terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Narradores de Javé

O longa dirigido por Eliane Caffé em 2001 mostra a história do pequeno povoado de Javé, prestes a ser inundado quando o governo da Bahia decide represar o rio para a construção de uma usina. Dez anos após o lançamento do filme sua exibição se torna cada vez mais necessária em um país que sempre exaltou seu potencial hidrelétrico, ignorando os impactos sociais e ambientais gerados pelas imensas barragens necessárias para a construção das usinas.

Para tentar salvar o local, o povo de Javé, quase todos analfabetos, pensam em escrever um livro com as histórias locais, um registro supostamente científico, para que isso sirva de argumento e impeça a construção da barragem, já que só cidades com importância histórica são poupadas. A transcrição das histórias, difundidas oralmente no povoado, fica por conta de Antonio Biá (José Dumont), que além de saber escrever sabe vender histórias e tem o dom da malandragem, que as durezas da vida ensinam tão bem.

A partir disso o filme segue como uma deliciosa comédia marcada por regionalismos e situações inusitadas dos moradores contanto as histórias da forma como lembram. Não obstante, a memória, como já dizia Walter Benjamin, é recomposta de forma única a cada vez que a invocamos e as acareações informais entre os moradores de Javé nunca chegam a um acordo sobre o que de fato aconteceu.

A divergência em relação aos fatos é bastante natural, assim como a grandiosidade de tudo o que é contado. O povo pode ser simples, sofrido e inculto pela óptica da cultura dominante, mas também têm ícones, mártires e histórias grandiosas, talvez falaciosas como qualquer sociedade, pois isso ajuda a encobrir as mazelas, dando a cada indivíduo a sensação de ser indispensável.

Antonio Biá procura fantasiar ainda mais os fatos narrados, criando fábulas a partir de fatos cotidianos e pensando em detalhes que poderiam beirar o realismo fantástico, tão bem narrados, apesar de não serem escritos. As distorções nos fatos podem, a princípio, ser criticadas, afinal a ideia era fazer um relato científico, baseado no suposto profissionalismo da ciência, que dá veracidade aos fatos de forma quase inquestionável. Porém, se Biá cria fantasias sobre as histórias narradas, os interessados em inundar o local também apresentam dados de forma tendenciosa, omitindo problemas, minimizando impactos e vangloriando as vantagens de uma usina hidrelétrica em um local distante das grandes cidades.

Empunhando a bandeira do progresso e desenvolvimento, em detrimento de comunidades supostamente menores e menos importantes, defensores das usinas hidrelétricas atropelam detalhes primordiais, como por exemplo, para quem se destina o desenvolvimento prometido, já que uma simples sondagem em áreas alagadas com o mesmo intuito (e mesmo discurso) no passado mostrará que as populações ribeirinhas permanecem estagnadas, se não piores em relação ao período anterior ao suposto desenvolvimento. Além disso, mesmo que os povoados inundados pelas represas costumem ser bastante simples, sua população cria raízes – comprovadas pelas histórias narradas em Javé – que não merecem ser simplesmente afogadas por um lago de usina. Ainda que houvesse um programa realmente sério de realocação dos moradores, nuances do local de origem são insubstituíveis, como a personagem do filme que lembra o cemitério da cidade, onde seus antepassados estão sepultados, e agora será submerso para o progresso de cidades e pessoas que aquela população sequer conhece.

A geração de energia é uma necessidade tão grande quanto os problemas que ela gera, não apenas no Brasil, mas em vários outros países que utilizam outras matrizes energéticas. Se a demanda por energia e o potencial hidrelétrico devem ser unidos, o mínimo que se espera – para não entrar no imenso impacto ambiental que uma represa causa – é que o desenvolvimento gerado pela nova usina chegue de fato à população que sacrificou suas terras, suas histórias, suas lembranças, para que grandes centros urbanos pudessem seguir suas vidas como se nada diferente tivesse acontecido. Para que as pessoas tenham histórias, é necessário condições de vida para isso, de forma que não sobrevivam para trabalhar, mas vivam a vida com o direito de extravasar a imaginação e bom humor, tão bem retratados no filme.

Com as discussões sobre a usina de Belo Monte bastante acaloradas, com ambos os lados defendendo bravamente seus argumentos, vemos que não há decisão unânime e plenamente satisfatória, mas os moradores de Javé nos mostram a discrepância de forças entre a população, que só tem suas divertidas e encantadoras histórias, e todo o aparato governamental, capaz de convencer até mesmo de que os impactos de uma hidrelétrica são pequenos. Claro que o filme é um recorte fictício baseado em tantos povoados que passaram e ainda vão passar por situações semelhantes, mas aquele povo passional e divertido sem dúvida é mais esclarecedor que a recente guerra de vídeos sensacionalistas, pró e contra Belo Monte.


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Chico Rei

Uma das grandes funções do cinema é servir de aporte para a transmissão de fatos históricos, que são de suma importância tanto para evitar a repetição de tragédias quanto para evidenciar certos absurdos passados que influenciam muito em nosso cotidiano. Toda história é contada a partir de um ponto de vista, cuja verdade acaba sendo formada por uma dialética entre lembranças e intuitos. Nessa linha de raciocínio temos, por exemplo, inúmeras obras retratando os horrores do holocausto, com algumas delas criadas por judeus que se esforçam em retratar o fato sob o ponto de vista do oprimido, ao invés do opressor.

A Segunda Guerra teve seus campos de batalha distantes do Brasil, mas nosso ‘holocausto’ foi bem mais longo. Durante três séculos negros foram covardemente capturados na África e condenados ao trabalho forçado nas lavouras e minas de ouro na América. Outra diferença para o holocausto é que hoje, judeus como Steve Spielberg podem retratar com maestria a vida de pessoas como Oskar Schindler, enquanto negros brasileiros continuam sofrendo duros preconceitos e enfrentando barreiras sociais e econômicas, que dificultam até mesmo a narrativa da história sob o ponto de vista dos oprimidos. Ainda assim temos algumas obras muito bem elaboradas para a descrição da escravidão. Uma delas, com direção de Walter Lima Junior, conta a história de Chico Rei, lendária figura que pagou pela liberdade de tantos negros quanto lhe foi possível comprar com o ouro que, com mais facilidade que o comum, encontrava nas minas.

Difícil narrar com precisão a vida de Chico Rei, interpretado por Severo d’Acelino, afinal a documentação da época era precária, sobretudo em relação a assuntos vergonhosos como a exploração tão cruel de seres humanos, por isso o filme é baseado em relatos populares e outras obras com o mesmo tema. Mais importante do que o retrato fiel do que aconteceu, é a simbologia criada ao redor do escravo que com sua facilidade para encontrar ouro, poderia tranquilamente viver em paz, mas preferiu salvar o máximo de pessoas possível. Como um tipo de Schindler de sua época, o ex-escravo pode comprar a liberdade de seu povo – aceitando aqui que a liberdade pode ser comprada – o que o torna herói em uma época em que o racismo era institucional e subsidiado até mesmo pela igreja.

Os relatos históricos do transporte desumano, do leilão de escravos, dos castigos, dos abusos e uma série de outras nuances, com a intervenção do cinema ganham a força da imagem, que choca, mas não chega sequer a um vislumbre do que foi viver tudo isso, sentir na pele e na consciência tudo o que nenhuma mente sã seria capaz de criar para rebaixar um ser humano para um estado indigno até mesmo para animais. Se hoje a situação encontrada no Brasil melhorou – já que transformar a escravidão de constitucional para crime, apesar de ser o mínimo, é uma melhora – ainda está longe do ideal e talvez mais próxima da escravidão do que gostaríamos. Em um mundo menos segregado, mas ainda preconceituoso e com fortes bases da estrutura escravocrata, as grandes fontes de renda não são mais minas de ouro, mas grandes empresas cujos donos, não por acaso, nada têm de descendência africana.

Infelizmente o filme fornece vários elementos que nos permite fazer ligação com a sociedade de hoje, não é preciso nem criatividade, basta um jornal, um programa de televisão, ou uma simples caminhada pelas ruas para notar o quanto o período da escravidão nos influencia e como essa influência é absurdamente aceita passivamente. Para piorar – como se precisasse – teorias são criadas ao longo dos anos para tentar atenuar a barbárie e, como sempre, culpar as vítimas por sua condição. Neste caso específico, é frequente atribuir a captura de escravo aos próprios negros de tribos rivais, omitindo convenientemente que essa captura era feita sob a mira de armas de fogo e das ameaças mais torpes.

Esta falácia absurda e ignorante pode ter duas justificativas. Uma delas é a evidente busca de alívio moral daqueles que se recusam a admitir a culpa, preferindo jogá-la na vítima e surpreendentemente não sentir nenhum peso na consciência por isso (caso ainda não tenha ficado claro, faço um paralelo quase infantil para dizer que, ainda que de fato as tribos rivais capturassem outras por vontade própria, a receptação de carga roubada também é crime).

A outra hipótese é bem subliminar no filme: a de julgar os escravos com base na atitude dos europeus; atitude esta que se dá pela lógica de mover o mundo pelos interesses, ao invés dos princípios. Ou seja, é possível ver no filme que, diferente de Chico Rei, que ajudou ao máximo seu povo, europeus que vinham para o Brasil eram explorados pela metrópole portuguesa, de forma leve se comparada com a exploração dos negros, porém a relação entre europeus e senhores de escravos nunca chegou perto da cooperação que havia entre os negros. Como lidar com essa inveja? Jogando a culpa nas vítimas, como sempre.

Essa é uma grande produção da década de 80, obrigatória ao pensarmos em escravidão, assim como o longa “Quanto vale ou é por quilo?”, que adapta Machado de Assis para comparar mais explicitamente a época da escravidão com os dias atuais.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cinema Aspirinas e Urubus

O longa de Marcelo Gomes é um filme de época. A história se desenvolve em 1942, quando o alemão Johann (Peter Ketnath) vem para o Brasil para fugir da guerra que devastava seu continente. Aqui já temos um dos tantos pontos interessantes do filme. Demora um pouco para notarmos que tudo ocorreu há quase setenta anos e durante todo o tempo temos a incômoda impressão de que é um relato atual. A gente surrada pelo tempo, cujas marcas de expressão impedem de estimar a idade, condiz com o cenário rústico, que dá ao filme de época a cara de contemporâneo, uma espécie de desdobramento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que ganhou tons desbotados no lugar do original em branco e preto.

O sertanejo aqui segue os estereótipos quase inquebráveis com Ranulpho (João Miguel), que por acaso aproxima-se de Johann e ambos desenvolvem uma grande amizade, mesmo com tanta diferença cultural entre os dois. O trabalho do alemão é vagar pelo sertão, improvisando um pequeno cinema para exibir um filme sobre os benefícios da aspirina para os moradores da cidade grande. Se hoje, diante do bombardeio de informações e vídeos, as propagandas têm o poder de convencer as pessoas de que elas devem comprar uma coisa da qual nunca sentiram falta – por vezes sem sequer saber qual a utilidade – o que dizer de pequenos vilarejos isolados na década de 40.

Nosso primeiro impacto pode ser o de crítica às pessoas que compram aspirinas sem motivo e acabam gastando o dinheiro que fará falta para comprar bens essenciais. Mas a lógica de exibir uma mercadoria consumida em um local mais desenvolvido, para convencer consumidores de outros locais a comprá-la é reproduzida em várias esferas. Com o mundo globalizado e a facilidade de disseminação da informação, que não precisa mais viajar pelo sertão em um caminhão, improvisando um cinema, uma das principais técnicas de marketing continua sendo a exibição de estereótipos consumindo um produto que posteriormente será oferecido para quem, muitas vezes, nunca chegará perto de atingir o estereótipo da propaganda. Parece que mesmo muitas décadas depois da história narrada no filme, os urubus permanecem por toda parte.

A expropriação do dinheiro dos cidadãos é mostrada mais diretamente através da vendas das aspirinas, entretanto uma outra forma de enriquecimento do privado a despeito do público é citada no filme através do ciclo da borracha, já decadente na época, mas que movimentou muito dinheiro e muita gente ao longo da guerra, quando os nordestinos viram na necessidade de mão-de-obra para a extração do látex na Amazônia o vislumbre de uma vida melhor. O resultado é bem conhecido do povo brasileiro, quer dizer, alguns poucos enriqueceram o suficiente para manter infindáveis gerações de sua prole como poderosos donos de terra, não necessariamente brasileiros, basta lembrar que uma cidade da região amazônica se chama Fordilândia, uma ‘homenagem’ a Henry Ford, que investiu na extração de matéria-prima na região.

O que o filme deixa implícito, e a história nos revela, é que o ciclo da borracha foi um gérmen das parcerias público-privadas atuais, onde o estado entra com o investimento – neste caso custeando o transporte dos trabalhadores do nordeste para a região norte, além de toda assistência necessária para a população amazônica, que cresceu subitamente – e as empresas ficam com o lucro de tudo que é extraído, pagando taxas irrisórias perto do valor arrecadado com matéria-prima.

Entre tantos pontos do filme que poderiam ser ressaltados aqui, vale lembrar que em meio a tantas insanidades que rondaram a Segunda Guerra, cujos preceitos nazistas continuam a nos assombrar através de ignorantes que insistem, algumas décadas depois, em pregar intolerância e a tão ridícula quanto inexistente superioridade racial, destaca-se a bonita amizade entre um alemão, contrário à guerra, e um nordestino, que pouco sabe sobre o teor do conflito. Provavelmente essa relação não foi intencional, mas usar uma nacionalidade que em tempos de guerra remete ao nazismo, e um estereótipo tão atacado pelo nazismo velado em nosso país obteve um ótimo resultado ao mostrar que a convivência pacífica no plano individual pode acontecer livremente. Sem intolerância, sem preconceito, sem ignorância.

É mais uma ótima produção nacional, que obteve pouco destaque. Faz pensar na tela itinerante que Johann levava sertão adentro pode ser uma alternativa interessante, ao menos em curto prazo, para a escassez de cinemas pelo interior do país. Se serviu para a divulgação das aspirinas, sem dúvida serviria para a divulgação da cultura, essa sim presente massivamente em centros urbanos e pólos desenvolvidos e tão necessária para áreas distantes e carentes.


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