terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Natimorto

O diretor Paulo Machline trouxe para as telas todo o ambiente opressivo e misterioso do livro homônimo de Lourenço Mutarelli. Com muitas metáforas e algumas alegorias acompanhamos a obra que conta, na maior parte do tempo, com apenas duas personagens – o que deixa os diálogos densos e fundamentais.

É impossível dissociar a imagem de Lourenço Mutarelli da obra. Além de escrever o livro ele também encena o protagonista sem nome, agente que descobre um grande talento da música, a cantora lírica, também sem nome, interpretada por Simone Spoladore.

A partir desse encontro a relação de ambos passa a ser extremamente intensa e confusa. O agente tem hábitos bastante peculiares, como tentar prever o futuro utilizando imagens de maços de cigarro, tal qual um baralho de tarô. Há quem diga que essa é uma ideia tão insana quanto qualquer outra tentativa de olhar para o futuro.

Entre tantas perturbações pessoais o protagonista faz uma proposta que a cantora considera ao mesmo tempo absurda e tentadora: utilizar suas economias para viverem no quarto de hotel por vários anos, sem sair para nada.

O que fica gritante ao longo do filme é o cansaço do personagem diante dos percalços da vida. Não de uma dificuldade ou outra, mas da somatória de agressões diárias vindas de todos os lados. A solução para ele seria o isolamento total, se distanciando de qualquer contato com o mundo exterior. Não há no protagonista nenhum tipo de vitalidade para deixar o hotel e buscar novos projetos ou soluções para tantos problemas.

Mesmo que esse profundo estado depressivo não seja compartilhado pela cantora, que aceita dividir o quarto, mas não abre mão de sair e investir em sua carreira, é notável sua empatia com o agente. Talvez uma retribuição à oportunidade de vir para a cidade associada ao comodismo de um quarto compartilhado e mais barato, porém há também uma atração pela excentricidade das ideias e histórias do protagonista.

No sentido inverso, ele vê na cantora uma idealização de pessoa perfeita, imaginando que ela seria a única capaz de compreendê-lo e trata-lo da forma que ele gostaria. Essa busca de uma redenção também é frequente em casos graves de depressão, quando é criada pelo paciente uma situação platônica de espera pela perfeição, que evidentemente nunca chega.

Pode ser tênue a distância entre um comportamento patológico e outro excêntrico. Foi essa diferença, dissimulada pelo agente, que fez com que a princípio a cantora se satisfizesse com suas particularidades, até perceber que o mais provável seria a existência de algo mais grave do que uma personalidade marcante.

A brecha que Lourenço Mutarelli nos abre, perceptível também no filme, se dá pela relação de causa e consequência entre os períodos de lucidez e loucura de seu personagem, ou seja, não é difícil concordar com o sentimento de opressão que domina o personagem, afinal não faltam motivos para que às vezes possamos nos sentir agredidos pelo mundo e com vontade de um isolamento por completo; por outro lado nem todos cruzam a linha da insanidade, passando a por em prática verdadeiros absurdos.

O agente pode perfeitamente ser visto como uma pessoa perturbada que precisa de ajuda, mas não dá para ignorar os fatores que podem ter desencadeado essa patologia. Em uma sociedade extremamente agressiva que tenta padronizar ao máximo os comportamentos e frequentemente coibir as individualidades, é bem plausível que algumas pessoas simplesmente não consigam lidar com a pressão, sucumbindo de alguma forma.

A própria cantora mostra muita atração pelas ideias expressas. Talvez ela seja um contraponto que indica a situação não patológica das agressões sociais, quando os indivíduos expressam suas decepções e frustrações por um período determinado, voltando a retomar o ritmo de vida após viver a experiência do trauma. Já o agente deixa claro que todos os seus limites de tolerância já foram ultrapassados e em uma situação deste tipo dificilmente alguém consegue sair sem uma ajuda externa que de alguma forma mostre o caminho.

Foi o primeiro longa dirigido por Machline e a atuação de Mutarelli não é das mais profissionais, o que rendeu algumas críticas. Ainda assim o conteúdo do filme e as reflexões proporcionadas por ele não devem ser descartadas. Com diversas metáforas e ironias sutis, Natimorto traz o desconforto e o incomodo necessários para pensarmos em temas polêmicos e controversos.


terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Acima das nuvens (Clouds of Sils Maria)

O plano de fundo para o longa do diretor Olivier Assayas é a escolha das atrizes para a nova versão de uma peça de teatro, na qual a jovem Sigrid consegue seduzir e desestabilizar a experiente Helena. Com essa linha de raciocínio se estabelece um vínculo entre a fictícia peça, as personagens do filme e, até certo ponto, com as próprias atrizes.

A protagonista do filme é a atriz Maria Enders (Juliette Binoche, que não por acaso deu a ideia do filme ao diretor). Seu sucesso começou quando interpretou Sigrid e agora, com uma carreira já consolidada, Maria pode selecionar com rigor os convites que recebe, não somente para atuar, mas para entrevistas e fotografias. Para isso tem o auxílio de sua jovem assistente Valentine (Kristen Stewart).

Diante da possibilidade de voltar à peça que a consagrou, porém desta vez no papel de Helena, Maria fica muito hesitante. A alegação é a de que teve extrema identificação com Sigrid, não conseguindo agora se imaginar no papel da outra personagem. Com o desenrolar da história, algumas nuances indicam outra possibilidade.

Envelhecer, apesar de um processo inevitável da vida, é um medo muito comum, talvez ainda mais perceptível naqueles cuja profissão está diretamente ligada à imagem. Em uma sociedade patriarcal e machista, as mulheres costumam ter ainda mais pressão para manter a aparência jovem. Para Maria, aceitar o papel seria admitir para o mundo (e para ela) que sua idade já avançou o suficiente para que ela possa interpretar a mulher experiente da peça.

Mesmo bem sucedida profissionalmente, pelo que podemos acompanhar de sua vida Maria é bastante solitária, tanto que vê em Valentine mais que uma assistente. A moça acaba fazendo o papel de amiga, confidente, conselheira e por vezes passa a ideia de que isso só ocorre por estar sendo paga. Diante do que é apresentado da vida de Maria, parece que se ao menos ela tivesse um circulo de amigos da mesma faixa etária, teria o conforto de acompanhar o envelhecimento do grupo como um todo ao invés de acompanhar a passagem da própria vida, sem muitas referências mais próximas.

O contraponto dessa história é a atriz selecionada para viver Sigrid na atual versão. Jo-Ann Ellis (Chloë Grace Moretz) corrobora o estereótipo de atores da nova geração, que aparentemente conquistam mais pela beleza do que pelo talento. Se por um lado a interpretação de Maria tem muito mais qualidade do que a de Jo-Ann, por outro a atriz consagrada vê aquela que tem idade para ser sua filha como foco dos holofotes e flashes, fazendo com que fora do palco ela se torne uma mera coadjuvante de luxo para a menina que parece entender muito mais de escândalos do que de atuação.

Por mais que a protagonista conte com experiência pessoal e profissional, além de maturidade para lidar com uma situação deste tipo, o fato é que as pressões sociais que chegam sobre ela não são tão simples de serem assimiladas e trabalhadas. Racionalmente uma carreira de sucesso, sobretudo no cobiçado e hermético mundo artístico, é motivo de grande orgulho e satisfação. O que não elimina a frustração de ver alguém com menos talento sendo muito mais assediado.

Em um mundo voltado para resultados uma artista que enche um teatro é valorizada, porém qualquer coisa que leve milhões de espectadores às salas de cinema é economicamente muito mais lucrativo, assim toda a indústria prefere voltar sua atenção ao que trará mais dinheiro.

O que poderia atenuar a angústia de Maria seria o apoio de pessoas próximas, entretanto, como já mencionado, seu maior contato é com Valentine, sua assistente e grande admiradora de seu talento. Enquanto ambas riem dos escândalos pessoais de Jo-Ann a diversão de informalidade está garantida mesmo na relação profissional que serve de base para o contato das duas personagens. O problema é que Valentine não pertence à mesma geração de Maria, mas sim de Jo-Ann.

A assistente compreende o posicionamento de sua chefe e a conhece bem o suficiente para compreender o valor de seu trabalho, mas não despreza os valores de sua própria geração, inevitavelmente diferentes daquela que a precedeu.

Os conflitos entre gerações são inevitáveis. É bem provável que Maria, quando representou Sigrid na juventude, tenha despertado sentimentos semelhantes na atriz que fez o papel de Helena. Desta vez os sentimentos estão apenas mais intensos pelo fato da mesma atriz atuar depois de muitos anos.

O que sem dúvida poderia ser atenuado é o desconforto de Maria causado pela pressão social relacionada ao desprezo da velhice. Um dos vários problemas de vivermos presos à juventude é exatamente o sentimento de inadequação aos que se dão conta de que há uma nova geração fazendo o que eles já não têm condições.


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Love

Assim como a sociedade, o cinema de tempos em tempos supera algumas barreiras e o que antes era impensável acaba se tornado até banal. O primeiro beijo – um simples encostar de lábios – foi um escândalo, a primeira nudez, a primeira insinuação sexual, etc.

O diretor Gaspar Noé costuma explorar a fundo tanto as barreiras sociais quanto as cinematográficas, e aqui não é diferente. Em uma trama que trabalha os conflitos de um relacionamento extremamente liberal, que não isenta o casal de problemas, não poderia faltar cenas de sexo, exploradas ao máximo também pelo marketing, já que não se trata de insinuação, mas de sexo real entre os atores.

A trama entrecortada que mescla presente e passado, utilizada em outras obras do diretor, mostra desde o início que o casamento de Murphy (Karl Glusman) com Omi (Klara Kristin) não chega a ser nem satisfatório, e o bebê do casal parece mais um entrave do que uma família nuclear.

De fato o casamento é apenas um galho secundário da trama principal, seu relacionamento anterior, com Electra (Aomi Muyock), que o personagem revive em suas memórias. A história de um relacionamento que por ser intenso e liberal, tem o sexo com presença constante, havendo, portanto a necessidade de que seja mostrado com a naturalidade que acontece no relacionamento.

Muitas vezes usa-se a fugacidade dos relacionamentos atuais para uma pretensa defesa do comportamento conservador da sociedade, sobretudo anterior à década de 60. Isso fica mais evidente quando, em contraponto à liberdade comportamental francesa, um dos expoentes máximos de maio de 68, temos um protagonista norte-americano. A princípio Murphy parece extremamente livre de amarras morais, até que certos entraves veem à tona.

A quebra de padrões por parte do casal não significa sentimentos menos intensos do que os tradicionais casamentos extremamente longevos. Ambos apenas se recusam a aceitar uma rotina cada vez mais morna que costuma se estabelecer após alguns anos de união, compartilhando aos poucos suas fantasias e sempre que possível colocando-as em prática.

Ao invés de pensar em um relacionamento menos intenso, que por isso abre mão da exclusividade, vemos no filme uma relação sincera ao ponto de não permitir que a monotonia destrua o ímpeto do casal. É possível que eles reprimissem suas fantasias mais ousadas em favor de viverem felizes para sempre, ao estilo conto de fadas, que costuma se transformar em fins de semana arrastados em frente à tevê, até que a rotina de trabalho durante a semana volte a separar o casal. Há quem chame isso de amor.

O filme não entra diretamente em fatos históricos, mas podemos facilmente relacionar seus temas com o desenvolvimento social recente. Os frutos da década de 60 na Europa, sobretudo na França, se espalharam pelo mundo, chegando aos EUA na forma do movimento hippie e no Brasil – que evidentemente não tem nenhuma ligação com o filme, mas cabe lembrar – através da tropicália.

Esses são dois exemplos de movimentos que pregavam (e praticavam) extrema liberdade, contestando diversos níveis de autoridade na luta pela autonomia individual. Não dá para dizer que retrocedemos, mas o fato é que tanto aqui como nos EUA alguns posicionamentos políticos atuais, fortemente ligados à moral, dariam a impressão de luta perdida àqueles militantes do passado.

Murphy é fruto desse mundo contemporâneo, com forte influência da moral tradicional e ao mesmo tempo moldada por uma geração que lutou pela desconstrução desses valores. Ao menos pelo que o filme indica, os franceses teriam essa questão mais bem resolvida, já Murphy acaba seguindo o cômodo caminho da hipocrisia.

Enquanto há a proposta de uma mulher como terceiro elemento na relação é muito fácil, em uma sociedade machista, aceitar a ideia e ser visto como uma pessoa de mente aberta. O difícil é ter que realmente desconstruir um valor moral, que de uma forma mais rasa pode até ser visto como a aceitação de outro homem, mas de uma maneira mais inconsciente, o que Murphy e todos aqueles que ele representa precisam é aceitar que a mulher com quem ele se relaciona pode ter desejos tão impactantes quanto os dele.

As relações inusitadas do filme não visam uma forma correta de interação, afinal o certo ou errado pode ser extremamente variável de acordo com os valores de cada um, cabendo ao casal definir seus limites e regras. O que é colocado com muita competência é a necessidade de uma coerência, para que um falso liberalismo não sirva de égide para o milenar machismo que rege os relacionamentos em favor do homem.

Só para não passar em branco, a prova de que o marketing se serve muito bem das cenas de sexo é o trailer oficial do filme. Poderia ser o trailer de um filme pornô, mas Gaspar Noé é mais que isso. 


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