quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Rota Irlandesa (Irish Route)


O longa do diretor britânico Ken Loach cumpre o papel de reforçar denúncias de abuso por parte de soldados na guerra do Iraque. Por mais que isso seja claro para boa parte do mundo, ingleses continuam sendo o segundo país que mais têm soldados no país, com o apoio (construído) de boa parte da população.

Apesar do combate propriamente dito ter sido rápido, o desdobramento do conflito na região continua apresentando consequências lamentáveis e intervenções externas que ferem a soberania do Estado. Um exemplo é a atuação de empresas particulares investindo na segurança privada, aproveitando-se do medo constante gerado pela instabilidade.

Neste contexto o protagonista Fergus (Mark Womack) convence seu amigo de infância Frankie (John Bishop) a trabalhar no Iraque, pois superando o perigo o faturamento financeiro é altíssimo. É após a morte de Frankie na chamada Rota Irlandesa – indicada no filme como a rota mais perigosa do mundo – que alguns episódios suspeitos vêm à tona e Fergus, já na Inglaterra, passa a investigar a morte do amigo, junto com Rachel (Andrea Lowe), a então namorada de Frankie.

Tradicionalmente o britânico assassinado em um país que vive período tão tenso seria visto como herói, mas este papel é desconstruído pelo diretor, que traz nuances da atuação britânica – militar ou civil – que podem parecer imprecisas para o público de outros países. Acompanhamos a guerra com outro viés e com outras intenções, muitas vezes até acreditando que serve para levar a paz para o oriente, mas geralmente com um olhar muito menos inocente.

Ainda que para nós não seja tão necessário a revelação de interesses econômicos por trás da invasão, há lições importantes que o filme apresenta e que podem perfeitamente se relacionar com situações bem mais próximas à nossa realidade.

Primeiramente Fergus, totalmente passional e impulsivo, abre mão de qualquer tipo de regra para conseguir investigar os pormenores da morte do amigo e em seguida fazer justiça com as próprias mãos. É um caso bastante específico e o estado britânico além de não ter interesse em investigar, ainda se empenha ao máximo em esconder determinadas mazelas que rondam a desastrosa invasão ao Iraque.

A despeito disso, a justiça é sempre refém de equívocos, e quando a tentativa de sua execução não tem amparo legal, suas consequências parecem ser ainda mais devastadoras, por não caírem sobre uma instituição responsável, mas sobre um indivíduo em particular.

Além disso, o filme deixa claro que empresas que atuam em um nicho estatal (como a segurança da população), não fazem isso por benevolência. O objetivo dos amigos britânicos não era garantir a segurança da população iraquiana para que as pessoas pudessem exercer suas atividades, mas sim ganhar dinheiro – o máximo possível.

Delegar um serviço de cunho estatal a uma empresa privada, seja no Iraque, seja no Brasil, através de milícias ou empresas legalizadas, implica em relacionar um serviço ao lucro, não bastando que a segurança seja estabelecida, mas que o lucro seja potencializado. Uma empresa não mede esforços para maximizar seu faturamento e muitas, talvez a grande maioria, tem valores muito pouco sólidos quando se deparam com grandes somas de dinheiro em potencial.

O resultado nós podemos conferir diariamente no Brasil, ou, com outra roupagem, no filme em questão. As informações são distorcidas por todas as partes envolvidas, fazendo com que os fatos sejam desfeitos em versões. Não por coincidência, aqueles que têm mais dinheiro têm também um retrospecto de versões mais aceitas.

A prova incontestável do poder do capital diante de versões conflitantes é a própria justificativa da guerra no Iraque. Ainda que Saddam Hussein nunca tenha chegado perto do que se espera de um governante, as inexistentes armas de destruição em massa nunca renderam sequer uma advertência verbal àqueles que até hoje mantém tropas no Iraque.

A crueza com que algumas cenas do filme são mostradas pode ser chocante para padrões cinematográficos, mas não passa de um vislumbre se comparado à dureza de uma guerra real. A guerra, que a princípio envolvia armas e mísseis, mantém sua crueldade inerente, mas entra na fase da disputa de capital por parte de empresas privadas. Para quem vive a insegurança do conflito ou já perdeu pessoas próximas devido ao combate, há alguma diferença?


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Bullying (Bully)


Com base em um problema antigo, que só recentemente passou as ser divulgado com a devida atenção, embora ainda esteja longe de receber os cuidados necessários para que seja erradicado ou ao menos reduzido, o diretor Lee Hirsch apresenta seu documentário, fortemente ligado à exposição de casos reais.

Hirsch optou por inserir apenas algumas entrevistas para explicar e dar fluência às cenas gravadas em escolas, que flagram diversos tipos de agressões aos protagonistas. Assim o problema fica amplamente exposto, mas acaba sendo pouco conclusivo. Todas as interpretações ficam por conta daqueles que assistem ao filme, imersos em fortes emoções que o cinema tem a incrível capacidade de suscitar.

Ainda assim o conteúdo apresentado torna-se cada vez mais importante, sobretudo àqueles que, de uma forma ou de outra, tem algum contato com a realidade de preconceitos na infância, fase que deve ganhar mais atenção devido ao caráter fundamental na socialização dos indivíduos.

O bullying, no filme e fora dele, apresenta-se como um caldeirão de preconceitos, unindo o racismo, homofobia, machismo, xenofobia e tantas outras formas de humilhação, expressando-se muitas vezes em agressões físicas e gratuitas. Ainda que a vítima não tenha necessariamente a característica do preconceito em questão – não é necessário que seja de fato homossexual para ser alvo da homofobia, por exemplo – esse tipo de agressão é tão presente quanto negligenciada.

No filme a escola é o único ambiente retratado, embora não seja de fato o único local que a prática possa ser encontrada. Esse limite de espaço é pertinente. Todos os estudantes retratados são jovens, que devem lidar desde cedo com a hostilidade, mesmo sem a maturidade que poderia implicar em maior discernimento.

A referência que as crianças costumam buscar nos adultos diante de qualquer dificuldade nesta época da vida é absurdamente desfeita quando vemos os responsáveis pela escola eximindo-se de qualquer culpa e, pior, fazendo o possível para jogar a responsabilidade na vítima. Não chega a ser surpreendente que este fato se repita cotidianamente na vida adulta, pois podemos notar com frequência acusações de que uma mulher estuprada supostamente provocou seu estuprador, ou que um homossexual agredido agiu de forma a justificar a violência sofrida.

A naturalidade ao tentar culpar aquele que está na condição de vítima, assim como a forma com que o agredido encara a situação, forma-se desde os primeiros anos de infância. Para quem assiste o documentário pode parecer confuso que um garoto volte apanhando dentro do ônibus, sem nenhum motivo que pudesse ser usado como falsa justificativa, e diga que seus agressores eram seus amigos, porém a noção de amizade e até mesmo de agressão devem ser desenvolvidas socialmente, por meio de exemplos e contraexemplos.

Aos poucos fica claro que aquelas crianças, quando reagem ou quando toleram com naturalidade as agressões, agem por acreditar que é a maneira correta, e acreditam por assumir uma culpa que não lhes cabe, mas é apreendida aos poucos, iniciada pelos colegas e referendada pelos funcionários complacentes com a violência. Essa naturalização de atos inadmissíveis torna-se tão enraizada que passamos a encarar com indiferença quando uma vítima é culpada.

Seguindo a conclusão do documentário, o ápice dessas agressões são os casos de suicídio provocados pela humilhação aos jovens. Esses casos promovem as reações por parte de pais e amigos, talvez as únicas que se contrapõe à indiferença com que os profissionais da educação lidam com o problema ao longo do filme. Esta também é uma tendência social, ou seja, a valorização daquele que chama mais a atenção; o que explode, interna e externamente. Porém para cada suicida há uma série de vítimas caladas, que sucumbem de outras formas.

Assim como em uma sala de aula o estudante bagunceiro é taxado de problemático, enquanto o mais calado, com seus problemas internos passa despercebido, as consequências do bullying também podem se expressar de forma silenciosa, bem mais discreta que um suicídio.

Quando a socialização é comprometida desde suas primeiras lições, ainda na escola, dificilmente o indivíduo vai recuperar esse aprendizado em uma etapa muito posterior de sua vida. É claro que muitos superam seus traumas e seguem a vida normalmente, mas por certo muitos seguirão suas vidas cometendo uma espécie de suicídio social.

Se no filme o garoto não sabe sequer diferenciar amigos de agressores, o que esperar de seu discernimento quando chegar à vida adulta, tendo que se relacionar em um ambiente de trabalho ou em um namoro? A descriminação poderá mudar de forma, atuando de forma sutil, silenciosa, mas inevitavelmente preconceituosa e ignorante, agora em relação às atitudes que fogem do padrão, pela deficiência de socialização que atuou fortemente em uma etapa essencial.


terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Era uma vez eu, Verônica


A personagem do título, interpretada por Hermila Guedes, traz à tela a vida da médica psiquiatra recém-formada, que trabalha como residente em um hospital de Recife e passa a ter que viver na prática a relação nem sempre harmoniosa entre médico e paciente. Mais que isso, o diretor Marcelo Gomes apresenta as angústias de uma Verônica ora médica, ora paciente, que se vê subitamente imersa em um oceano de dúvidas quanto à carreira e à vida, além de uma série de problemas que surgem para deixar as escolhas ainda mais difíceis.

Cursar medicina tradicionalmente remete à condição privilegiada, que coloca o profissional em relação de superioridade ao paciente – profissional, social, econômica, etc. Apesar de não ser de uma família rica, Verônica tem estabilidade econômica e mora com o pai, José Maria (W. J. Solha), que vive entre a alegria de ver a filha formada e a angústia de lidar com uma doença, que faz com que sua vida esteja no fim.

A doença do pai é um dos problemas externos com o qual Verônica deve lidar de forma solitária. Sua formação é uma de suas crises internas. A graduação é um período marcante na vida de qualquer um, mas o período de provas e trabalhos, atenuados por festas e amigos, chega ao fim jogando subitamente o até então estudante em um mundo prático, onde nem sempre a teoria do curso é suficiente.

A vida de festas com a qual a nova médica estava habituada não é nem um pouco condizente com a realidade de um hospital público, com poucos recursos e que abriga pacientes que muitas vezes, além da patologia clínica, apresentam uma carência de atendimento que é acumulada, graças ao descaso dos serviços públicos.

Não bastasse a doença do pai, o choque de realidades e a mudança no cotidiano – de estudos para atendimento – Verônica é uma psiquiatra, ou seja, seus diagnósticos geralmente não são condicionados a um exame laboratorial que irá indicar o medicamento e sua posologia. A médica depende do diagnóstico clínico, por vezes difícil e auxiliado pela experiência prática, que ela ainda não tem.

Um grande diferencial da protagonista é que apesar de se dizer fria e sem emoções, suas atitudes mostram o contrário. Com seu pai era de se esperar que houvesse mesmo grande atenção, corroborada pela ausência da figura materna, porém mesmo no hospital, com seus pacientes, Verônica dribla as dificuldades, crises e inexperiência com uma característica que muitos médicos acabam perdendo, com o olhar viciado que se desenvolve ao longo da prática profissional: a atenção ao paciente.

Na verdade a única frieza que a personagem tenta defender, sem muito empenho, é o distanciamento de sua vida pessoal durante uma consulta, tentando se afastar de seus problemas ao ouvir os lamentos, nem sempre remediáveis, de seus pacientes. A parte disso, Verônica é passional na medida necessária para fornecer, como profissional, a atenção e a resolução de problemas maiores do que uma consulta pode suportar.

Alguns serão complacentes com o sentimento de inadequação vivido pela médica, neste período de transição entre os estudos e a vida profissional. De fato este passo nem sempre é natural. Porém o grande destaque da personagem é sua postura que não se desvincula do paciente. Diferente de muitos profissionais da vida real, que provenientes de uma classe social extremamente privilegiada carregam certos conceitos que os fazem sentir-se superiores aos pacientes, por vezes tratados como se fossem verdadeiros incômodos em suas vidas, ela se reconhece em muitas angústias e medos daqueles que são atendidos.

Tanto diante dos problemas dos pacientes quanto em diante de suas próprias dificuldades, Verônica faz o que é possível em relação aos males que nem sempre têm cura. Na melhor das hipóteses a solução viria de uma reestruturação, que para quem é atendido no hospital, seria muito maior do que uma consulta pode proporcionar, mas ao menos para a médica, parece ser de fato uma fase – ruim, angustiante e que demanda tempo para ser resolvida.

É de se esperar que aos poucos os problemas de Verônica sejam resolvidos e que com a prática suas consultas fiquem mais seguras. Intercalando decepções com atividades bem mais prazerosas, como os amigos, o namoro (ainda que forçado), a música, a personagem parece considerar a hipótese de luz no fim do túnel. O que seria realmente conveniente é que ela mantivesse o profissionalismo e a atenção com que olha seus pacientes, atendendo cada um como se fosse o primeiro, mas com a experiência benéfica para a análise clínica.


terça-feira, 27 de novembro de 2012

Os Matadores


Esse é o primeiro longa-metragem do diretor Beto Brant. Também a primeira parceria com o escritor Marçal Aquino, que acabou virando um prenúncio das boas obras de adaptação que viriam posteriormente.

Neste caso o conto homônimo do escritor é mais conciso e direto. Um bom exemplo de como o cinema pode complementar uma obra, ressaltando aspectos distintos e desenvolvendo temas cuja linguagem não é tão eficiente na literatura, superando a desnecessária comparação entre livro e filme, sobre qual seria supostamente melhor.

Os elementos do enredo são aqueles tão frequentes e bem descritos na obra de Aquino, com acertos de contas, matadores de aluguel, conflitos em regiões remotas, prostituição e nuances de um submundo real, porém oculto e geralmente distante da mídia.

Com o cerne da história desenvolvido na região de fronteira entre Brasil e Paraguai, vemos uma realidade bastante característica, com elementos que até podem estar presentes em cidades, mas com a clivagem entre urbano e rural preservada. O coronelismo, a naturalidade com que conflitos são resolvidos com assassinatos e a hierarquia de poder estabelecida – entre outros detalhes – podem ser percebidos nas cidades, como bem indicam alguns outros contos de Aquino.

Porém é notável como Toninho (Murilo Benício), que vem do Rio, destoa tanto do local quanto das pessoas, enquanto a velha dupla de matadores formada por Alfredão (Wolney de Assis) e Múcio (Chico Diaz, em ótima interpretação como paraguaio) estão em consonância, ainda que não escapem de percalços.

Esta divisão do Brasil entre o leste, litorâneo e mais urbanizado, em contraposição ao oeste, fronteiriço e predominantemente rural, ganhou força e legitimidade alguns anos depois do filme, com o referendo de 2005, sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, cujo resultado revelou apoio bem maior às armas em regiões de fronteiras, além de outros fatores culturais.

Evidentemente que a resolução de problemas através da eliminação do inimigo tem raízes antigas. Fomos colonizados por grandes senhores de terra, onipotentes, com poder econômico e social suficiente para pagar pelo assassinato de quem estivesse no caminho, saindo não somente impunes, mas também fortalecidos pelo medo que espalhavam nas proximidades.

Esta herança está presente em nosso território apresentando-se de forma mais fiel à origem em áreas rurais e distantes, conforme vemos no filme, mas prática semelhante também é notada em centros urbanos. As execuções ligadas ao tráfico de drogas ou a grupos de extermínio, muitas vezes formados por policiais, agem cotidianamente e quando o acerto velado entre policiais e traficantes é abalado as chacinas passam a ser fato cotidiano.

É curiosa a incoerência formada pela cultura de massa frente ao comportamento violento relacionado ao acerto de contas. As ondas de violência geradas por essa cultura da vingança são, felizmente, repudiadas pela população – talvez mais por temer pela segurança pessoal do que pela barbárie em si –, porém a resolução do problema através de assassinato de criminosos nem sempre é mal vista.

Caindo no engodo da dicotomia entre bem e mal, parte da população apoia que criminosos sejam mortos sem julgamento, por policiais que agem de forma arbitrária e onipotente, como os antigos coronéis. Há nesse apoio a omissão dos crimes praticados pelas autoridades, pois assim como vem sendo praticado por poderosos há séculos, o assassinato que se esconde sob a falsa atribuição de justiça acaba fornecendo poder ilegítimo ao assassino – seja ele matador de aluguel, policial, traficante ou qualquer outro.

Ao abrir concessão para certas ilegalidades a sociedade cai em um desdobramento de estado sem lei, conforme podemos notar no filme, onde os próprios códigos de conduta são criados e quem tem mais armas, ou mais dinheiro para contratar matadores, corrobora o próprio poder e permanece acima da lei – postura que pode ser apoiada por parte da sociedade, até que algum erro grosseiro (além da ilegalidade em si) seja cometido.

A viabilidade de um filme como Os Matadores assusta pela realidade com que as cenas são apresentadas, de forma crua e direta. Seria ótimo que se tratasse de um filme de ficção, no máximo um retrato de passado longínquo, entretanto a trama é um registro atual, de uma sociedade que reluta em abandonar costumes arcaicos.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Elefante Branco (Elefante Blanco)


A qualidade do cinema argentino poucas vezes é questionada. Cada vez mais os filmes de nossos vizinhos vêm se tornando referência pela qualidade, desde o roteiro até a conclusão da obra. O equívoco está no fato de muitos restringirem a diferença em relação ao cinema brasileiro à temática, alegando que supostamente nossos filmes só abordam a pobreza, utilizando as favelas como cenário, portanto já teriam cansado o público.

O tema geral característico de cada país está diretamente relacionado com a sociedade do mesmo, que não determina, mas influencia muito no trabalho de cineastas, escritores e qualquer outro tipo de artista do país. Este longa do diretor Pablo Trapero rompe com o paradigma da temática ao apresentar a Villa Virgen, uma favela na periferia de Buenos Aires, deixando claro que o que faz um filme ser bom ou ruim não é o seu tema, mas a forma como este é abordado e trabalhado.

Ao redor de um prédio que começou a ser construído em 1937 com o intuito de ser um grande hospital, e virou um “elefante branco” por seguir inacabado depois de falácias de governos populistas e ditadura militar, cresceu uma favela onde os moradores convivem com sérios problemas, desde o abastecimento de água até a violência do tráfico.

A descrição do local é comum a várias favelas brasileiras, porém chama a atenção com certa particularidade a semelhança com a favela do Moinho, no centro de São Paulo, que cresceu ao redor de um grande prédio abandonado (antigo moinho) e, em área nobre da cidade, misteriosamente foi devastada por dois incêndios em menos de um ano.

Nestas comunidades é frequente o trabalho de missionários, que tentam suprir a falta de investimento do estado organizando e prestando serviços aos moradores. No filme o principal líder deste trabalho é o padre Julián (Ricardo Darín), que para o trabalho hercúleo de tentar urbanizar os barracos com a mão de obra dos próprios moradores conta com a assistente social Luciana (Martina Gusman), além de tentar transferir aos poucos sua liderança para o padre Nicolás (Jérémie Renier).

Se em um texto anterior deste blog, sobre “O gato do rabino”, foi abordado o problema da imposição da fé religiosa para aqueles que não querem seguir tais doutrinas, vemos aqui uma situação quase oposta. O trabalho na favela não precisaria ser feito por alguém vinculado à religião, mas Julián utiliza o prestígio e respeito que sua condição de padre lhe dá para tentar mediar conflitos, que são inúmeros.

Ainda assim as ações positivas se dão muito mais no plano individual, pois Julián e o francês Nicolás estão dispostos a se sacrificarem para auxiliar aqueles que precisam, porém a igreja como instituição, simbolizada pelos superiores, se esforça para restringir o trabalho ao assistencialismo vazio, que de forma rasa rende boa fama para a igreja, mas limita os benefícios à comunidade local.

Os problemas de uma favela, assim como sua própria existência, são múltiplos. Um somatório de falta de investimento, segregações sociais e diversos fatores históricos que culminam em algo como Villa Virgen. Da mesma forma, a solução não é pontual nem será dada somente pela igreja, apesar disso o peso político dessa instituição, se pode ser utilizado para influenciar nas ações do estado, poderia também ser utilizado mais enfaticamente na tentativa de reduzir desigualdades sociais.

Se a igreja tem poder para barrar projetos contrários às suas doutrinas, poderia ao menos tentar evidenciar a falta de políticas públicas para serviços básicos como o abastecimento de água, pois se os moradores devem trabalhar duro pelo próprio saneamento, como venderão suas forças de trabalho, já esgotadas? Talvez possa parecer mais econômico ao estado negar o básico à determinada parcela da população, porém a quebra de direitos implica na possibilidade de contestação de deveres, por parte daqueles que têm seus direitos negados, dentre eles o dever de se submeter ao monopólio legítimo da violência.

Sem dúvida certos problemas, como os viciados em crack, são extremamente complexos. Quando mesmo aqueles que têm determinação em deixar a droga e condições para buscar tratamento nas melhores clínicas apresentam taxas de retorno à droga de mais de 80%, fica difícil acreditar que uma criança abandonada tenha chances de recuperação. Todavia a ideia ignorante, mas indicada no filme provavelmente por ser comum, de assassinar aqueles envolvidos com a droga não chega nem perto de solucionar o problema, afinal, não precisa ser especialista no assunto para prever que novos traficantes e usuários surgirão, caso não haja medidas preventivas.

Elefante Branco apresenta, de forma perturbadora e com muita qualidade, questões cotidianas para milhões de pessoas que vivem naquelas condições sociais e econômicas, que provavelmente não terão acesso ao filme. Entre os que poderão conferir a obra, vale a pena utilizar o potencial do cinema para conhecer realidades sem precisa vivê-las de perto. Neste caso é bastante útil para tentar desfazer certos preconceitos.


terça-feira, 6 de novembro de 2012

Um dia sem mexicanos (A day without a Mexican)


O longa do diretor Sergio Arau não chega a ser um bom filme. Uma pena, pois explora mal um tema rico ao ponto de fazer valer a pena a comédia sem graça, que fornece alguns dados interessantes sobre o tecido social da California, mas que pode ser expandido para diversas outras situações.

Certo dia os imigrantes latinos, cerca de um terço da população do estado, desaparece sem deixar vestígios. Uma neblina densa também isola o estado, sem sinais de telecomunicação ou meios físicos para cruzar as fronteiras. Começa então a aparecer algumas opiniões daqueles que sempre olharam os latinos de cima para baixo, expostas como uma tentativa de humor.

Vemos logo que reduzir os imigrantes, de origens diversas, a mexicanos indica a prática comum de se referir à determinada região, no caso toda a América Latina, como uma massa amorfa de iguais, sem particularidades que valham a pena ser consideradas.

A hipocrisia de se valer de determinada cultura quando é conveniente e rebaixar a mesma conforme haja mudanças no ponto de vista não para na generalização dos imigrantes. A famosa acusação infundada de um californiano de que imigrantes roubam os “nossos” empregos é desconstruída pelo óbvio, latinos nos Estados Unidos, assim como qualquer explorado no território de seu explorador, assume serviços pesados e desagradáveis. Subempregos, com subsalários, para suburbanos.

Apesar de serem mal remunerados pela venda de sua força de trabalho, o total de imigrantes tem peso grande na economia, afinal, mesmo ganhando pouco também consomem, compram e investem o dinheiro na economia local. Em contrapartida recebem pouco retorno financeiro e social.

Relegados às áreas menos nobres da cidade, com pouco investimento por parte do governo ao qual pagam impostos, aqueles que são alvos de preconceitos geram um equilíbrio extremamente favorável àqueles que naturalizam a exploração e ainda culpam os explorados por toda e qualquer dificuldade cotidiana.

O discurso patético dos que se valem de uma posição social para manter a estrutura de poder se torna ainda mais risível quando tenta lançar um olhar sobre a realidade do outro. É mais fácil para o mais pobre ter noção de como é a vida do rico, seja pelo contato devido aos serviços prestados, seja pela televisão, o que acaba naturalizando o preconceito e este acaba descaracterizado, visto no máximo como dívida histórica, quando na verdade é atual, com raízes antigas.

A naturalização do preconceito contra quem vem de fora casa muito bem com a predisposição de não assumir os próprios erros. Conforme nos indica Fernando Pessoa, "Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo." Assim, se uso o acostamento por este ser a única via desobstruída onde posso correr com meu carro, a culpa é de quem vem de fora e entope as ruas com carros; se meu filho se envolve em alguma confusão, a culpa é dá má companhia dos que vêm de fora; se tenho que pagar propina para me livrar de alguma punição mais séria, é porque fui forçado a driblar uma suposta injustiça social, que desta vez não é a meu favor.

Seguindo esta lógica maluca, um roteiro se repete sempre após as eleições. Alguns são a favor do derramamento de sangue contra a violência, outros apoiam a presença maciça da igreja na política, mas uma opinião é quase unânime: Se meu candidato não ganha, a culpa é de quem vem de fora.

Estamos em uma democracia onde, ao menos em tese, o pluripartidarismo representa a sociedade multifacetada e as eleições serviriam para que essas múltiplas faces fossem representadas no poder. Problemas estruturais a parte, é cômodo acusar de ignorância aquele que ao menos deveria tentar votar em quem lhe garanta os direitos à sua classe, ao invés de corroborar os direitos dos exploradores supracitados.

Sem dúvida há uma série de fatores que influenciam em tomadas de decisões por parte de políticos eleitos, não por acaso esses fatores refletem e muito a estrutura estabelecida entre exploradores e explorados. Apesar disso, aquele que se encontra em situação semelhante a dos latinos retratados no filme e vota em alguém que pretende lutar por melhores condições para aqueles que contribuem muito e recebem pouco, não é ignorante nem interesseiro. Não mais do que quem já é favorecido pelo modelo atual e vota pela manutenção do status quo


terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Gato do Rabino (Le Chat du Rabbin)


O diretor Joann Sfar adaptou o roteiro baseado em sua própria obra literária, apresentando em animação o gato sem nome, que passa a falar após comer o papagaio de seu dono, o rabino Sfar.

Essa é apenas uma das metáforas intrigantes que o filme apresenta. Com muito humor vemos o gato que fala, lê, questiona e em meio a tudo isso é apaixonado por Zlabya, a filha do rabino. O que dá ritmo e aventuras ao filme é a viagem que uma caravana, que inclui o rabino e seu gato, terá de fazer, cruzando a África muçulmana a caminho de Jerusalém – na década de 20, portanto antes da criação de Israel.

São curiosos os embates religiosos que surgem ao longo da trama, tanto entre religiões quanto entre ciência e preceitos religiosos. O fato é que as grandes religiões retratadas no filme são milenares. Desde o judaísmo, a mais antiga, passando pelo catolicismo, que não tem tanto destaque no filme, até a mais recente, o islamismo, com o qual a maioria dos embates são travados, todas são baseadas em doutrinas criadas para uma sociedade muito diferente e incompatível com a atual.

Enquanto as divergências se restringem aos divertidos diálogos do rabino com o gato, que insiste em citar dados científicos como teste de carbono 14, para questionar a idade da terra segundo o judaísmo, as consequências também são restritas à relação do religioso com seu animal de estimação, porém tudo fica mais sério durante a viagem, que obriga os judeus a cruzarem com uma série de etnias, cujos costumes são regidos pelo islamismo.

O longa está longe de ser uma animação infantil e as metáforas e conflitos apresentados, ainda que em uma história que acontece há quase um século, têm claras referências aos dias atuais, talvez pela rigidez dos costumes religiosos sofrerem constantes problemas com seus anacronismos.

O conflito das religiões com a ciência extrapola o questionamento pessoal sobre a veracidade de Adão e Eva em relação ao evolucionismo das espécies. Com maior ou menor intensidade, dependendo de cada país, as religiões influenciam decisões políticas que acabam impondo valores sobre aqueles que não seguem suas doutrinas. Ainda que não consigam supremacia pelas vias maquiadas da democracia, é sob a égide da religião (qualquer uma das três já citadas) que muitos atentados são postos em prática, tanto por grupos extremistas quanto por estados soberanos.

A interpretação literal de textos religiosos escritos há tanto tempo é tão incompatível com a sociedade atual que gera divergência entre os próprios seguidores, fazendo com que tenham que debater a respeito de temas superficiais, cuja discordância não traria nenhum problema. Quando as divergências aparecem entre membros de religiões distintas, extremistas como todas podem ser, a necessidade de se sobressair impera e a racionalidade mais uma vez sucumbe às doutrinas, ou à interpretação que fazem das doutrinas.

Ainda que não tenhamos atingido o ideal de Nietzsche, de uma sociedade sem religião, já que a maioria das pessoas ainda busca o chamado conforto espiritual em tais doutrinas, é latente que a religião continua tendo peso político fundamental em nossa sociedade, que se expressa de formas distintas, mas em essência pode ser bem parecido com o que vemos no filme.

Se nos chocamos, mesmo em um desenho, com pessoas duelando até a morte por um ideal religioso, não deveríamos considerar aceitável que o radicalismo religioso ainda tenha força para impor à sociedade valores incompatíveis com a vida contemporânea. Mesmo que não tenhamos encontros no meio do deserto, regidos por costumes locais e sem leis constitucionais, é inegável que muitas leis ainda são impostas pela pressão de religiões.

O que o gato do rabino, que para seguir por perto de sua amada dona cede aos caprichos da religião, tem a nos ensinar é que a religião não deve extrapolar o plano individual. Qualquer um que queira pautar sua vida em doutrinas milenares pode e deve ter toda a liberdade para isso, mas a partir do momento que essas doutrinas são impostas a quem não quer segui-las, optando por outra ou nenhuma religião, é inadmissível que a solução seja uma versão revisitada das cruzadas ou mesmo da inquisição. Será essa a real solução que qualquer das grandes religiões pregaria?

Questões políticas, religiosas ou filosóficas a parte, a animação tem um estilo de desenho muito agradável, com algumas cenas lembrando o quadro “Noite Estrelada” de Van Gogh. Cenas cômicas quebrando algumas sequências mais sérias e um roteiro repleto de referências culturais. Vale a pena conferir, seja qual for a religião!


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Bróder


O longa de estreia do diretor Jeferson De foi rodado no Capão Redondo, bairro da periferia de São Paulo que normalmente é conhecido pelos altos índices de criminalidade. Poderia ser pela falta de salas de cinema, baixo investimento ou precariedade das escolas. O fato é que a opção do diretor foi exibir, a partir de três personagens que cresceram juntos no bairro, algumas possibilidades que os moradores têm para seguir.

Diferente de alguns bairros, nos quais jovens aspiram às carreiras de medicina, direito, engenharia, entre outras, as opções dos jovens nascidos e criados na periferia parecem bem mais restritas. O primeiro apresentado é Macu (Caio Blat), que logo de cara desconstrói o estereótipo de criminoso.

Macu faz o gênero de bom moço, cumprimenta a todos e mostra ser querido na comunidade onde vive. Ninguém desconfiaria que ele estivesse prestes a participar de seu primeiro sequestro, alegando ser o único, apenas para pagar uma dívida. O que parecer ser a imagem do fracasso – sucumbir ao crime para solucionar um problema – tem como contraponto o personagem Jaiminho (Jonathan Haagensen), que se tornou jogador profissional.

Ao chegar ao bairro em um grande carro importado e coberto de joias Jaiminho é a imagem do sucesso, ao menos do êxito econômico, jogando futebol na Espanha e almejando uma vaga na seleção brasileira. Enquanto Macu obedece às ordens de seu superior, que o induz ao sequestro, Jaiminho obedece ao empresário, que cuida de cada detalhe de sua carreira.

Entre os dois extremos vemos Pibe (Silvio Guindane). O terceiro amigo não ficou rico jogando bola, também não se rendeu ao crime, mas teve um filho e vive imerso na responsabilidade de sustentar a família com um salário irrisório. Apesar de terem seguidos caminhos distintos, é possível ver que os jovens mantém uma união muito forte, que nem mesmo brigas e divergências são capazes de quebrar.

A dúvida que fica após o filme é se a exploração do trabalho de Jaiminho por parte de seu empresário é muito diferente da exploração do trabalho de Macu, que tem suas opiniões ignoradas diante das ordens para a execução do sequestro. Ainda que não tenhamos detalhes do trabalho de Pibe, não restam dúvidas de que sua força de trabalho é vendida a preço baixo e também explorada.

É evidente que não podemos colocar os três no mesmo plano, afinal Jaiminho ganha muito dinheiro de forma lícita, enquanto Macu coloca a vida de outras pessoas em risco, porém o que fica latente é a incapacidade de prover o próprio destino, relegando a outras pessoas o que a emancipação lhes poderia garantir.

O que o filme mostra, talvez de forma exageradamente tímida, é que independente do caminho que os indivíduos acabem seguindo, a formação acaba sendo fundamental. Com a educação pífia que costuma ser oferecida aos jovens das periferias paulistanas, em escolas públicas cujo principal objetivo parece ser desviar verbas do estado, ao invés de formar cidadãos, os jovens não possuem autonomia sobre as próprias atividades, tendo que optar por um explorador, ao invés de uma profissão.

A marca mais forte dos personagens é o grande laço de amizade, não apenas entre os três protagonistas, mas entre todos que permeiam a trama e que cresceram dividindo as mesmas dificuldades e compartilhando os mesmos valores. A lealdade entre os próximos é um valor que o chefe da quadrilha de sequestradores não irá compreender, assim como a preferência pela feijoada a despeito do restaurante Le Jardin, indicado pelo empresário de Jaiminho.

Vemos no filme, nos moradores do Capão Redondo ou em qualquer outra esfera social valores bastante marcantes, formados desde a infância pelos elementos que cercam o indivíduo. Porém esses valores, independentes de quais sejam, são fortemente tentados pelas leis bárbaras do capital, reduzindo prazeres, amizades, lealdades ao dinheiro.

A forte união notável entre os moradores personagens do filme poderia ser canalizada para o desenvolvimento pleno dos indivíduos, conscientes dos conflitos sociais e cientes da capacidade de cada um de prover o próprio destino. Talvez não seja um objetivo tão fácil de ser conseguido, mas longe de ser impossível, é interessante a muitos setores da sociedade que esse tipo de consciência não exista. Não seria rentável (para quem já detém o capital).


terça-feira, 9 de outubro de 2012

A fonte das mulheres (La source des femmes)


Uma pequena aldeia encravada no deserto, onde as mulheres são responsáveis por uma longa caminhada para carregar água até as casas. Esse é o plano de fundo para o filme do diretor Radu Mihaileanu. Com todos os diálogos na língua local e diversas referências socioculturais ao longo do filme, a obra torna-se pouco a pouco uma fonte muito rica de reflexões, não somente em relação à aldeia retratada, mas também ao papel do machismo na sociedade e à relação entre cultura ocidental e oriental.

Carregar a água é papel das mulheres, pois antigamente, durante um período de guerras, os homens se encarregavam de defender a aldeia de invasões. Com o fim das guerras a divisão do trabalho já estava estabelecida. As mulheres continuaram a carregar a água enquanto os homens passaram a observar o trabalho, já que não tinham mais que fazer guerra. A tradição passou a justificar o trabalho pesado relegado a elas. Contra a injustiça proporcionada pela divisão do trabalho, as mulheres da aldeia optam por uma greve de sexo, para forçarem os homens a solucionar o problema de uma forma ou de outra.

1) O machismo, da forma como é mostrado, fica evidente e patético. De fato é absurdo que mulheres, mesmo grávidas, tenham que andar longas distâncias em terrenos acidentados, para voltar com pesados baldes de água nas costas, enquanto os homens passam o dia em um ócio nada produtivo na aldeia. Tudo isso por uma tradição estabelecida em uma época em que os papéis sociais de homens e mulheres eram justificáveis (elas carregavam a água, eles guerreavam).

Hoje em dia, em geral, homens e mulheres das cidades ocidentais, essas em que vivemos, costumam passar o dia todo no trabalho. Chegando em casa no fim do dia é hora da mulher cuidar da casa, dos filhos, das refeições, enquanto o homem relaxa em frente à TV. Afinal, em outros tempos, a única tarefa da mulher era cuidar da casa, enquanto o homem trabalhava fora. Os tempos mudaram, mas mantemos a tradição para o conforto masculino, tal qual uma aldeia isolada do mundo. As tentativas de justificativas podem existir. São risíveis, aqui ou lá.

2) Transitando entre o cômico e o trágico, o filme mostra o poder de mobilização das mulheres, que tanto pode ser interpretado de forma literal, ou seja, mulheres lutando contra as injustiças do machismo, quanto metaforicamente, já que as mulheres podem simbolizar qualquer classe que resolva se unir contra determinada exploração.

A mobilização feminina da aldeia segue um roteiro histórico das mobilizações de greves. As lideranças, as hesitações, descrença inicial por parte daqueles que estão no poder, reações violentas, pressões, chantagens e uma infinidade de técnicas baixas por parte daqueles que querem a todo custo manter o conforto gerado por uma injustiça.

O esperado é que quem assista ao filme fique chocado com os maridos, que tentam acabar com a greve batendo nas esposas diante dos filhos. O ideal seria, além da associação do machismo da aldeia com o machismo na nossa própria sociedade, a ligação da causa da greve feminina com greves trabalhistas atuais, que também tentam quebrar com a hegemonia de uma classe, que se sustenta na zona de conforto baseada na exploração tradicional e sem fundamento da força de trabalho. O risco que corremos é o de agir como algumas mulheres da aldeia, ou seja, estar do lado oprimido, mas considerar que é melhor não lutar.

3) Outra reflexão que o filme instiga é em relação ao estereótipo do mundo árabe que o ocidente vem criando, desde o início deste século. De fato o fundamentalismo religioso é utilizado para subjugar as mulheres, o que é condenável, e uma série de outras atitudes dos homens da aldeia podem ser encaradas como um retrocesso na emancipação – feminina e consequentemente humana. Só não podemos cair na tentação de criar uma relação de causa e consequência entre a religião mulçumana e a forma de agir dos aldeãos.

Conforme já indicado, a estrutura machista que atua no meio do deserto ganha nova roupagem no ocidente, que aprendeu ao longo da história que é mais eficiente ceder pequenos benefícios para manter o cerne da exploração. Ao nos depararmos com problemas sociais gritantes no filme, somos surpreendidos ao pensarmos que os mesmos problemas estão presentes em nosso cotidiano, apenas disfarçados.

O fundamentalismo cristão que impõe sua força ao estado, através de uma bancada evangélica, o machismo que impera em nossa sociedade, a repressão violenta contra os explorados que tentam se rebelar. Para nossa vergonha, elementos criticáveis em uma aldeia perdida no meio do nada passam despercebidos diante de nós, apenas por uma maquiagem tão frágil.


terça-feira, 25 de setembro de 2012

Elles


O tema da prostituição costuma estar presente em vários filmes, desde as tramas secundárias até o mote principal, porém o trabalho da diretora polonesa Malgorzata Szumowska traz uma abordagem mais perturbadora, ao tentar excluir o moralismo e apresentar certas relações veladas que permeiam o tema.

O contraponto da prostituição se dá com a personagem Anne (Juliette Binoche), ou seja, uma jornalista, madura, mãe de dois filhos, casada com um empresário e que pretende escrever um artigo para a revista Elle, sobre jovens que se prostituem em Paris, para conseguir sobreviver.

O enredo é universal, pois as características citadas em relação ao mundo da prostituição, como alto custo de vida, necessidade de manter um nível social, homens que buscam a fuga da rotina do relacionamento, entre outros detalhes, estão presentes em qualquer grande cidade e, salvo algumas particularidades, justificam a estrutura que sustenta o comércio do sexo.

As entrevistadas de Anne para obter material para sua matéria também representam dois estereótipos. A francesa Lola, o codinome de Charlotte (Anaïs Demoustier), esconde da família e do namorado sua profissão, alegando que não coseguiria outro serviço que a sustente com conforto. A polonesa Alicja (Joanna Kulig) chega a Paris e não vê alternativa para se manter no exterior.

É interessante notar a mudança de postura de Anne ao longo do filme. A jornalista, que a princípio expõe seus preconceitos e tem dificuldade em compreender a naturalidade com que as jovens aceitam a vida que levam, passa a questionar seu próprio estilo de vida.

De um lado vemos as meninas que, bem ou mal, batalham para uma vida independente e desvinculada dos homens, cujos papéis coadjuvantes baseados no machismo histórico sustentam as jovens, em troca da construção irreal de sonhos malucos do universo masculino, baseados na falsa superioridade diante da mulher.

Por outro lado Anne tem a família que aparentemente é o símbolo de sucesso, mas excluído o fetichismo da família feliz, a jornalista percebe que o filho mais velho, da idade das jovens que batalham pelo próprio sustento, é um garoto mimado, que por sempre ter tido tudo, não dá valor a nada. O marido executivo vive preocupado com a aparência de seu casamento e a qualidade do jantar preparado pela esposa para um encontro de trabalho, constituindo, de forma subjetiva, o típico cliente das duas jovens entrevistadas. Seguindo os passos do pai e do irmão mais velho, a tendência é que em breve o filho mais novo aumente o time de homens machistas.

O filme explora pouco os diálogos, dando mais valor às atuações em cenas mudas, talvez por abordar um tema que fica muito mais implícito quando permeia as relações sociais do que abordado de forma escancarada. Porém é possível acompanhar algumas conclusões de Anne, mesmo sem que elas sejam expressas verbalmente. É clara sua insatisfação com a jornada de trabalho associada aos afazeres domésticos, tendo ainda que cuidar dos homens que mal sabem encontrar um objeto dentro de casa e ouvir o pedido do marido, para que maneire nos discursos feministas.

Dentro do sistema milenar de machismo que rege a sociedade, o pedido do marido é plausível. Os homens retratados no filme são patéticos, vergonhosos. Desde o falso estereótipo de marido ideal de Anne, até os clientes das meninas, que variam do impotente, que chora feito uma criança diante da adolescente, ao boçal, que agride a moça para impor uma superioridade inexistente.

Diante de homens tão frágeis, também vítimas do poder capilar do machismo, a única forma de manter as aparências frente às mulheres fortes e batalhadoras do filme, é a censura e a força. O silêncio imposto pelo marido, que não quer que o discurso feminista atrapalhe seus negócios, o silêncio imposto pela sociedade, que fornece mercado para as jovens prostitutas ao mesmo tempo em que as condena pelo serviço, fazendo com que tenham que mentir sobre suas fontes de renda. Afinal, a prostituição pode existir, com a condição de não atrapalhar a aparência da família perfeita, sendo a culpa pelas traições dos maridos sempre atribuída à prostituta, não ao homem que a procura.

Sob a égide da moral e dos bons costumes vemos a hipocrisia de homens impondo a superioridade na base da força e de uma tradição sem sentido. Diante da pesquisa recente que indicou que mulheres são mais escolarizadas do que os homens no Brasil – lembrando que a história parisiense do filme é bastante universal – apenas uma tradição insana, baseada muitas vezes na agressão, pode explicar a hierarquia de gênero na sociedade.

Elles está longe de ser uma obra prima do cinema, mas a crueza com que mostra certas relações geralmente implícitas perturba. Impossível, como homem, não sair envergonhado do cinema.


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Intocáveis (Intouchables)


O filme dos diretores Eric Toledano e Olivier Nakache também chegou ao Brasil com o título de “Amigos improváveis”, talvez para diferenciar do homônimo policial, da década de 80. As semelhanças se atem ao título, pois o filme francês aborda a inusitada relação entre o milionário Philippe (François Cluzet), que por ter ficado tetraplégico precisa de um enfermeiro que o ajude em tempo integral, e o desempregado Driss (Omar Sy), imigrante senegalês que vive no subúrbio de Paris.

O tom de comédia e as situações inusitadas na qual vemos Philippe ajudam a explicar o fenômeno de bilheteria do filme, também tendem a nos empurrar para uma análise rasa, de um filme que mostra as possibilidades de diversão e felicidade, mesmo a uma pessoa com sérias limitações físicas. Mais interessante seria pensarmos um pouco além das evidências do filme e explorarmos as entrelinhas dos discursos utilizados.

A princípio os motivos que levaram à escolha de Driss são incertos. O rapaz não possuía nenhuma experiência para lidar com deficientes e geralmente sequer identificava as necessidades de Philippe, cometendo erros dos mais grosseiros aos mais sutis, compreensíveis dado que certas necessidades evidentes para que as sente são quase imperceptíveis para os que nunca se imaginaram atados a uma cadeira de rodas.

Vemos que o interesse de Philippe, que no início chega a parecer um desafio ou mesmo uma birra infantil de provar ao subordinado que este não é capaz de suportá-lo, está exatamente na normalidade com que é tratado por Driss. O desconhecido não o tratava como uma delicada taça de cristal, mas como uma pessoa que apesar de ter perdido os movimentos do corpo, não teve danos à personalidade ou ao intelecto. O filme chega até a flertar com o tema da vida sexual dos deficientes, explorado mais a fundo no filme belga “Hasta la vista”.

O desenrolar do contato desajeitado dos dois não gerou uma relação mais profissional, mas uma amizade surpreendente não somente pela condição física ou pelo despreparo para o emprego, mas pela situação histórica que esta relação evidencia. Não há muitos elementos sobre a vida dos personagens, mas a riqueza de Philippe, como a de tantos milionários franceses, pode ter vindo da exploração de colônias africanas como o Senegal, país de origem de Driss. Este chega à França com poucos recursos e enfrentando uma série de dificuldades, sobretudo o preconceito, para conseguir estabelecer uma condição de vida aceitável.

Certas atitudes do imigrante são tão questionáveis quanto a estrutura social que permite a Philippe enriquecer explorando – direta ou indiretamente ao longo da história – as colônias, para depois utilizar o trabalho pouco qualificado de um imigrante, tentando questionar seus méritos e sua capacidade. A relação entre as sociedades da França e Senegal é repetida incansáveis vezes há séculos. Um país explorado até os ossos, tendo sua população privada de direitos básicos, freando ou mesmo bloqueando o desenvolvimento e a emancipação de seus indivíduos, enquanto na ponta da pirâmide a colônia enriquece material e culturalmente para posteriormente insistir que a diferença entre os dois países está no nível do mérito, esforço ou capacidade.

Aos poucos vemos que o contato dos dois personagens não é bom apenas para Philippe, que para de ser tratado como uma bolha de sabão a ser preservada e passa a ser visto como um ser humano. Também não é bom apenas para Driss, que além do salário que lhe dá um pouco de conforto ainda passa a adquirir maior capital cultural e uma forte referência para a nova profissão.

Os benefícios deste tipo de contato são gerais, por reduzirem certos abismos sociais, não apenas na França ou na relação entre colônia e metrópole – termos que só deixaram de existir na teoria. O contato entre classes tem a capacidade de desfazer preconceitos, esclarecer dúvidas inconscientes e agregar elementos distintos em ambos os lados. Não é apenas Driss que aprende no novo mundo milionário que passa a frequentar, mas Philippe também passa a ter que engolir em seco certos equívocos que sempre encarou como naturais e foram desfeitos pelo novo amigo.

Com uma sociedade extremamente verticalizada, que teme a ascensão das classes economicamente mais baixas e cuja principal meta individual não é a redução do abismo social, mas o êxito pessoal baseado na melhoria da condição econômica, vemos que Intocáveis não diz respeito apenas à vida prazerosa que é possível para um tetraplégico (milionário), mas indica também os benefícios mútuos do contato em lugar da segregação, que rompe com a existência de verdadeiros bunkers, formados por condomínios de luxo, em meio ao mar de caos social gerado pela miséria necessária para a existência dos tais bunkers.

Ps. Tema parecido é abordado no curta nacional “O Xadrez das cores”, de Marco Schiavon, que pode ser conferido na íntegra em www.youtube.com/watch?v=NavkKM7w-cc


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Meninas


Neste documentário a diretora Sandra Werneck acompanhou por quase um ano a vida de três adolescentes cariocas. Recém-saídas da infância, já encaram a responsabilidade de uma gravidez, com poucos recursos financeiros e todas as dificuldades que a pouca experiência de vida tende deixar ainda piores.

Apesar das três meninas morarem em favelas cariocas, essa é uma situação recorrente no país, representando assim um problema social grave, que o filme tenta expor sem preconceito e com um cuidado talvez excessivo.

Até meados do século passado, com a população rural maior que a urbana, a estrutura familiar era bem diferente. Com menos anos de estudo e a exigência de menos qualificação profissional, era muito mais comum a gravidez ainda na adolescência, que seria seguida de várias outras ao longo da vida. O problema é que atualmente essa característica não condiz com a vida em uma cidade.

Com a necessidade de estudo, qualificação e estabilidade, uma gravidez não impede, mas dificulta enormemente, como pode ser conferido no documentário, a formação da mulher, que em geral ainda deve enfrentar o peso do machismo que isenta o homem de praticamente todas as responsabilidades que deveriam ser partilhadas.

É interessante notar nas entrevistas com os familiares das três meninas forte moralismo, mesmo ao assumir certa responsabilidade pela gravidez. Ninguém fala em prevenção ou esclarecimento das consequências de ter que criar um filho, mas somente de uma suposta promiscuidade, que deveria ter sido evitada por parte da família.

Esse detalhe escancara o embate existente na nossa sociedade entre o moralismo, sobretudo em relação ao comportamento feminino, e a exacerbação da vida sexual, cada vez mais mercantilizada de forma irresponsável, pois seu estímulo (não necessariamente censurável) deveria vir fortemente acompanhado de esclarecimento, tristemente barrado pelo moralismo ignorante.

Vemos no trabalho de Sandra Werneck meninas que mal deixaram a infância, que se envolveram com homens mais velhos, porém inconsequentes e irresponsáveis – comportamento fortemente amparado pela característica machista da sociedade, que relega ao pai, quando muito, o pagamento de uma pensão –, sofrendo as consequências que irão perdurar ao longo de suas vidas.

Diante deste cenário é comum esbarrarmos na ignorância popular que relega às meninas uma suposta culpa por ignorar a evidência dos problemas e dificuldades resultantes de uma gravidez precoce. Entretanto o planejamento familiar e a prevenção da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis não têm nada de natural. É fácil para quem sempre recebeu orientação neste sentido alegar que os desdobramentos da gravidez são óbvios e a prevenção bastante simples, mas no filme vemos Luana, com quinze anos, afirmando que o bebê foi planejado, já que sempre cuidou do irmão mais novo e agora queria um somente dela.

A mãe de Luana passa o dia trabalhando, tanto que deve deixar a filha mais velha cuidando dos irmãos mais novos, passa pouco tempo em casa, tem pouco contato com os filhos e esbarra no moralismo, já citado, em relação à educação sexual. Do outro lado Luana vê o irmão mais novo como uma espécie de “boneca viva” e resolve ter um filho. O que pode beirar o surrealismo para quem sempre foi instruído a primeiro dar valor para uma formação escolar e estabilidade profissional antes de pensar em filhos é extremamente plausível para uma adolescente no contexto social em que Luana vive.

Antes de julgarmos as atitudes das três meninas retratadas, ou qualquer outra em situação semelhante, devemos lembrar que um olhar adulto é construído ao longo da vida. Não dá para esperar que crianças ou adolescentes tenham a noção de responsabilidade que muitas vezes até os adultos só têm de forma idealizada. Certas atitudes inconsequentes da adolescência, como fugir de casa, brigar com os pais, sair escondido, etc., são reversíveis, outras são permanentes.

Cabe ainda lembrar que, do título ao enredo, Sandra Werneck deu foco às meninas, tangenciando o papel masculino, que também é fundamental. Já mais velhos que as meninas retratadas, era de se esperar que os namorados tivessem mais responsabilidade, porém, ainda que o filme não tenha a intenção de mostrar a vida dos pais, fica claro que a mesma falta de informação faz parte também de suas vidas, com o agravante de que o machismo da sociedade estimula fortemente o comportamento irresponsável retratado.

Alguns anos depois a diretora lançou o longa “Sonhos roubados”, que acaba sendo quase um complemento deste documentário, por mostrar a vida de meninas em condições socioeconômicas semelhantes, porém sem focar a gravidez, mas abrangendo as dificuldades e problemas das jovens. Duas obras que devem ser conferidas.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

A vida de outra mulher (La vie d'une autre)

Nem todos os filmes precisam de um roteiro complexo e repleto de surpresas para conquistar quem assiste. Neste longa a diretora Sylvie Testud apresenta uma história simples, talvez até pouco original, dado à quantidade de obras que exploram a perda de memória, mas a complexidade da protagonista e a divergência da própria personagem em dois períodos distintos, cativa e instiga os espectadores.

A história basicamente apresenta Marie (Juliette Binoche, que influenciou no roteiro exigindo, com razão, uma personagem complexa), que após conhecer Paul Speranski (Mathieu Kassovitz) acorda quinze anos mais tarde, sem se lembrar de nada do que aconteceu neste intervalo. Uma metáfora que trabalha com uma condição clinicamente pouco provável e com uma reação ainda mais incomum, pois a personagem prefere tentar esconder o fato e se readaptar à vida, ao invés de pedir ajuda e correr o risco de ser taxada de louca.

A moça que acabou de se apaixonar ao completar vinte e cinco anos acorda com quarenta. Descobre ser mãe do pequeno Adam (Yvi Dachary-Le Béon), morar em um ótimo apartamento, estar casada com Paul e ser uma executiva bem-sucedida. Não era mais Marie, agora era a Sra. Speranski.

Apesar de ter tido ascensão econômica, sucesso profissional e um filho ao qual logo se afeiçoou, seu casamento estava prestes a terminar e se tornou uma executiva profissionalmente respeitada, porém temida pelos subordinados e muitas vezes obedecida por medo dos funcionários – o que não a agradou nem um pouco. Apesar de o filme induzir a conclusão de que Marie abriu mão do casamento em prol da profissão, o que chamou a atenção foi seu estranhamento em relação à pessoa que se tornou, tão diferente em apenas quinze anos. Fato que abre espaço para algumas indagações.

Ao tentarmos lembrar, o mais detalhadamente possível, do que éramos há quinze anos, dos sonhos que tínhamos e das pretensões que nos cercavam, o resultado seria muito diferente da perplexidade de Marie, ou por nos acostumarmos paulatinamente às mudanças, não nos damos conta de que nos transformamos em outra pessoa?

A ambição tipicamente adolescente de querer abraçar o mundo esbarra inevitavelmente na realidade, que nos faz abrir mão de cada vez mais detalhes e por vezes nos obriga a moldar aquilo que não podemos desistir até se tornar uma meta bem distinta da que possuíamos a princípio. Diante de algumas conquistas, ou mesmo algumas frustrações, tentamos nos convencer de que chegamos onde queríamos, jogando para baixo do tapete da memória aquela frustração de alguns sonhos que ficaram pelo caminho.

Claro que nem tudo se tornou um terror. Marie, surpreendentemente, cria rápida identificação com o filho e, fora do ambiente hostil do trabalho, ouve do menino que ela é a melhor mãe do mundo (frase batida, mas que cabe para ilustrar esse outro lado de seu futuro). Tornar-se uma executiva de sucesso também estava nos planos da moça, que, além disso, conseguiu se casar com o homem pelo qual se apaixonou e agora tenta uma reaproximação, já que não sabe os motivos da separação.

Um agravante na vida de Marie, pouco comum para a maioria das pessoas, é a mudança social brusca proporcionada pelo casamento. Nas poucas cenas da personagem antes de perder a memória, é possível notar uma vida mais simples, muito contraditória em relação às atitudes da agora Sra. Speranski, cuja herança do sobrenome do marido é constantemente enfatizada ao longo do filme.

Grandes ascensões sociais, quando ocorrem, são vagarosas, de forma que a pessoa assimila pouco a pouco as novidades. Traçamos nossos caminhos dentro de um campo restrito de possibilidades, que não é estático, mas é sempre limitado às possibilidades do período em que estamos. Acordar imerso em uma vida com quinze anos de fatos esquecidos é assustador; quando se está em outro nível social, cultural e econômico, mais ainda.

Para que o casamento não passe em branco por aqui, já que na nova vida de Marie a reaproximação é a principal meta, é claro que ao tornar-se pouco a pouco uma pessoa completamente diferente do que era ao se apaixonar, isso irá influenciar no casamento. Não temos muita informação sobre Paul, mas é certo que ele se manteve em seu padrão social e consolidou a carreira de cartunista – talvez mais próximo de Marie, mas bem distante da Sra. Speranski.

Seria possível uma reaproximação depois de, segundo Paul, cinco anos de brigas? Perfeitamente, sobretudo depois que Marie esqueceu os motivos que acumularam durante anos para culminar no divórcio, e existe a possibilidade de voltarem ao comportamento que os aproximou. Seria possível que a reaproximação, diferente da primeira tentativa, durasse para sempre? Isso já não é tão previsível, mas se o sentimento voltou a existir, por que não tentar?


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Hemingway & Gellhorn


Guerra, quando tem um propósito, é uma operação que remove, em um período específico, um câncer específico. O câncer reaparece em diferentes formas, em diferentes partes da raça humana; nós não aprendemos nenhum tipo de medicina preventiva para os corpos das nações. Nós voltamos, repetidamente, para uma cirurgia de alto risco... Quem somos nós, que temos a pretensão de acabar com tudo?
(Martha Gellhorn)


Neste longa acompanhamos um recorte da vida de dois personagens intrigantes de nossa história. Distante de um documentário, o diretor Philip Kaufman apresenta uma ficção de duas horas e meia, que começa um tanto morosa, mas ganha ritmo e cativa ao longo da narrativa.

Ernest Hemingway é interpretado por Clive Owen, que fica bem abaixo de Corey Stoll, no mesmo papel em “Meia-noite em Paris”, e Martha Gellhorn ganha vida através de Nicole Kidman. Filmar a vida de um casal, sobretudo em um filme longo, poderia ser maçante e desnecessário, porém Hemingway teve outros três casamentos, sendo que apenas este é digno de ganhar as telas, não por mostrar a vida de uma celebridade, mas pelo fato da vida em casal ter influenciado diretamente a obra de ambos, de forma a agregar aos fãs de seus textos.

Eu conhecia pouco da obra de Hemingway. Foi através do filme de Woody Allen que meu interesse pelo autor e suas obras explodiu. Da mesma forma, com este filme descobri Martha Gellhorn e seu crescimento profissional mútuo com o escritor. É curioso que, da mesma forma que os dois se aproximam lentamente, de forma um tanto confusa e receosa, até se entregarem um ao outro, o filme de Kaufman também começa descompromissado, um pouco confuso até que passa a convencer quem assiste.

Alguns cortes de imagem para tons de cinza ou imagens mais granuladas acabam não tendo um resultado muito positivo, mas é compreensível que com tanta diversidade de cenários e períodos históricos, certos recursos tenham que ser utilizados em prol de uma produção satisfatória, mas sem custos exorbitantes.

A história do filme ganha fidelidade com a participação de personagens como o cineasta Joris Ivens (Lars Ulrich, baterista do Metallica), coletando material para o filme “A terra espanhola” (1937). Com isso temos mais uma referência cultural a ser conferida, juntamente com as obras de Hemingway e os escritos de Gellhorn.

Foi durante essas filmagens que o famoso casal foi consolidado. A atração mútua ficou latente diante dos interesses em comum e o resultado foi benéfico não apenas para os dois, mas para a história como um todo, uma vez que ambos perceberam que os textos produzidos poderiam extrapolar os limites da ficção, servindo também como denúncia, alerta e expressão dos sentimentos mais diversos que uma situação de conflito possa proporcionar.

A paixão do casal complementada pelo amor dos dois pela escrita influenciou nas produções que proporcionaram ao mundo lindos romances de Hemingway, que mesmo tendo abordado temas historicamente distantes, o fez de forma que seu conteúdo permanece extremamente contemporâneo e necessário, além das coberturas de guerra feitas por Gellhorn, documento histórico incomparável e também tristemente atual, dado a constância dos temas fúteis e incabíveis de um conflito armado.

Ainda que o filme não tenha o caráter de documentário, portanto o enredo pode surpreender a quem assiste, seu desfecho não foge da dureza da realidade que encerrou a vida dos protagonistas. Pelo estilo direto, cru e objetivo, tanto das obras de Hemingway quanto de sua própria vida, ninguém poderia esperar um desfecho romântico e animador para o que quer que tenha passado pela vida do autor.

Por vezes citado como estereótipo de virilidade, outras criticado por machismo, vemos aqui um Hemingway com tantas virtudes e tantos defeitos quanto qualquer outra pessoa e mesmo já famoso ao iniciar seu relacionamento com Gellhron, é possível notar que o relacionamento inspirava e complementava o trabalho de ambos, não havendo disparidade ou dependência de um em relação ao outro.

Talvez para atenuar a ideia de machismo que ronda o escritor, Kaufman enfatiza Gellhorn como uma mulher independente e extremamente profissional, que aprendeu muito com o escritor – até por ser quase dez anos mais nova – mas que também contribuiu com seu lado profissional, suportou seus comportamentos que muitas vezes beiravam a infantilidade e teve personalidade para reconhecer que o relacionamento já não contribuía ao casal, pelo contrário, desgastava a ambos, que não compartilhavam mais os mesmos interesses.

Difícil dizer o quanto ambos sofreram com o fim do relacionamento, mas aqui entra a fabulação enfatizando o sofrimento romântico. É até bastante compreensível que duas pessoas que conheceram tão de perto os horrores de diversas guerras acumulem angústias e sofrimentos. Somam-se a isso os sentimentos conturbados de Hemingway, chegando ao extremo de ter que lidar com o suicídio do pai, e a dificuldade intrínseca de escrever alertando ao mundo sobre as dificuldades da vida.

A história de Hemingway e Gellhorn está longe de caber em um filme, mas esta obra é válida pelas referências culturais e mesmo por apresentar-nos um pouco dessas duas personalidades bem atrativas.


terça-feira, 7 de agosto de 2012

À beira do caminho


Do título ao enredo, o novo longa de Breno Silveira é estruturado com o apoio de músicas de Roberto Carlos. Questões musicais a parte, o fato é que toda a atmosfera do filme, as características dos personagens e o desenrolar da trama combinaram muito bem com a trilha sonora, sendo que, com a quantidade de fãs de Roberto Carlos, o público potencial do filme irá se emocionar bastante com a junção de letras e cenas.

O roteiro nos remete ao filme Central do Brasil (1998), já que ambos apresentam um menino sem família que quer cruzar o país em busca do pai. A diferença é que aqui o roadmovie faz o caminho inverso, do nordeste ao sudeste, evidenciando a migração forçada, entre outros fatores, pelo desenvolvimento econômico desigual, que tantas vezes auxilia na separação involuntária de famílias cujos membros não entram em consenso diante da difícil decisão sobre onde tentar a vida.

Outra diferença entre os filmes é que em Central do Brasil o menino é guiado por uma personagem feminina (Fernanda Montenegro), criando uma relação mais maternal entre os dois. Aqui o pequeno Duda (Vinicius Nascimento) cruza o caminho de João (João Miguel, com atuações cada vez mais encantadoras), um caminhoneiro misterioso, mal humorado e que parece fugir de seu passado, uma história paralela, desvendada aos poucos com cenas entrecortadas.

Duda e João têm uma relação complexa desde o início. O menino não tem muitas alternativas além de confiar no estranho, geralmente rude e fechado, de quem tenta arrancar algum tipo de amizade e contato. O caminhoneiro, ao mesmo tempo em que mantém sua rotina na estrada, sem distrações e pensando no passado que o atormenta, encarando o menino como um estorvo do qual deve se livrar, também assume aos poucos uma atitude mais paternal, com preocupações e cuidados.

A primeira metade do filme é permeada por cenas engraçadas, que quebram um pouco o drama da história pesada. Daí para o fim o drama do menino, que mantém a esperança infantil de encontrar o herói na figura do pai, que supostamente resolverá seus problemas, soma-se ao passado de João, que aos poucos é apresentado como uma história triste e repleta de remorsos. De forma intencional o diretor opta por deixar seu filme cada vez mais emotivo até o desfecho.

A esperança, simbolizada por um menino esperto, porém ainda bastante inocente, é conflitada a todo tempo com a desilusão, simbolizada pela amargura de alguém que parece ter desistido da vida, desleixado e sozinho. Não é por acaso, nem é somente para emocionar, que por vezes os papeis se invertem e o menino toma conta do caminhoneiro. É o elemento novo que vem para quebrar uma rotina apática e tentar resgatar o brilho que existe, mas anda ofuscado pelos anos de solidão e sofrimento.

Portanto, conforme indicado, o filme lida com perdas, abandonos, amores não correspondidos e foca o tempo todo no laço de amizade construído pouco a pouco entre os dois personagens, ao longo da viagem que cruza o país. Assim, as cenas que usam as músicas de Roberto Carlos são muito bem complementadas pelas letras, até pelo estilo brega de algumas canções, que embalam uma festa de beira de estrada melhor que qualquer outro estilo.

Chama a atenção ao longo do filme a vida sem rumo que Duda leva, sendo que de todas as opções para o futuro do menino, a grande maioria não garantiria um futuro promissor, tendo sido um grande acaso o encontro com João. Da mesma forma que algumas vezes o menino se viu perdido, essa situação é vivida diversas vezes por vários menores, que não têm o caminho cruzado por alguém que pode se tornar uma referência. A emotividade do filme tem caráter didático quando vemos que uma criança não tem condições de viver completamente sozinha – feito complicado até para um adulto. É um fato um tanto óbvio, mas sua demonstração é sempre pertinente. Não é demais lembrar que somos socializados ao longo da vida e nosso comportamento é moldado de acordo com os exemplos e oportunidades que temos ao longo da vida, sobretudo durante a infância.

Ainda que possa ser criticado pelo excesso de drama, o filme de Breno Silveira trabalha bem com elementos de nossa sociedade e nossa história. A desigualdade social entre regiões, o trabalho difícil dos caminhoneiros, a falta de cuidado com menores sem família, as músicas que fazem tanto sucesso há anos, tudo isso guiado pelos sentimentos reprimidos de João, que mesmo sem perceber busca as pazes com sua própria vida.


segunda-feira, 30 de julho de 2012

A Culpa é do Fidel! (La faute à Fidel!)

Com muitos estereótipos, metáforas e bom humor a diretora Julie Gavras nos apresenta seu filme, que nos remete aos anos 70, no conturbado período pelo qual o mundo passava. Com a consolidação da Revolução Cubana, a eleição de Salvador Allende no Chile e o governo fascista de Franco na Espanha, acompanhamos a família da pequena Anna de la Mesa (Nina Kervel-Bey) na França, cujos pais são militantes de esquerda e a babá, vinda de Cuba, extremamente reacionária, causando grande confusão tanto para ela quanto para o irmão mais novo.

Se por um lado os pais mergulharam cegamente na ideologia comunistas, preocupando-se até mesmo com símbolos inúteis como pintar as paredes do novo apartamento de vermelho, a babá é o símbolo extremo de uma ideologia reacionária. Velha, teimosa, ranzinza e sem querer abrir mão da tradição que favorecia economicamente sua família, passa conceitos errados para a menina, que os absorve mesmo sem compreender muito bem o que significa os tais “barbudos vermelhos”.

A menina, perdida entre os dois extremismos que não costumam primar pela argumentação, simboliza bem a população como um todo, ou seja, aquela maioria que não chega a se preocupar com o rigor teórico das ideologias que dividiram o mundo durante a guerra fria, mas que acabam tomando partido pela informação recebida de alguma forma.

É evidente que a princípio a babá leva vantagem ao tentar persuadir a jovem, já que é uma família tradicional, na qual Anna cresceu por quase dez anos, até que mudam para um apartamento menor, com outra babá e outros hábitos. A simples ideia da mudança já pode assustar e gerar desconfiança, sendo que uma mudança baseada em decréscimo econômico sem dúvida irá desagradar uma criança que ainda não entende muito bem o que motiva tudo aquilo.

Já seus pais, levados à militância graças ao assassinado de um parente espanhol pelo regime franquista, passaram a ver na ideologia do partido tudo o que procuravam, mas parecem ter esquecido de que essa transição nada tinha de natural para os filhos. Mergulhados em muito trabalho, optavam pelo caminho mais rápido em relação às crianças, assim passaram a proibir o catecismo da filha, mudaram a rotina da menina e deram poucas explicações sobre tudo o que estavam vivendo.

Dentro do universo infantil, que tem a deliciosa tendência de fantasiar o dia-a-dia, o choque entre as imagens criadas pela babá e as vividas em contato com os pais gera muita confusão, até que algumas peças comecem a se encaixar e a menina possa tirar suas conclusões baseadas tanto no que ouve quanto no que vive.

A vantagem que a menina leva em relação à sociedade é poder viver próxima de situações conflitantes do ponto de vista ideológico, para só então comparar certos fatos e tirar as próprias conclusões, ainda que tendenciosa por viver o tempo todo com os pais. Talvez os tais barbudos vermelhos não fossem tão maus quanto dizia a babá, que não explicava muito bem o que estava querendo dizer. Por outro lado, talvez o grande valor que os pais davam ao comportamento em grupo poderia ser apenas como uma ovelha que acompanha o rebanho. Portanto as fontes de informações, ainda que parciais, são multifacetadas, diferente da maioria da população com acesso majoritário à mídia oficial.

Chama a atenção ao longo do filme o maniqueísmo com que a menina é tratada, da mesma forma que a clivagem entre capitalismo e comunismo é apresentada ao longo da história. Tanto os pais quanto a babá limitam-se a exaltar os pontos que defendem e criticar a oposição de forma vazia, sem deixar muito claro o porquê das divergências – possivelmente por ignorarem os reais motivos, sobretudo a babá que evidentemente não tem nenhuma clareza sobre o que é a ideologia comunista.

Diante destas certezas tão frágeis que são defendidas ao longo do filme, a dialética parece ter espaço para atuar e formar uma conclusão multifacetada, baseada não somente em opiniões com pouco fundamento, mas comparando diversas fontes para uma decisão mais sólida e fundamentada, diferente da opinião pública, que desde os anos 70 parece abrir mão cada vez mais de uma ideologia fortemente embasada, aceitando qualquer opinião difundida pela mídia, por mais que soe como um conto de fadas. Chegam até mesmo a acreditar que a culpa, de tudo, é de Fidel.


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