quinta-feira, 24 de março de 2011

É proibido fumar

O longa dirigido por Anna Muylaert gira em torno dos encontros e desencontros de um casal. Até aqui poderia ser mais um filme romântico, mas o que chama a atenção é que Baby (Gloria Pires) e Max (Paulo Miklos) não são adolescentes descobrindo a vida e buscando um conto de fadas; ambos na meia-idade, com a vida estruturada e morando sozinhos, se conhecem quando Max aluga o apartamento ao lado de Baby, que logo percebe algo especial no novo vizinho.

É de se esperar que a maturidade ofereça a possibilidade de lidar melhor com as adversidades de um relacionamento e que as experiências acumuladas ao longo do tempo facilitem nas escolhas individuais, para que estas reflitam numa vida a dois mais prazerosa – tanto para evitar erros quanto para saber lidar com os erros do outro. Porém nem sempre essa vantagem que o tempo nos oferece é aproveitada, de forma que vemos Max ainda muito ligado ao seu antigo relacionamento e Baby sem saber o que fazer para controlar as crises de ciúme.

Se por um lado o casal pode contar com a experiência, por outro a companhia da solidão durante os anos implica em hábitos bastante rígidos, que dificulta o súbito convívio com alguém até então desconhecido, que inevitavelmente vai demandar certas mudanças de comportamento. Aqui essa característica é mais notada em Baby, que aparenta ser mais solitária, introspectiva e preza pelas coisas feitas ao seu modo, implicando até com a irmã por um sofá deixado de herança. Já Max tem uma vida mais solta, faz novos amigos até no balcão da padaria, reúne sua banda em uma divertida festa – para desespero da namorada que vê seu apartamento, até então sempre vazio, cheio de gente desconhecida, com quem ainda acaba disputando a atenção de Max.

De um casal promissor, que a primeira vista tem tudo para dar certo por, aparentemente, terem muito a acrescentar um ao outro, passamos pouco a pouco a acreditar que as diferenças são muitas e cada vez mais gritantes, ao ponto de provavelmente inviabilizar a relação. Mas não ficam claros durante o filme os motivos que levaram Baby a viver sozinha. Podemos no máximo, pelas suas atitudes, supor um exagerado rigor em relação às pessoas ou o fato de não abrir mão de sua personalidade. O fato é que independente do que ocasionou a solidão da moça, ela realmente está disposta a mudar isso e investir em seu novo relacionamento e parece que o desafio dela em relação às mudanças necessárias para uma vida junto com outra pessoa, será maior.

É evidente que nem tudo se resume a desafetos entre o casal e os detalhes de afeto acabam, pouco a pouco, fazendo a diferença para que ambos se esforcem a continuar. Os ensaios com a banda incomodam, mas o gosto por música é o mesmo; o apartamento, que antes era exclusivo e agora passa a ser dividido, também proporciona bons momentos juntos. Enfim, a tolerância aos pequenos conflitos e a disposição de mudar pequenos hábitos pode contribuir para o aumento da cumplicidade do casal, ajudando a superar dificuldades realmente relevantes. É possível identificar uma metáfora interessante para ver que tolerar os vícios alheios é melhor do que impor uma mudança, que pode culminar em tragédia.

“É proibido fumar” mostra muitas proibições que somos tentados a atribuir aos relacionamentos, entretanto qualquer tipo de contato impõe restrições com as quais não teríamos que nos deparar quando sozinhos, o que não é necessariamente ruim, já que em contrapartida esses contatos também nos estimulam, ensinam e oferecem a oportunidade de nos tornarmos pessoas melhores, cabe a cada um aproveitar ou não tais oportunidades.


quinta-feira, 10 de março de 2011

O Discurso do Rei (The King’s Speech)

Parece não ser difícil aceitar que um chefe de estado deve ser competente mais com suas ações que com suas palavras. Entretanto em 1936, com a ascensão de Hitler totalmente baseada em sua oratória impecável, fica difícil negar o potencial que o domínio da palavra pode oferecer, ainda que para uma figura já simbólica na época, visto que as principais decisões durante o reinado de George VI (Colin Firth) ficavam por conta do primeiro ministro, na época, para desespero do resto do mundo, Winston Churchill (Timothy Spall).

Talvez a falta de ações diretas do rei, que servia quase como escudo para as ações durante a guerra – o que já não é pouco – valorizasse ainda mais o peso de seu discurso, pois o que restava ao monarca era exatamente explorar a tradicional figura de realeza para tentar encorajar e motivar os britânicos. Desta forma, nada pior do que gaguejar em um discurso para responder a uma ofensiva alemã. Não mostraria apenas a tensão, mas também medo, hesitação e todos os sentimentos exatamente opostos aos pretendidos; pior, mostraria inferioridade britânica já partindo do discurso do chefe de estado.

Apesar do enfoque do filme dirigido por Tom Hooper não ser a biografia de George VI, é possível notar traços do personagem condizentes com a superioridade com a qual membros da família real costumam ser educados. O estereótipo que costumamos criar para membros da monarquia, encenados a exaustão nos filmes, é de pessoas soberbas, por vezes verdadeiros carrascos para seus súditos. George VI não chegou a inspirar o terror, o que era mais comum durante a Idade Média, de forma que a tentativa de impor sua superioridade, geralmente frustrada, já que a mínima discórdia culminava em palavras embargadas, vinha da simples tradição da monarquia inglesa; basta pensarmos que se um jovem príncipe não tem o direito de ser canhoto, sendo forçado a escrever com a mão direita, também não deverá ter o direito de portar-se diante dos súditos sem certa arrogância.

A superioridade, que já era difícil de sustentar diante da insegurança que tinha em si, ficou completamente abalada diante de Lionel Logue (Geoffrey Rush), que em troca de alguns exercícios contra a gagueira cobrava a igualdade. É neste ponto que vemos o quanto é difícil deixar de lado hábitos adquiridos ao longo de toda a vida, muito mais difícil deve ser para um rei cantarolar um discurso sério, mesclando palavras de baixo calão durante os ensaios para evitar gaguejar.

É curioso para quem não é membro da corte ver a igualdade e simplicidade sendo impostas, mas estranho mesmo é a supervalorização de características secundárias para um governante, ou seja, falar bem (neste caso específico, sem gaguejar) tornou-se mais relevante que o conteúdo do discurso; pior, o primeiro sucessor ao trono inglês seria o Rei Edward VIII (Guy Pearce), que não tinha nenhum problema de dicção, mas tinha a intenção de cometer um ato imperdoável diante da população: casar-se com uma mulher divorciada.

O primeiro impacto ao vermos alguns bastidores da história – como valorizar a forma do discurso mais que seu conteúdo, ou julgar um escândalo sexual como fator preponderante na vida do governante – pode parecer alguma maluquice histórica, mais uma entre tantas insanidades que rondaram a Segunda Guerra. Porém o hábito de colocar a aparência muito acima da essência permanece intocável.

Para permanecer apenas com os pontos citados em relação ao filme, vimos recentemente o Brasil ser governado durante oito anos por um ex-operário com pouco estudo. Lula pode, e deve, ser criticado por diversos fatores políticos, mudanças drásticas em relação ao longo período em que foi oposição e escândalos que abalariam a popularidade de qualquer outro político. No entanto uma das críticas mais frequentes é em relação à sua fala, ainda que os inúmeros erros de português não impeçam a expressão do pouco que resta do político que de fato visava governar para os pobres. O conteúdo dos discursos de Lula raramente é considerado e as críticas plausíveis pelas atitudes, que nem sempre são condizentes com as palavras, quase nunca são formuladas, mas a aparência do discurso desconstrói a falsa imagem de governante onipotente.

Deixando o Brasil para uma analogia com a abdicação do trono por parte de Edward VIII, já vimos Bill Clinton ser perdoado por criar guerras para, mais uma vez, aquecer a indústria norte americana, para logo em seguida quase perder o poder graças a um escândalo sexual envolvendo sua estagiária; mais recentemente podemos acompanhar Silvio Berlusconi (uma espécie de Paulo Maluf da Itália) ter sido eleito após várias denúncias de corrupção e agora ser julgado, também por escândalos morais.

Em todos os casos aqui abordados, do filme ou não, podemos notar que as críticas mais explícitas podem até ser justificáveis, mas sem dúvida tiram o foco sobre as reais atribuições de um governante, que sem dúvida deve prezar por sua aparência, mas deve ser realmente cobrado pelas ações políticas.


quinta-feira, 3 de março de 2011

O diário de Anne Frank (The Diary of Anne Frank)

Sinto-me como um pássaro a quem cortaram as asas e bate contra as grades da gaiola estreita. Em mim soa como que um grito: para fora! Tenho saudades, quero sair. Sair daqui, para o ar livre, quero poder rir à vontade! Não há resposta! Mas sei que esses gritos não têm poder, e deito-me na cama para matar estas horas tão terrivelmente silenciosas e cheias de angústia.
(trecho do diário de Anne Frank)

Anne Frank foi uma jovem alemã e com a ascensão do Nazismo sua família foi mais uma a ter que sair do país que passou a perseguir judeus. Como se esse êxodo forçado não fosse bastante absurdo, o Reich expandiu suas fronteiras e, consequentemente, a caça aos judeus. Com isso os Frank foram obrigados a encontrar um esconderijo na Holanda. Com o auxílio de amigos a única opção foi o sótão de uma fábrica, dividido com a família Van Daan e posteriormente também com Albert Dussell.

O diário que a jovem iniciou pouco tempo antes de se refugiar foi atualizado durante os dois anos em que as duas famílias dividiram um pequeno espaço, com comida racionada e com a necessidade de manterem-se escondidas até mesmo dos funcionários da fábrica que funcionava no andar abaixo. O diário de Anne Frank virou livro, publicado na íntegra, e posteriormente foi para as telas com a direção de George Stevens. No cinema o título perde um pouco do sentido, pois não tem o tom pessoal do relado de Anne (interpretada por Millie Perkins), mas tem a grande vantagem de retratar com precisão as dificuldades encontradas pelas famílias, o espaço minúsculo para oito pessoas, e como a insanidade de uma guerra proporciona o desencadeamento de uma série de outras loucuras, que seriam inimagináveis.

O longa foi rodado no esconderijo real, com poucas cenas externas e, somado à estética em preto e branco a sensação de opressão pelo pouco espaço e pelas dificuldades mais que naturais geradas pelo confinamento chega com clareza às telas, evidentemente muito distante da real sensação dos refugiados.

Essa situação extrema de confinamento da margem a uma série de análises, porém a situação de Anne Frank chama a atenção, não apenas por ser a autora do diário, mas também pela transformação na vida de uma adolescente, que ainda tem muitos conceitos a serem formados. Oito pessoas em um cubículo por mais de dois anos é uma tortura para qualquer um, sendo possível notar nuances de como o sofrimento se exterioriza para os personagens.

Os adultos têm seus hábitos consolidados, se por um lado a experiência deveria ajudar a superar os momentos difíceis, por outro as manias das quais não querem abrir mão costumam acarretar grandes discussões e conflitos. Anne é a mais jovem – entrou no abrigo com apenas treze anos –, sua irmã Margot (Diane Baker) e Peter Van Daan (Richard Beymer) são alguns anos mais velhos; as transformações da adolescência geram grandes problemas – imagine confinar pessoas em uma idade que costuma ser marcada por descobertas, desafios aos limites e por vezes rebeldia – e isso é o que nos faz prestar mais atenção em Anne, pois é notável seu amadurecimento ao longo do tempo e a adaptação à sua nova realidade.

O rigor dos estudos e a repressão severa ao comportamento dos jovens são mantidos pelos adultos durante todo o tempo que ficam presos, o hábito de infantilizar os filhos é bem evidente e a tentativa dos pais de manter o controle até mesmo sobre os sentimentos dos adolescentes muitas vezes é levado ao extremo. Além dos danos físicos aos jovens, que são privados até mesmo do Sol, há o terror psicológico de não poder conversar durante todo o dia, ser afastado das antigas amizades – sabendo que os amigos provavelmente estão sofrendo em um campo de concentração – e lidar com as transformações da adolescência, que costumam demandar exatamente o contrário do que os jovens viveram.

O filme é longo e denso, o que aumenta ainda mais a incredulidade de como as oito pessoas suportaram uma situação tão extrema por tanto tempo. Os horrores da guerra foram narrados em infinitas obras, há centenas de livros, filmes, quadros, esculturas, ficções, narrações, etc. O impacto que cada uma traz é muito variável, mas poucas são tão chocantes quanto o Diário de Anne Frank, talvez pela forma com que a jovem encara a situação pela qual vive, conseguindo reprimir seus sentimentos na maior parte do tempo, deixando transparecer bom humor e amabilidade, por vezes até assumindo culpas que poderiam ser atribuídas a qualquer um, menos à vítima. Esperamos por uma explosão, que seria mais que justificada, o rompimento, ainda que em lágrimas, mas as reações são sempre centradas, com a maturidade que nunca esperaríamos de uma menina de treze anos.


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