sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Milagre de Sta Luzia


O dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos, é 13 de dezembro e o milagre ao qual o título do filme faz referência ocorreu no ano de 1912, ou seja, o nascimento de Luiz Gonzaga em Exu, Pernambuco. O brilhante artista que ganhou o nome em homenagem à Santa é um grande responsável pela difusão do instrumento que marca tantas culturas no interior do Brasil: a sanfona. Entretanto o documentário de Sérgio Roizemblit aborda muito mais do que o instrumento, pois guiado pelo carismático Dominguinhos o filme viaja por várias regiões do Brasil mostrando diversas particularidades culturais embalado por boas músicas, lindas paisagens e músicos que muitas vezes são injustamente desconhecidos.

As filmagens duraram ao todo mais de dez anos, o que proporcionou ao trabalho final imagens de verdadeiras lendas da nossa cultura que já faleceram, como Sivuca, Mário Zan (inexplicavelmente desconhecido após bater recordes de vendas) e Patativa do Assaré. É com este último que começamos a viagem pelo Brasil. No nordeste, poucos meses antes de falecer, o poeta nos presenteia declamando seu poema em homenagem ao amigo Luiz Gonzaga. Tão grande quanto a emoção desta cena é a decepção pelo seu centenário (agora em 2009) ser tão negligenciado e esquecido.

Seguindo pelo nordeste vemos alguns encontros de grandes sanfoneiros fazendo forró de raiz; o encontro improvisado de repentistas na beira da estrada, acompanhados pelo acordeom de Dominguinhos; Arlindo dos 8 baixos, que não largou os oito baixos nem depois de perder a visão; Camarão, que já não pode tocar em pé devido à problemas na coluna, mas comanda os forrós tocando sentado; e os diversos “causos” entre os quais ganha destaque Pinto do Acordeom, que conta como teve que tocar “New York, New York” para salvar a própria vida - nesta cena é necessário ressaltar o bom trabalho de Roizemblit que, diferente do que é mostrado no vídeo abaixo, não limitou-se a mostrar o sanfoneiro improvisando a letra e Dominguinhos se divertindo. Quem ver o filme entenderá do que estou falando!

Rumo ao sul Dominguinhos dirige sua caminhonete até o pantanal matogrossense. Começamos a notar diferenças sutis no ritmo das musicas e grande mudança de cenário entre o cerrado e o pantanal. A criação de gados está presente nos dois ambientes, mas é manejada seguindo costumes locais, pois no nordeste os vaqueiros lidam muitas vezes com a caatinga e cavalgam em meio aos espinhos das árvores, enquanto as planícies do centro-oeste alteram o modo de conduzir o gado. É impossível deixar de destacar o voo de um casal de araras azuis flagrado por Roizemblit, de causar inveja em qualquer documentário da Nacional Geographic.

Ampliando a diversidade cultural o documentário nos leva ao sul do país. Lá o som da gaita tem influencias diferentes do nordeste, vindas da Itália e mesmo do tango argentino. Ainda que os acordes sejam os mesmos, a música não tem tanto gingado quanto o forró nordestino. É interessante notar também a postura dos músicos que, diferente dos nordestinos, preferem tocar a gaita sozinhos a fazerem encontros para duetos. Um dos ritmos tipicamente gaúcho é o “bugio” e o filme mostra como sua origem é mesmo a espécie de macacos. Com o baixo da gaita o músico imita o som do primata para fazer a base e a dança imita os movimentos do bugio.

Novamente rumo ao norte o filme deixa pela primeira vez o interior e chega à maior cidade do país. São Paulo, por receber imigrantes de todo o Brasil, sintetiza muito bem a diversidade cultural de norte a sul e coloca na sanfona inúmeros elementos. O instrumento é utilizado no jazz, hip hop, música árabe, japonesa, etc. Além disso, anima as festas fundamentais aos imigrantes nordestinos que têm grande peso na história da cidade. Finalmente a história de Dominguinhos, que até então acompanhava as entrevistas, ganha o merecido destaque, pois em certo sentido simboliza muito bem os imigrantes nordestinos.

O músico de simpatia inigualável saiu do nordeste ainda criança, como tantos outros, e enfrentou onze dias em um “pau de arara” para chegar ao sudeste. Tocava pandeiro com os irmãos para conseguir dinheiro e ajudar a mãe a fazer a feira, mas o que mudou sua vida foi conhecer o gênio Luiz Gonzaga, que lhe deu um acordeom e foi seu padrinho na música. Dominguinhos se emociona – e nos emociona – ao lembrar-se de tantos nordestinos que deixam a terra que amam para tentar uma vida melhor e muitas vezes não têm a chance de voltar para casa, assim como os pais do músico.

Para terminar a viagem o longa nos leva de volta ao nordeste com a entrevista do mestre Sivuca. Talvez seja o último registro do músico que morreu em 2006, cujos dedos passeiam pelas teclas da sanfona em um dueto inenarrável com Dominguinhos, que apesar de mais novo, inspira o mestre – segundo palavras do próprio Sivuca. A obra termina com um grupo de irmãos que toca para Santa Luzia, o que prende todos no cinema até o fim dos créditos.

Muitas vezes ao longo do trabalho sentimos vontade de aplaudir o que é exposto, como se estivéssemos vendo as apresentações ao vivo e, apesar da intenção do filme não ser esta, saí da sala com vontade de colocar uma mochila nas costas e refazer a viagem pelo Brasil que toca sanfona! Para quem não gosta de documentários, essa é uma ótima dica para uma revisão de conceitos.





Geralmente eu só coloco o trailer, mas diante do Milagre, não colocar esse vídeo seria um pecado =)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Tempos de Paz

A II Guerra já havia terminado na Europa, mas no Brasil o clima tenso e a grande precaução em relação aos imigrantes continuavam. Funcionários do governo, responsáveis pela emissão dos vistos, aguardavam por “novas diretrizes em tempos de paz”. Este é o tema e o título da peça de Bosco Brasil que deu origem ao longa “Tempos de Paz”. O filme dirigido por Daniel Filho (que também encena o Dr. Penna, personagem apenas citado na peça e mais enfatizado no filme) tem forte presença de elementos do teatro. O roteiro sofreu poucas alterações em relação à peça e a maior parte do trabalho é focado no diálogo de Segismundo (Tony Ramos) e Clausewitz (Dan Stulbach).

Clausewitz é o polonês que, como tantos outros, chegou ao Brasil depois da guerra com a imagem de um país perfeito, alegre, pacífico e livre dos horrores desumanos que ele presenciou na Polônia. Aprender o português foi uma forma de ocupar a mente e esquecer o passado recente, pois agora sua vida seria como agricultor no país que “precisa de braços para a lavoura”.

Segismundo é o chefe da imigração na Alfândega do Rio de Janeiro. Um ex- torturador que cumpre qualquer ordem que os superiores determinarem sem nenhum questionamento ou reflexão quanto à viabilidade das mesmas. A fase de transição pela qual o país passava atingia em cheio o oficial, pois o presidente Getúlio Vargas havia anistiado os presos políticos e Segismundo temia vinganças. Ao mesmo tempo ainda não tinha recebido novas instruções devido ao fim da guerra e ainda aplicava as mesmas regras aos imigrantes recém chegados.

Neste cenário ocorre o encontro dos dois personagens e fica evidente o abismo que existe entre um homem culto, que aprendeu muito através do sofrimento pelo qual passou e outro que cresceu em um orfanato, sem contato com a família, cujo único preparo foi para obedecer ao que lhe era ordenado. Segismundo mostrou a Clausewitz que nosso país não estava sequer próximo do que era idealizado pelo polonês e que infelizmente os horrores de uma guerra não estavam restritos aos países diretamente envolvidos no conflito. A única autonomia que Segismundo demonstra é quando sugere que se Clausewitz conseguir fazê-lo chorar em dez minutos conseguirá o tão sonhado visto. Para saber se o ex-torturador que sempre demonstra extrema frieza chorou é necessário assistir ao filme, mas no cinema não faltaram lágrimas aos que assistiam. O curioso é como cenas tensas e emotivas são quebradas com repentino humor muito bem dosado, que mostra a versatilidade dos atores.

Além de uma parte importante da história do Brasil e do valor dos imigrantes parcialmente retratados no filme, é curioso pensarmos a submissão dos oficiais diante de qualquer ordem emitida. Tempos de guerra mostram o extremo de um comportamento cotidiano em que não importa o horror da ordem emitida, suas consequências ou seu contexto, sempre haverá um ser humano capaz de executá-la. Em certa parte do filme, após um imigrante questionar a forma como estavam sendo tratados a resposta obtida vinha no sentido de que o tratamento poderia ser muito pior, como se este argumento justificasse os maus tratos.

Em um contexto radicalmente diferente, com implicações bem distintas, mas com a mesma postura dos que cumprem as ordens, lembrei de um evento ocorrido há poucos meses, ainda este ano. Em uma manifestação de estudantes dentro da universidade, lutando pela qualidade da mesma, estudantes foram atacados com bombas, gás de pimenta, cassetetes e tudo mais. Quando uma manifestante gritou que aquilo era uma ditadura o comandante da ação respondeu que os estudantes têm sorte, pois na ditadura eles resolveriam na bala.

Dois exemplos que, apesar de magnitudes bem distintas, mostram a mesma submissão de oficiais em um intervalo de mais de sessenta anos nos fazem pensar no treinamento despendido aos que supostamente deveriam garantir a ordem de uma sociedade. A submissão irracional é mesmo o melhor comportamento, ou o senso crítico capaz de julgar se a ordem é viável diante de determinada situação produziria melhores resultados? Clausewitz questiona a utilidade do teatro depois de todos os horrores presenciados na guerra. Esta utilidade é dada por cada um que assiste ao filme, mas fiquei pensando se a cultura de uma forma geral não seria capaz de impedir que um ser humano seja capaz de declarar guerra ou torturar um desconhecido.


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