domingo, 5 de julho de 2009

Serras da Desordem

Serra da Desordem é um documentário que mostra a versão do diretor Andrea Tonacci (foto) para a história real ocorrida no Brasil entre as décadas de 70 e 80. O filme ganha legitimidade por ser encenado pelas próprias pessoas que viveram a história, salvo algumas cenas que precisaram ser recriadas.

O fio condutor do longa experimental é a vida do índio Carapirú (foto), da tribo Guajá. Massacrados pelos brancos que cobiçavam suas terras e a riqueza nelas contidas em 1978, os índios desta tribo se dispersaram pela mata e Carapirú vagou perdido pela mata. Até aqui o que chama nossa atenção é o massacre de índios, secular, mas o protagonista vagou sozinho por dez anos do Maranhão – local de origem da tribo – até a Bahia, onde retomou o contato com outras pessoas.

O filme não é comercial e volta-se para o trabalho etnológico. Com poucos diálogos o longo trabalho de 135 minutos mostra as etapas da vida do índio como sua vida com a tribo antes do ataque; as dificuldades da vida isolada em terras já colonizadas, ou seja, com pouca caça ou água potável, obrigando o nativo a caçar porcos, cavalos e recolher o que encontrava pelo caminho; sua vida após o contato com os brancos, com a difícil adaptação ao modo de vida tão diferente; e finalmente o retorno à tribo, com o reencontro de parentes e amigos.

Um lado abordado, mas de forma muito superficial, é o contexto histórico e o conflito de classes que cerca a história. O ataque que resultou nos dez anos de isolamento de Carapirú tem origem no período de expansão econômica, a custa de exploração indiscriminada de terras indígenas e de comunidades locais. O exemplo mostrado é o de Serra Pelada, com o famoso “formigueiro humano” para extrair o ouro que financiou as obras faraônicas do governo militar. Além impacto social e ambiental o falso milagre econômico teve como consequência a dívida externa galopante do período.

Mais presente no filme são os impactos da cultura capitalista exploratória para as comunidades locais. Enquanto empresas, políticos e empresários enriqueceram muito com a exploração dos recursos naturais e da mão-de-obra local, as pessoas que ficaram nas serras – bem retratadas por Andrea – vivem uma realidade bastante diferente. As riquezas das grandes obras da década de 70 continuam extremamente distantes e o ouro, a madeira e todos os recursos retirados daquelas terras não foram transformados em infra-estrutura necessária para sanar necessidades básicas. A escola é precária – sequer tem um teto – as casas não oferecem conforto e a sensação é de que todo o duro trabalho daquelas pessoas na era de extração do ouro foi inútil.

Vi o filme duas vezes e em ambas ouvi críticas em relação ao tamanho e ao ritmo do trabalho. Entretanto o que torna Serra da Desordem difícil é a triste constatação de como a ordem de nossa sociedade traz um progresso para poucos, extremamente restrito e inacessível para muitos do que trabalharam duro, sem receber nada de bom em troca.


O Contador de Histórias


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O Contador de Histórias estreia em agosto, levando para as telas um pouco da vida de um dos 10 melhores contadores de histórias do mundo. Roberto Carlos Ramos (representado no filme por Daniel Henrique, Paulinho Mendes e Cleiton Santos, em diferentes idades) saiu da condição de “irrecuperável”, dada por funcionários da Febem aos treze anos, para se formar em pedagogia e ter sua vida retratada no cinema. Com produção de Denise Fraga e direção de Luiz Villaça, após ver o filme temos a impressão de que o roteiro já estava pronto com a vida do protagonista, bastou organizar os fatos e filmar, pois a vida de Roberto Carlos realmente parece uma ficção escrita por roteiristas.

Até os treze anos o contador de histórias seguia o que parecia ser seu destino. Aos seis anos foi levado pela mãe para a Febem, com o sonho de ver o filho formado; em meio as constantes fugas o menino aprendeu a roubar, usar drogas e a definir um futuro tristemente constante. A grande mudança na vida de Roberto foi a pedagoga francesa Margherit (Maria de Medeiros) que enxergou o óbvio: um ser humano de apenas treze anos não pode ser irrecuperável, salvo se ninguém fizer nada para mudar essa classificação.

Margherit era uma profissional, mas nem por isso deixou de passar grandes dificuldades no processo de recuperação de Roberto, que passou por etapas importantes desde o simples ato de olhar para frente – coibido em instituições para menores, onde estes são obrigados a olhar para baixo na presença de um agente – até a alfabetização e o ensino da língua francesa.

A história é muito bem contada no filme, de forma que seus detalhes devem ser conferidos na telona. Cabe neste espaço pensar que ela é uma exceção extrema no Brasil. Em meio a tantos internos que a Febem ou instituições semelhantes recebem, o número de “robertos” auxiliados por “margherites” tendem a zero. Isso não seria preocupante, pois a tutela dos menores deveria ficar a cargo das instituições, entretanto, não bastasse o fato desta tutela não proporcionar um futuro digno, ainda tem o efeito contrário, ou seja, em meio a surras e maus tratos os menores aprendem a não confiar nas pessoas e a viverem em um mundo onde o mais bem adaptado sobrevive, às margens da sociedade. Esta adaptação costuma vir em forma de roubos e uma série de outros delitos.

No filme, após uma série de atitudes condenáveis e propositais para provocar Margherit, o menino fecha os olhos e espera por um tapa – que não vem. Essa simples cena pode retratar nosso país e seus menores abandonados. Após atitudes evidentemente condenáveis como instituições falidas que anulam o futuro de tantos jovens, o estado fecha os olhos por indiferença, mas aqui o tapa vem. Seja pela violência direta de quem aprende cedo que a violência é o único caminho (pois ainda que não seja eles não têm exemplos contrários); seja por histórias como a de Roberto, que nos acerta com a prova de que com atenção e cuidados todos podem explorar seus potenciais ao invés de serem condenados à marginalidade.

Essa história emocionante, que pode servir de exemplo sob vários aspectos, pode também ser uma ótima provocação aos que acreditam que certas atitudes ou condições sociais são inevitáveis e até mesmo responsabilidade dos que estão excluídos da sociedade. Sem querer defender, aceitar ou tolerar a violência, insisto aqui que a vida de Roberto Carlos Ramos mostra muito bem dois extremos. Na Febem, imerso na violência física e psicológica, o menino tinha um comportamento de acordo com a forma que era tratado. Com o apoio de Margherit o árduo trabalho de ambos deu frutos, e um desses frutos é a evidência de que as pessoas – independente de origem, classe ou qualquer outro fator – podem chegar a uma vida digna em sociedade.


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