terça-feira, 24 de junho de 2014

Cine Holliúdy

Ao longo do séc. XX Hollywood se tornou a maior referência do cinema em todo o mundo. É na década de 70, no interior do Ceará, que se desenvolve a história do diretor Halder Gomes, fazendo referência ao polo norte-americano e mantendo as raízes locais, resultando no primeiro filme falado em ‘cearencês’.

Uma forma de entretenimento atrativa e potencialmente barata, o cinema já foi bem mais popular até sofrer concorrência com a popularização da TV. Ainda que a programação seja bem diferente a televisão, junto com vários outros fatores, foi determinante para o declínio das salas de cinema.

Felizmente o cinema conta com apaixonados como o protagonista Francisgleydisson (Edmilson Filho), que dedica sua vida para manter uma sala de exibição. Após fracassar, sua nova tentativa é na cidade de Pacatuba.

Antes mesmo de entrar no campo do cinema, a história do filme trabalha com os sonhos. Não é apenas através do objetivo de Francisgleydisson de abrir um cinema, mas toda a vida do personagem é permeada por um universo onírico que extrapola as fronteiras tradicionais e cotidianas do real.

Essa insatisfação com o cotidiano é fundamental para o cinema, que tem como uma das funções o entretenimento, mexendo com o imaginário popular. Inserir novos elementos no dia-a-dia daqueles que vivem na eterna rotina de trabalho desgastante amplia horizontes e dá novos sentidos ao que vivemos.

Se a questão fosse somente o conteúdo a televisão poderia, ao menos em parte, suprir a lacuna da falta de uma sala de cinema, porém, como fica claro no filme, uma sessão em uma sala específica proporciona grande mobilização direta e indireta. Exibir um filme implica em reunir pessoas, aproximar vizinhos e apresentar desconhecidos.

Diferente da programação televisiva, que tende a ter um fim em si mesma, uma exibição coletiva proporciona a interação e a troca de impressões entre os presentes, sendo os benefícios indiretos desse contato muito valiosos.

A intervenção dos televisores é paradoxal na época retratada no filme, pois a pequena quantidade de aparelhos, restritos às famílias mais ricas, acabavam reunindo várias pessoas para acompanhar a novidade de assistir a um filme ou a um programa no conforto do lar, porém não demorou muito para que a popularização dos televisores mantivesse cada família entretida na sala de sua própria casa.

Hoje essa individualização chegou ao extremo de cada cômodo ter um aparelho de TV, possibilitando a cada membro da família permanecer em seu próprio quarto, ainda que sintonizando o mesmo canal.

Com uma programação pobre e grade cinematográfica repetitiva, a supremacia da televisão foi construída a passos largos e hoje se sustenta com facilidade. As salas de cinema são raras e concentradas em grandes centros urbanos. Distantes da periferia e com ingresso mais caro do que muitas famílias podem pagar, as grandes empresas do ramo se instalam em shoppings, vendendo a imagem de segurança e comodidade para a pequena parcela de frequentadores.

Assim como é demonstrado através da pequena Pacatuba, a população pode não ter o hábito de ir ao cinema – pudera com tantos fatores contrários à prática –, porém existe grande demanda por entretenimento e muita curiosidade para conferir os filmes na telona.

Sem adiantar os conflitos necessários para o enredo da obra, notamos que não é apenas o filme que atrai a população, mas o universo onírico que encanta crianças e adultos. Em uma sociedade ainda não contaminada pelo espírito utilitarista que impõe uma vida regrada e séria, os moradores seguem muito mais próximos da tranquilidade e vida despojada, aberta às histórias fantásticas e fantasiosas do cinema e de Francisgleydisson.

Quem deveria estar atento e próximo à vontade da população seria o prefeito da cidade, mas como sempre a política tende a colocar os próprios interesses acima do interesse do povo, jogando com o investimento cultural conforme os votos que este possa garantir.

Cine Holliúdy é uma forma lúdica de mostrar um problema sério, que teve início por volta da década de 70, mas com desdobramentos extremamente presentes em nossa sociedade. As salas de cinema são cada vez mais raras, a população carente de cultura e os políticos negligenciando essa expressão artística com enorme potencial, que pode muito bem ser melhor aproveitado.


terça-feira, 10 de junho de 2014

O Passado (Le Passé)

Apesar de o diretor Asghar Farhadi ser iraniano, esta é uma produção francesa. O protagonista Ahmad (Ali Mosaffa) retorna de Teerã a Paris para legalizar o divórcio com Marie (Bérénice Bejo). A consequência dos quatro anos de separação é que Marie queria oficializar o fim do matrimônio para casar-se novamente.

A francesa mantem um relacionamento com outro iraniano, Samir (Tahar Rahim), e o que chama a atenção é que a presença de elementos da cultura iraniana não chega influenciar diretamente na trama. A tensão e o desconforto dos encontros e desencontros do filme são típicos da cultura ocidental, que por si já é machista, porém livre dos extremismos islâmicos que exacerba as diferenças de gênero no Irã.

O que o filme proporciona com muita competência é a reflexão sobre o conflito entre hábitos que vêm se concretizando na sociedade recentemente e valores morais ainda não superados. Até pouco tempo atrás a quantidade de divórcios era muito menor e, ao menos no Brasil, o divórcio só passou a deixar de ser proibido por lei em 1977 – claro, não quer dizer que as separações não acontecessem informalmente.

Nem estado nem igreja devem ter o poder de intervir na vida dos indivíduos a ponto de obrigarem um casal a permanecer juntos. Assim, o direito ao divórcio é uma conquista que hoje nos parece bastante óbvia – no Brasil ou na França, mas não no Irã. Porém a liberdade individual de poder dissolver um casamento não foi acompanhada de uma conciliação equilibrada entre indivíduo e sociedade.

Por mais que por ventura nos identifiquemos com o individualismo contemporâneo, não podemos, e no fundo nem queremos, nos afastar totalmente da vida em sociedade. Assim o divórcio ocorre, mas as relações sociais ainda existem e deve ser rearranjadas.

É com base nessas relações tensas que o filme de Farhadi se desenvolve, afinal, Ahmad não se opõe ao divórcio nem tem pretensão de retomar o relacionamento, porém isso não desfaz a tensão e o desconforto de seu encontro com Samir. Em nenhum momento é colocada a questão da divisão de bens ou algum problema mais direto, mas o estranhamento entre os dois conterrâneos é visível.

Conflitos são inevitáveis e é diante deles que nossa racionalidade deve se sobrepor, dando uma solução viável para o problema. Apesar disso as relações sociais são complexas, assim como os conflitos que surgem diante da necessidade de rearranjar cenários. Ainda que os três adultos em questão tenham atitudes relativamente maduras, eles não são os únicos envolvidos na história.

Marie tem uma filha pequena, mas é o filho de Samir, mais ou menos da mesma idade que a menina, quem mais sofre com a separação e novo relacionamento do pai. Sobretudo depois dos anos 70 as gerações vêm enfrentando grandes mudanças em relação à predecessora. O choque de gerações pode ser bastante comum, porém há certa continuidade dos valores.

Uma grande mudança, como o súbito aumento de divórcios e novos casamentos que ‘herdam’ os filhos de uma relação anterior, implica em uma nova geração sem muitas referências sobre como agir. Por um lado há a liberdade de agir, por outro a dificuldade de não saber balancear as vontades individuais com as obrigações diante das poucas pessoas envolvidas.

Não bastassem as crianças pequenas, Marie ainda tem uma filha adolescente com Ahmad, que não aceita o novo relacionamento da mãe e tem um sério problema com a ex-mulher de Samir, que está em coma. Paira sobre os motivos desse estado de coma uma trama bem interessante, com várias hipóteses plausíveis. É fato que ela está nesse estado por tentar suicídio bebendo detergente, mas o que a levou a tomar essa decisão pode ou não envolver a adolescente.

Por um lado podemos pensar em como as partes envolvidas em um caso complexo devem se relacionar com cuidado, mantendo seus direitos ao mesmo tempo em que levam em consideração o impacto que algumas atitudes terão sobre as pessoas próximas. Por outro lado, para Samir, haveria alguma maneira de permanecer ao lado de alguém capaz de cometer suicídio por ele?

Asghar Farhadi traz influências do cinema iraniano para o filme, mas retrata uma estrutura social muito identificada com a cultura ocidental. Mostra um tipo de relação social cada vez mais comum, mas que ainda é tratada de forma bastante imatura por muita gente. Em muitos pontos ‘O Passado’ pode ser encarado como didático, mas deixa claro que separações e novos relacionamentos são permeados por relações bem complexas.


terça-feira, 3 de junho de 2014

7 Caixas (7 Cajas)

O protagonista do filme de maior destaque do cinema paraguaio é Vitor (Celso Franco), um jovem de 17 anos que trabalha como carregador no Mercado 4. Em meio às vielas cobertas precariamente com lonas e divisórias improvisadas com caixotes de madeira, o garoto é um dos que passam o dia a procura de compras para carregar e conseguir algum trocado.

Os diretores Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori dão à história daquele que poderia ser apenas mais um carregador uma intrincada rede de problemas, expondo vários absurdos naturalizados por uma sociedade habituada a viver da maneira retratada.

Para os que passam o dia no mercado, independente de qual seja a função, o cotidiano é hostil, competitivo e violento. Não obstante, Vitor se encanta com um celular com câmera, que passa a ser seu sonho de consumo. Racionalmente o objeto não faria nenhuma diferença em sua vida. Não haveria muito que filmar, tão pouco muitas ligações a fazer ou receber.

Ao olharmos para alguém que julgamos precisar de outros bens, mas dá preferência para algo aparentemente inútil, costumamos cometer o erro de não olhar para nossas próprias compras ou desejos. Imersos em um sistema capitalista, somos induzidos o tempo todo a comprar algo que não precisamos, mas que aparentemente nos dará status, respeito, aparência, etc.

Com a ideia fixa de ter um aparelho celular, Vitor aceita um bico de transportar sete caixas pelo mercado, sem saber qual o conteúdo e sem um destino certo. Ele apenas receberia uma ligação em um celular emprestado e teria as instruções. Para o serviço aparentemente simples receberia cem dólares.

Misturando ainda mais nossa noção de certo e errado há o personagem Nelson (Víctor Sosa), que também é carregador e não tem dinheiro para comprar remédio para o filho. Costuma ser tolerável que um pai não meça esforços para cuidar da saúde do filho e isso faria com que déssemos preferência a Nelson no lugar de Vitor. Porém os personagens são construídos de forma invertida.

O conteúdo das caixas demora a ser revelado (e não será revelado aqui), mas desde o começo fica evidente que se trata de algo proibido. A partir daí a imagem de Vitor é construída como a de um menino explorado, que tenta a todo custo driblar os perigos que o cercam e realizar seu objetivo. Enquanto isso Nelson lidera um grupo que não medirá esforços para conseguir as sete caixas e, de alguma forma, transformá-las em dinheiro.

Talvez pela cena em que Nelson não consegue comprar remédio na farmácia ser muito curta, isso acaba tendo pouco peso ao longo do filme, contribuindo para a montagem de uma falsa dicotomia entre bem e mal, onde o agora herói Vitor luta ao lado de poucas personagens contra todo o resto que, cada um a sua maneira, promove trapaças e ilegalidades para ter alguma vantagem.

O desenrolar da história mostra uma trama bem amarrada e desenvolvida, com crimes, elementos policiais, amores e desavenças, mas diferente das grandes produções hollywoodianas, aqui a história acontece no submundo, onde o cotidiano dos personagens, mesmo sem o cerne do enredo, já seria o de luta pela sobrevivência em um mundo hostil.

Alguns momentos cômicos do filme vêm exatamente das paródias criadas com base de conteúdo consagrado em clássicos policiais, devidamente adaptadas ao cenário do mercado. O fato de o enredo ser verossímil pode indicar certas semelhanças sociais entre países distintos, porém os grandes filmes policiais costumam mostrar os protagonistas em um episódio de exceção em seus cotidianos. Em Sete Caixas a impressão é que aquele é o cotidiano.

Excluindo as tais caixas e toda a confusão que elas proporcionaram, o que o mercado de Assunção tem a mostrar? Os mesmos carregadores que trabalham desde cedo levando mercadorias pelas vielas, os policiais facilmente subornados, um ambiente hostil em que as pessoas vivem tensas, comida de baixa qualidade, trabalho mal remunerado, etc.

Uma estrutura social tão precária e condições de vida tão duras não justificam atitudes ilegais, mas ao menos nos colocam em uma posição muito mais desconfortável ao tentar julgar o comportamento de alguns personagens. Podemos saber o preço de um remédio, mas seu valor só pode ser dado pelo pai que precisa compra-lo ao filho.

Menos relevante, um celular de cem dólares pode não despertar grandes sentimentos para quem vive cercado de tecnologia, porém o impacto sobre um adolescente que vive para trabalhar e comprar comida é distinto e um simples aparelho com câmera pode se tornar um desejo de consumo dos mais irresistíveis. 


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