terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A memória que me contam

Um grupo de amigos se reúne na sala de espera de um hospital, a espera de notícias de uma paciente, membro do grupo. A particularidade é que a união desses amigos aconteceu algumas décadas atrás, quando todos combatiam a ditadura militar. 

Quem está internada é Ana, personagem inspirada na guerrilheira Vera Sílvia Magalhães, que aparece no filme somente na memória dos personagens representada por Simone Spoladore, ou seja, ainda jovem.

A diretora Lucia Murat foi muito precisa na escolha do título do filme. Quando um grupo de pessoas se reúne e começa a lembrar algum fato vivido o resultado é uma versão formada dialeticamente por fragmentos fornecidos por cada um. Por mais que tenhamos certeza de fatos passados, nossa lembrança é inevitavelmente impregnada por sentimentos que moldam nuances dos acontecimentos.

Essas divergências criam vários conflitos entre os amigos, que ao discutirem acabam abordando questões da ditadura que não devem ser esquecidas, e a reação de boa parte da população ao recente relatório elaborado pela Comissão da Verdade – criada para investigar crimes cometidos durante a ditadura – mostra o quando é importante contar essas memórias a partir do ponto de vista de que foi oprimido.

Os personagens demonstram, cada um a sua maneira, que as consequências do período militar ainda estão presentes em suas vidas, o que é bastante plausível, pois mesmo que já tenha passado quase trinta anos do fim da ditadura, as cicatrizes psicológicas deixadas nos combatentes são profundas e reavivadas por uma visão preconceituosa contra aqueles que lutaram pela liberdade.

Difícil de acreditar, mas ainda hoje há quem aceite que vivemos o risco de um golpe que instale uma ditadura chamada de comunista e ainda hoje há quem defenda um golpe militar que instale uma ditadura contra essa ameaça. É esse argumento pífio que é utilizado até hoje para justificar os crimes cometidos pelos militares ao longo de 21 anos de nossa história.

Trinta anos depois da reabertura política, não podemos dizer que vivemos um período político tranquilo. Um detalhe extremamente relevante é que nunca houve uma tranquildade consistente em nossa política. Se pensarmos na política como um retrato da sociedade que ela representa, a disparidade social gritante que marca a história do Brasil impossibilita uma política minimamente satisfatória, já que a despeito da sociedade pluralizada, os políticos são formados quase exclusivamente pelas classes mais altas.

Com a mídia assumindo papel de principal formadora de opinião da sociedade, ela molda a história de acordo com seus interesses. Apoiou a ditadura quando considerou necessário, retirou o apoio quando já não era preciso e agora auxilia na criminalização de movimentos de esquerda, associando militantes a criminosos.

Essa visão enviesada é um dos alvos dos diálogos do filme. Com uma direita mais coesa e homogênea, unida para a defesa de seus próprios interesses, a esquerda juntava forças esparsas e difusas para lutar por liberdade e justiça social. Multifacetados, os militantes políticos lidavam com as divergências internas com longos debates e deliberações, diferente do autoritarismo do governo vigente.

A partir do momento em que o governo democrático brasileiro foi derrubado e o poder foi tomado de forma ilegítima, ações civis começaram a ser coordenadas como resistência, daí surgem assaltos a bancos para financiar a guerrilha, além do famoso sequestro do embaixador norte-americano, do qual participou Vera Sílvia Magalhães. Hoje é cômodo e conveniente aos militares alegarem que a ditadura apenas combatia esses militantes ditos ‘criminosos’, porém tais delitos só existiam em represália ao governo sem legitimidade política.

Beneficiados pela insana lei da anistia, militares alegam que os revolucionários também não foram punidos por seus atos, omitindo pertinentemente as sessões de tortura física e psicológica pelas quais os opositores do regime foram submetidos. O filme retrata as torturas de forma tímida. Podemos ver alguns personagens que apresentam sintomas, desde os mais leves até a loucura em nível mais crítico, porém uma barbárie tão cruel talvez merecesse mais destaque.

Escondendo-se por trás da censura e toda rigidez que protegia o governo da época, os militares de hoje exaltam o crescimento econômico da ditadura e indicam os escândalos de corrupção atuais para forjar uma defesa ética. A imprensa, que hoje conta com a liberdade impensável no auge da ditadura, poderia ao menos esclarecer para a população como a dívida externa do país disparou para sustentar o aparente crescimento e como a corrupção era incalculável e omitida através de censura rígida.

A memória que o filme conta é bem distinta da estória que os militares contam. Independente de qualquer visão política é uma memória que deve ser revisitada com frequência, contada por pessoas que merecem antes de tudo muito respeito, não apenas pela obstinação com que lutaram, mas também pelos castigos físicos e psicológicos que tiveram que passar para que o país pudesse se livrar de um período tão sombrio.


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Boyhood - Da Infância à Juventude

Não é raro que devido a dificuldades financeiras um projeto cinematográfico se estenda por vários anos até sua versão final, porém não é esse o motivo que levou o diretor Richard Linklater a demorar doze anos para a conclusão de sua obra.

Ao invés de utilizar vários atores para retratar a vida do protagonista Mason (Ellar Coltrane), todo o elenco foi reunido uma vez por ano para filmar uma sequência, finalizadas em um corte de quase três horas, acompanhando não apenas Mason, mas também seus parentes próximos ao longo de mais de uma década.

É possível imaginar algumas dificuldades para a realização de um projeto tão inusitado e peculiar. Sem dúvida o roteiro teve que passar por adaptações e o enredo não conta com nenhum grande tema. Uma narrativa bem linear mostra de forma bastante clara as dificuldades que encontramos da infância à juventude e como o contato com uma série de pessoas ao longo dos anos influencia nos moldes de nossa personalidade.

Mason e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater) não foram planejados, o jovem casal formado pelos pais logo se separou e a guarda das crianças tendo ficado com a mãe acaba dando ênfase na vida de Olivia (Patricia Arquette). Criar filhos não é fácil, sobretudo quando essa tarefa cai no colo de uma pessoa que acaba de deixar a adolescência, com a expectativa de viver a vida sem as amarras familiares da juventude.

Olivia se desdobra para ser a melhor mãe possível, cuidar da própria carreira e conciliar tudo com sua vida pessoal. Gravado no extremamente conservador estado do Texas, a imagem que o filme nos passa do pai das crianças não poderia ser outra. Mason Sr. (Ethan Hawke) não chega a ser um pai ruim, porém passa tão pouco tempo com os filhos que dependeria de um grande esforço para utilizar alguns poucos fins de semana para além da ausência ainda tomar atitudes ruins.

É evidente que ser um pai ausente deixando nas mãos da mãe praticamente todo o trabalho pesado já faz com que Mason Sr. não seja um exemplo. Apesar disso, é possível encontrar em meio a esse machismo alguns diálogos bem produtivos entre pai e filho, com conselhos preciosos e, com a falta de jeito natural diante de algumas situações, as devidas instruções que nem sempre são feitas por pais fisicamente presentes em tempo integral.

Como não acompanhamos a vida de Mason Sr. fora do contato com as crianças, não existe a certeza dos percalços em seu caminho, mas sem dúvida a distância das crianças dá a possibilidade de uma margem de erro muito maior. Olivia tem todo o direito de seguir sua vida, a diferença é que novos relacionamentos, conturbados e complexos para qualquer pessoa, ganham um peso maior quando crianças estão envolvidas.

Neste ponto o machismo texano é gritante. É possível que a dificuldade de relacionamento com os filhos seja superada pela dificuldade de relacionamento com os enteados, o que não alivia a tentativa quase infantil de padrastos querendo se impor de forma desnecessária e excessiva. A tentativa mais que compreensível de Olivia de proteger os filhos esbarra inevitavelmente no desgaste de relações entre todos os envolvidos, inclusive dela com as crianças, cuja visão de mundo muito mais objetiva e prática dificilmente compreende certas complexidades desnecessárias dos adultos.

Entre idas e vindas os personagens crescem, os adultos amadurecem e o ciclo mais comum da vida em sociedade vai aos poucos sendo completado. Em alguns pontos é possível notar as cenas um pouco desconexas, até pelas características da filmagem, sem que isso influencie na qualidade da obra.

Em um filme tão longo, nem sempre é o protagonista Mason que está em evidência, há espaço para os que o cercam, ainda assim acompanhamos os processos mais importantes do menino que passa pelas dificuldades de cada fase até chegar à universidade. Ao contrário das expectativas que se cria ao redor de um protagonista, ainda que a vida de Mason guie o filme, são as entrelinhas de sua vivência que dão vivacidade às tramas.

A vida de Mason poderia ser mostrada de uma forma mais simples e resumida, utilizando vários atores para que as filmagens não demorassem tanto, porém as relações sociais que permeiam o protagonista perderiam força. O acaso que nos faz encontrar com pessoas desconhecidas, com o poder desconhecido de mudar nossas vidas em poucas palavras é construído ao longo do crescimento de Mason nestes doze anos.

Essa característica de ter uma história sustentada por frágeis detalhes está presente em todos nós, mas poucas vezes paramos para pensar no que nos estrutura. Por mais que tenhamos sonhos e idealizemos nossos passos, fechar os olhos para os imprevistos seguindo a risca cada meta pode ser mais prejudicial que benéfico.

Neste sentido Olivia ganha destaque no filme. Depois de um início fundamental a mãe passa a ter participações discretas, ainda que importantes, mas quando vemos a trajetória dos filhos, da qual ela não só faz parte como também tem participação ativa, é possível notar como ela superou os imprevistos da vida sem muita noção de como agir, mas com a determinação de quem não quer abrir mão de poder olhar para trás e notar que fez seu melhor.

Particularmente me decepcionei com seu último diálogo com Mason – sem detalhar o conteúdo para não dar spoiler – ainda assim, nada que comprometa a produção inusitada de uma filmagem de doze anos, rica em relações complexas, que expõe qualidades e defeitos de pessoas que vivem a vida em um constante improviso.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom)

Com este filme o diretor Kim Ki-duk nos apresenta uma alternativa à cultura ocidental que prevalece nos longas que estamos habituados a assistir. O drama conta com partes de humor que quebram a tensão e não impedem nossa reflexão sobre alguns pontos.

A base do enredo é uma cabana isolada entre as montanhas, no centro de um lago, onde vivem um velho monge (Yeong-su Oh) e seu aprendiz (Ki-duk Kim). O cenário deslumbrante, característica marcante de vários filmes orientais, ganha destaque com a pouca, porém destacada, intervenção do homem na natureza.

Muitos elementos da cultura e religião local permeiam a vida dos dois monges, cujos hábitos os mantêm em grande harmonia com a natureza. Mesmo sem ter grande familiaridade com os costumes, vemos que o culto à divindade não é parte das atividades diárias, mas uma prática constante e indissociável do cotidiano, marcando presença de forma contínua na vida de ambos, desde a infância até a velhice.

Como elo entre as fases da vida, unindo homem e natureza, temos as estações do ano, bem distintas naquela região. Associando as características das estações com as fases da vida – sobretudo do jovem monge – o diretor consegue deixar bem clara a ideia de ciclos que se alternam, dos quais fazemos parte.

Na primavera, como sinônimo de florescência, vemos a infância do jovem monge, brincando e descobrindo detalhes da vida como qualquer criança, mas distante de qualquer contato com a sociedade. Sua única referência é o velho sábio, que passa conhecimento de forma prática e por vezes bastante dura.

Corroborando a ideia do verão como ápice da vida, uma fase posterior às flores desabrochadas, na qual o calor aquece e também estimula, é de se esperar que a vida do monge ganhe elementos que traduzam esse esplendor associado ao verão. Isso é expresso através de uma mãe que, devido à sabedoria do velho monge, traz sua filha (Yeo-jin Há) para ser curada de uma apatia que nossa cultura nos induz a diagnosticar como depressão.

O roteiro se desenvolve de forma previsível. É evidente que haverá algum tipo de atração entre os dois jovens. O monge e a nova hóspede têm mais ou menos a mesma idade e apesar de não sabermos nada sobre a vida dela, em relação ao jovem é provável que tenha sido seu primeiro contato com o sexo oposto.

Essa previsibilidade prática não impede a riqueza das metáforas e de análises possíveis. O velho sábio tem seus hábitos bastante rígidos; é curiosa a presença de portas, cuja passagem é respeitada mesmo com a ausência de paredes, que do ponto de vista prático inutiliza a existência. A presença da moça é o que desestabiliza o dia-a-dia dos monges, fazendo com que pela primeira vez o mais novo passe a questionar e desrespeitar as tradições que ele nunca havia pensado em mudar, desequilibrando assim a relação com o tradicionalismo de seu mestre.

Entre as poucas falas do filme, destaca-se uma afirmação do velho monge: "A luxúria desperta o desejo de possuir. E isso desperta a vontade de matar." Pensando no estilo de vida que temos não nos resta alternativa senão acreditar que há formas distintas de lidar com a posse e com as vontades, embora não faltem exemplos que corroborem a afirmação.

As ações do filme se restringem à cabana isolada, com a interação de poucos personagens, ou seja, é provável que o jovem monge tenha recebido ensinamentos valiosos de sem mestre, mas não foi socializado. Alguns de nossos valores e sentimentos são tão enraizados que não percebemos tê-los devido à proximidade com a vida em sociedade, da qual absorvemos características.

Geralmente nos deparamos com uma interpretação romantizada de um velho sábio que vive à margem da sociedade, mas com muita sutileza o filme nos mostra que esse isolamento exacerbado pode ser trágico quando de alguma forma esse contato social precisa existir. Na melhor das hipóteses o jovem monge ainda não atingiu um estágio suficiente de maturidade para lidar com os fatos inusitados provenientes de contatos insólitos.

O simples fato de viver em sociedade não implica em desenvolver certas habilidades, afinal a relação entre luxúria, posse e morte é muito mais frequente do que deveria em qualquer cidade, mas tentar resolver esse determinismo trágico simplesmente se afastando do contato social não parece ser de fato uma solução, mas uma frágil aparência de paz interior.

Mais eficiente seria tirar proveito do conhecimento do velho sábio, aplicando seus ensinamentos para suavizar certos sentimentos e tornar a vida em sociedade menos hostil ao invés de exacerbar a hostilidade por conta do estranhamento que a distância proporciona.


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