, leiam-se arrocho da população para pagar juros aos credores, são sentidos até hoje. Porém é bastante preocupante pensarmos que algumas características do político caricaturado eram vistas como bem próximas da realidade quando retratadas por Dias Gomes e permanecem bem pertinentes até hoje.

Odorico é a figura imponente, de fala difícil, postura de superioridade e ao mesmo tempo promessas acolhedoras, seduzindo os eleitores com a falsa imagem de homem preparado e competente. Para isso conta com o despreparo do eleitor que não percebe as promessas mirabolantes e o discurso vazio por trás das palavras desconhecidas. As obras superfaturadas e as falcatruas protagonizadas pelo prefeito chegam a sofrer resistência de seu secretário, Dirceu Borboleta (Matheus Nachtergaele), porém a hierarquia o faz aceitar as ordens do político corrupto sem criar empecilhos.

O tom de comédia do filme, que vai desde a referência à surdez de Beethoven até expressões populares como “tauba de pirulito” nos faz lembrar que a comédia é utilizada para criticar a política desde a Grécia antiga, criadora do termo, oriundo das Pólis, e de obras teatrais encenadas até hoje, muitas vezes satirizando os políticos. O que torna curioso ver que para as eleições os programas de humor são proibidos por lei de fazer comédia com os candidatos – ainda que candidatos possam aparecer vestidos de palhaço alegando não saber o que faz um político que exerce o cargo pretendido.

Um elemento inovador na obra de Arraes em relação às que a inspiraram é a presença de um opositor supostamente de esquerda, mas que aos poucos também mostra o lado corrupto de quem almeja o poder, mais que o bem da população. Tonico Pereira faz o papel de Vladmir (a origem russa do nome não é obra do acaso, mas representa a URSS que na época protagonizava a guerra fria), dono do jornal de oposição que trabalha com o fotógrafo Neco (Caio Blat), que assim como o secretário do prefeito, tenta apresentar um pouco de lucidez ao superior diante das práticas condenáveis do mesmo, porém sempre esbarra na inferioridade de seu cargo.

Se a arte imita a vida o lado político não nos deixa muito animados, afinal reconhecemos em meio aos diálogos muito bem escritos do filme muitas situações verossímeis de corrupção, disputas políticas que beiram o ridículo, políticos despreparados, escândalos das mais diversas ordens e tantos outros exemplos. O que resta é torcer para que em um ponto específico do filme a vida imite a arte: quando economicamente a população é nivelada por baixo, com a grande massa ganhando quando muito o suficiente para sobreviver, mais eficiente que se vangloriar por pequenas ascensões e definições de nova classe média, escorraçando classes pouco mais baixas para se sentir próximo dos mais ricos, seria perceber que opressão sofrida pode ser derrubada através da união, para que o ganho real venha para todos ao invés de poucas migalhas para alguns.

Muito bom o equilíbrio entre a comédia e o espaço que proporciona à reflexão sobre o comportamento dos políticos.

* Recentemente uma liminar passou a permitir que os programas humorísticos façam sátiras aos candidatos, isso depois de treze anos da criação da lei que os proibia!


Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...