segunda-feira, 21 de junho de 2010

Samsara

Este belo filme nos mostra o deserto de Ladakh, na Índia. Rodeado por montanhas, o lugar proporcionou uma fotografia impecável ao longa de Nalin Pan, com algumas cenas lembrando o filme Camelos também choram, já comentado neste blog. Em meio a paisagens onde não podemos ver uma única árvore até onde a vista alcança está localizado o mosteiro Samsara, no qual monges budistas seguem suas vidas entregues à devoção religiosa. Muitos são deixados entre os monges ainda pequenos, com cinco ou seis anos, como o protagonista Tashi (Shawn Ku).

Após passar toda a infância e adolescência no mosteiro, para cumprir um ritual, Tashi passou três anos, três meses e três dias meditando – antes de pensarmos que são coisas de cinema, monges budistas garantem que isso é possível – e é resgatado pelos amigos muito magro, pálido, com cabelos e unhas imensos, levando certo tempo para sair o estado de letargia provocado por tanto tempo imóvel. Logo notamos um ponto muito bem trabalhado pelo diretor que são os sutis cortes de cenas para demonstrar a passagem do tempo. O comprimento dos cabelos, alguns detalhes do cenário ou algumas deixas nas falas substituem os dispensáveis “tantos meses depois”.

Readaptado ao cotidiano Tashi estaria pronto para seguir sua vida religiosa, mas quanto os instintos podem influenciar sobre a razão? O jovem monge começa a ser atormentado por sonhos eróticos e as ereções noturnas denunciam isto aos demais; para piorar ele se depara pela primeira vez com o seio nu de uma mãe prestes a amamentar, que mexe com seus sentimentos; depara-se com a bela Pema (Christy Chung); e certa noite tem uma polução. Quando um monge superior o questiona sobre seus desejos Tashi chega à conclusão que até mesmo o Príncipe Siddhartha Gautama, Buda, viveu quase trinta anos longe da clausura, e com este forte argumento optou por deixar Samsara.

Aqui aparece a primeira clivagem que o filme indica. Tashi toma um banho no rio, uma espécie de passagem que indica o abandono da vida voltada totalmente para a espiritualidade e o ingresso na vida mundana. Ao encontrar acidentalmente com Pema o casal proporciona a cena de sexo em que o diretor age de maneira brilhante, cortando as cenas de forma a oscilar a posição dos atores, virando o mundo de cabeça para baixo e fazendo com que ambos levitem em meio ao prazer. Mesclando sensualidade e delicadeza Nalin Pan faz a tomada perfeita, livre de vulgaridade e explorando os sentimentos provenientes de vários sentidos.

Entretanto nem tudo são flores na vida do jovem indiano. No pequeno vilarejo em que agricultores vendem a colheita para sobreviver Tashi se depara com sentimentos como inveja, tentações, ciúmes, etc. Ao tentar melhorar as condições de vida local, vendendo a colheita diretamente ao invés do tradicional intermediário, que pagava pouco e roubava ao fazer a pesagem do trigo, notamos mais uma clivagem. Aqui mais uma vez o longa se aproxima de Camelos também choram, pois em ambos os representantes de uma pequena e isolada vila vai até a cidade e notamos a discrepância dos estilos de vida. Aqui notamos que é uma história contemporânea devido à placa anunciando “Internet, acesse o mundo daqui”, mesmo em uma cidade do interior da Índia, bem diferente de uma metrópole. O sogro de Tashi abandona as vestimentas habituais, trocando-as por boné, óculos escuros, jaqueta, etc. e para as crianças trazem brinquedos industrializados, criticados por Pema, pois as crianças sempre fizeram seus próprios brinquedos.

A vida mundana de Tashi é atormentada por notícias de seu mestre, Apo (Sherab Sangey), que está muito doente. A estima pela vida religiosa que teve durante a infância e adolescência deixa o agora pai de família dividido. Traria mais satisfação abandonar a família e voltar ao monastério, ou abrir mão da vida espiritual a qual se dedicou desde os seis anos?

Em meio à grande dúvida particular surge com muita força a presença de Pema. Até então as escolhas de Tashi haviam sido individualistas, agora a esposa exerce sua influência, a responsabilidade de uma vida a dois e lembra que a história machista dos homens minimiza a importância de Yashodhara, esposa do Príncipe Siddhartha, antes deste se tornar Buda. Em um belo monólogo Pema lembra que Siddhartha é lembrado por abandonar uma vida de riquezas para vivenciar as mazelas do mundo, mas poucos pensam que abandonou também sua esposa e seu filho Rahul. A história menospreza a influência de Yashodhara colocando, como sempre, os méritos para os homens e relegando o ostracismo às mulheres.

Para saber se Tashi seguiu os passos de Buda deixando a família em prol da vida religiosa ou se ficou ao lado da esposa e filho é necessário ver o filme, que no final revela o enigma “como fazer com que uma gota d’água jamais seque”.


Só encontrei o trailer legendado em francês, mas não é difícil encontrar o filme em português.

terça-feira, 15 de junho de 2010

O banheiro do Papa (El baño del Papa)

A parceria entre Brasil, França e Uruguai nos trouxe essa obra dirigida por Enrique Fernandez e Cesar Charlone, que mostram a fictícia visita do papa João Paulo II à pequena cidade de Melo, no Uruguai. O evento mexe com o cotidiano pacato dos pobre habitantes locais que costumam ter hábitos simples e uma rotina pouco chamativa.

A fonte de renda mais comum é a dos bagageiros que viajam até Aceguá, no Brasil, para contrabandear mercadorias para consumo local. A grande maioria deles fazem a longa viagem de bicicleta, sendo que poucos afortunados podem contar com uma motocicleta para, além de facilitar o trabalho, aumentar a renda devido a maior rapidez do serviço. A grande dificuldade dos bagageiros está na barreira montada na estrada pelo exército, para controlar o fluxo de mercadorias, obrigando um desvio no trajeto que já não é curto. Quando parados pelos militares, podemos ver os bagageiros humilhados pelos soldados, menosprezando seus serviços, vangloriando o exército e mostrando o legalismo exacerbado ao deixar claro que poderiam passar sem problemas pelas trilhas, mas não pela estrada, onde o exército é solicitado para fazer vigia. O problema pelas trilhas é o que seria o “rapa” local, que também confisca mercadorias.

Quando a visita do Papa se aproxima, os habitantes com forte tradição religiosa não ficam felizes pela oportunidade de serem abençoados pelo pontífice, mas pelos turistas brasileiros que o evento traria. A maioria dos habitantes sacrificaram todas as economias, muitos venderam seus bens para comprar comida e improvisar barracas para a venda de sanduíches, tortas e diversas outras iguarias para os supostos milhares de turistas. É interessante pensarmos que a religião está fortemente ligada aos centros comerciais, desde a Idade Media que unificava os cruzamentos de rotas comerciais com centros religiosos, dando origem à muitas cidades importantes, até os dias atuais, com cidades como Aparecida do Norte, onde uma espécie de indústria religiosa é formada ao redor do templo que atrai tantos fieis.

Em Melo a família que guia a história tem como patriarca o bagageiro Beto (Cesar Troncoso), que com sua simpatia inigualável chega a lembrar Ramón Valdez, o eterno Seu Madruga. Beto não chega a se empolgar com a ideia de vender comida aos turistas, mas em meio às dificuldades econômicas pensa em ganhar dinheiro com a visita do Papa construindo um banheiro. A ideia inusitada ganha legitimidade no contexto de uma cidade extremamente pobre e simples, retratada pelos cineastas com cores bastante pálidas ao longo do filme, o próprio banheiro da casa de Beto é uma precária casinha de madeira fora da casa.

Carmen (Virginia Mendez) é a esposa de Beto, contrária à ideia de ganhar dinheiro com o evento religioso. Seus princípios éticos indicam que isso seria passível de alguma punição divina e isso ressalta a supremacia do capital frente à espiritualidade, pois toda religiosidade latente da população fica em segundo plano diante da possibilidade de uma vida melhor. A vizinha de Carmen indica que castigo maior que o de Deus são os políticos que governam a cidade. A crítica não é em relação à atitude dos habitantes, mas um alerta em relação à maior necessidade de condições de vida digna do que instituições ligadas à espiritualidade.

Beto vê sua filha Silvia (Virginia Ruiz) sonhando ir para Montevidéu para concluir os estudos e ser jornalista, ele ainda vislumbra uma motocicleta para facilitar as longas viagens e dar descanso ao joelho prejudicado após tantas pedaladas e como qualquer pai de família, gostaria de dar uma vida mais confortável aos que dele dependem. É através de um banheiro para alugar aos turistas que ele tentará realizar seus sonhos, mas ainda é necessário comprar material e construir um sanitário em seu terreno, e isso não é nada fácil, já que a esposa não é favorável a utilizar as poucas economias que seriam destinadas aos estudos de Silvia. Até onde Beto estaria disposto a chegar para conseguir o dinheiro para a construção é o que vemos no longa e a pergunta que fica é até que ponto podemos censurar qualquer atitude do uruguaio, que como tantos outros da cidade entregaram suas vidas na tentativa de ascensão através da curta visita do Papa.

Os moradores que investiram no comércio para aquele dia teriam elementos para identificar um suposto exagero nas expectativas em relação à visita, ou foram fortemente estimulados pela mídia que sempre se esforça em construir a grandiosidade, mesmo que em eventos modestos? É possível indicar uma leve semelhança com Tropa de Elite, pois em ambos fica implícito que uma visita do Papa é indicada sempre como perfeita, repleta de paz, felicidade e espiritualidade. Mas os bastidores nunca são mostrados. Evidentemente que a comparação entre os filmes para por aqui.

Como já é indicado no início do filme, só o azar impediu que os fatos relatados na obra acontecessem de verdade, pois os elementos de fato são plausíveis. A fé em segundo plano diante das necessidades materiais, a ética posta de lado diante de uma condição extrema, a limitação – para não dizer inutilidade – de uma visita papal para uma população carente diante de suas reais dificuldades, todos os elementos que podem ser identificados em qualquer visita real.

Um filme simples, com momentos engraçados e que consegue unir diversos pontos criticáveis de uma sociedade que demanda tantos direitos e atenção.


terça-feira, 8 de junho de 2010

Morango e Chocolate (Fresa y Chocolate)

Esta foi a primeira parceria de Tomás Gutiérrez Alea com Juan Carlos Tabío, pois a saúde de Alea já estava debilitada. Um filme extremamente sensível, focado em diálogos talentosíssimos nos quais estereótipos opostos são articulados, formando algumas metáforas que, como é característico nas obras de Gutiérrez, podem ser usadas tanto para criticar quanto para apoiar o regime cubano, dependendo da tendência política de quem assiste.

Aqui vemos David (Vladimir Cruz), filho de camponês que graças à revolução tem acesso à universidade, entretanto seria o que chamamos no jargão político de “massa de manobra”. Aceita tudo o que é imposto pelo governo, sem ousar questionar, tal qual uma doutrina religiosa. Em seu caminho aparece Diego (Jorge Perugorría), homossexual assumido, que sofre discriminação como em qualquer país do mundo e transborda cultura, citando desde autores mais populares como Woody Allen e Hemingway, até Cavafis, poeta helênico cuja obra é permeada pela temática homossexual. Diego não é contra a revolução, tão pouco deseja a intervenção estrangeira, mas indica que o regime cubano tem falhas como qualquer outro – ou alguém diria que a “democracia” norte americana é perfeita depois da crise econômica recente? – e aos poucos essa relação entre o machista extremista e o homossexual com ideias alternativas vai sendo lapidada, com pitadas de humor e muita emoção.

As nuances do filme chamam a atenção para pontos interessantes, amplamente abertos para interpretação. As poucas cenas externas mostram pobreza, mas nunca miséria; Nancy (Mirta Ibarra) que é amiga de Diego mostra sua religiosidade expressa por um misto de catolicismo com candomblé, que indica não só o amalgama de religiões africanas e ocidentais como vemos no Brasil, mas também o simples fato de cubanos terem religião e expressá-la, que seria um fato normal, não fosse a maneira tragicômica como o tema é tratado mundo afora por contrários ao regime; entre os pequenos trechos de músicas apreciadas por Diego está uma obra de Ignacio Cervantes, que o personagem indica ter sido expulso de Cuba, e este fato nos leva a criticar o regime castrista, até a revelação de que o artista foi expulso pelos espanhóis, antes da independência – cabe aqui deixar claro que Cervantes teve que deixar o país ao ser descoberto quando fazia diversos concertos pelo país afim de arrecadar fundos para a luta pela libertação da então colônia.

É possível notar que os motivos podem ser distintos, mas os problemas enfrentados em Cuba podem ser sentidos fora da Ilha. Basta tentarmos fazer uma exposição artística no Brasil, para utilizarmos o exemplo do filme, já que Diego luta para isso o tempo todo, para nos depararmos com a burocracia, coibindo a arte que continua incompreendida por boa parte da população. A própria questão da homossexualidade transcende as fronteiras cubanas, uma vez que o comportamento machista de David e da sociedade como um todo poderia ser encontrado em qualquer país do mundo, pois ainda que São Paulo organize uma parada gay que reúne milhões de pessoas, homossexuais continuam sendo assassinados devido à orientação sexual. Desta forma, mais que um debate que se limita a defender ou rechaçar o regime cubano, Gutiérrez e Tabío nos dão material para muita reflexão sobre nós mesmos e problemas onipresentes.

Uma interpretação possível para a metáfora de morango e chocolate é a junção benéfica de duas substâncias distintas, com características bastante peculiares, uma natural, outra processada, que são boas individualmente, mas podem ser melhores em conjunto. Assim como o produto gerado pela proximidade de David e Diego, cada um com seus ideais que, quando em contato, podem influenciar um ao outro de forma benéfica, dialética e produtiva.

Um excelente trabalho de um revolucionário que apoia o regime cubano de forma inteligente, indicando pontos falhos com o intuito de aprimorá-los e tem liberdade para expor sua obra no país, mesmo com suas críticas. Gutiérrez apenas peca na última cena, pois de tão bem feita, mereceria ser mais longa. Jorge Perugorría dá um banho de interpretação que culmina em uma linda cena, que independente de qualquer posicionamento político, merece ser vista.


Não encontrei nenhum trailer legendado em português.
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