sexta-feira, 28 de julho de 2017

Viva

Cuba é um ícone político mundial desde a revolução de 1959, o cinema da ilha tradicionalmente reflete os pilares defendidos pelo sistema político, servindo de propaganda e formação dos seus cidadãos.

Fugindo dessa tradição, o diretor Paddy Breathnach traz às telas temas cotidianos, repleto de peculiaridades cubanas, mas que pode ser transposto com poucas adaptações a outros países.

O protagonista é Jesús (Héctor Medina). Vivendo sozinho e tendo poucos amigos, trabalha como cabeleireiro e ajuda nos bastidores de uma boate, onde se apresentam drag queens. Seu sonho não está tão distante. O jovem gostaria de não ficar limitado aos bastidores das apresentações e subir ao palco como atração da boate.

Parece um objetivo bastante plausível, sobretudo com as amizades que já tem, com drags que poderiam ajuda-lo na nova carreira. Porém, logo fica claro que Jesús não escapará da realidade tão comum aos homossexuais.

Não bastassem as dificuldades naturais na vida de qualquer pessoa, ele terá como acréscimo o obstáculo da homofobia, que com algumas nuances o filme dá a entender que assombrou o personagem durante a vida escolar e agora surge inesperadamente.

Jorge Perugorría, que no filme Morango e Chocolate interpretou um homossexual, desta vez é Angel, pai de Jesús, que saiu da prisão após quinze anos de cárcere e parece ter voltado apenas para dificultar a vida do filho. O ex-boxeador proíbe Jesús de se apresentar e com ambos desempregados, pai e filho – praticamente dois desconhecidos – devem dividir um pequeno apartamento, em um esforço diário para comprar comida.

Com o crescimento da luta do movimento LGBT a tolerância aos atos de homofobia vem diminuindo, ainda que bem mais devagar que o necessário. Atitudes homofóbicas já não são vistas com naturalidade por boa parte da população, o que nos faz estranhar certas atitudes complacentes de Jesús com o pai.

O jovem prefere aguentar Angel bêbado e autoritário do que recorrer à ajuda de Mama (Luis Alberto García), a principal drag queen da boate. A escolha é explicada ao longo do filme. Pode ser questionável, mas nesse sentido as raízes do cinema cubano são mantidas, pois a história rende reflexões e debates que tendem a aprofundar uma visão geralmente superficial sobre o tema abordado.

O diretor opta por retratar os personagens de acordo com os estereótipos mais comuns. O homossexual cabeleireiro, sensível; e o homofóbico lutador, alcoólatra. É uma certa restrição, pois uma das reivindicações do movimento LGBT é exatamente a desconstrução de locais pré-determinados aos homossexuais, porém não deixa de ser uma denúncia da restrição no campo de atuação para aqueles que não se encaixam na heteronormatividade.

Muitas críticas aos homossexuais são baseadas no trabalho com a prostituição ou atividades baseadas de alguma forma na sexualidade, no entanto muitos não optam, mas são levados a essas atividades pela impossibilidade de encontrar trabalho, seja pela recusa dos empregadores, seja pela pouca instrução.

Uma vida de bullying intenso nas escolas ao longo da infância e adolescência não faz dos estudos uma opção muito atraente. Conforme citado, apesar de não haver relatos diretos da vida de Jesús, sua falta de amigos e alguns diálogos indicam as dificuldades vividas na adolescência, que mal chegou ao fim.

Esse histórico do jovem, que é órfão de mãe, é desconhecido por parte de Angel, mas é possível indicar que existe certa preocupação paterna com o filho. Uma preocupação que se expressa de forma inaceitavelmente machista, de alguém que além de cair de paraquedas na vida de Jesús, ainda passou quinze anos isolado da sociedade.

Pouco a pouco percebemos que não se trata apenas de um caso de homofobia a ser repelido. Existe uma complexidade por trás dos personagens que força Jesús a buscar o amor paterno, que até então ele não conhecia, mas que valoriza a ponto de moldar sua vida para se aproximar de Angel.

O ex-boxeador, ainda que tenha atitudes inaceitáveis, tem mais problemas do que o primeiro contato com o filho pode demonstrar. Parece que a homossexualidade do filho não chega a ser um problema tão grade a ele, mas a preocupação gira em torno das dificuldades que o jovem enfrentaria. Provavelmente Angel tem o olhar viciado que impede de aceitar a sexualidade como algo individual e particular, que não deve influenciar em nada na vida social.

Profundo e sensível, Viva mistura críticas sociais indispensáveis com uma visão romântica, que sonha com soluções benéficas para aqueles envolvidos em situações que sequer deveriam ser encaradas como um problema. Diante das dificuldades econômicas, da falta de convivência e problemas de saúde, a homossexualidade de Jesus, cujo nome sem dúvida é proposital, sequer deveria ser considerada como fator relevante para Angel, que também não tem esse nome por acaso.


quarta-feira, 19 de julho de 2017

O cidadão ilustre (El ciudadano ilustre)

A literatura não cria apenas uma realidade, cria uma realidade para cada leitor. Indo além das páginas do livro, cada um cria uma imagem do escritor, de suas inspirações e do que tem de real na história narrada, independente de quanto o livro seja fantasioso.

Isso ajuda a entender a situação do personagem Daniel Mantovani (Oscar Martínez). O escritor fictício ganhou o prêmio Nobel e agora pode se dar ao luxo de selecionar de forma muito criteriosa os eventos que aceita participar. A ligação afetiva faz com que ele aceite o convite para voltar a Salas, sua pequena cidade natal, no interior da Argentina, onde receberá o título de Cidadão Ilustre.

Não é fácil corresponder às nossas próprias expectativas. Idealizamos um cenário perfeito e a realidade sempre fica distante da perfeição, se não soubermos dosar a frustração e aproveitar os fatos concretos, as lamentações do que poderia ter sido serão sempre maiores.

A tarefa de Mantovani é ainda mais difícil, pois além de suas próprias expectativas geradas pelos quarenta anos de distância da cidade, ele ainda encontrará toda a população local, cada um com sua esperança individual de ascensão através da visita do ilustre desconhecido, já que poucos haviam conhecido pessoalmente o escritor.

Os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn filmaram um roteiro original, mas a obra acaba ajudando a entender porque a frase ‘o livro é melhor que o filme’ é tão popular quando diretores optam por uma adaptação.

Assim como os moradores de Salas criaram uma realidade imaginária com a visita de Mantovani, alguns com a possibilidade de demonstrar seus afetos, muitos contando com uma carona na fama do compatriota, cada leitor de um livro cria sua própria realidade a partir das descrições literárias.

É impossível a qualquer diretor de cinema corresponder à expectativa dos leitores, pois até mesmo sua própria leitura será distorcida ao ser filmada, com atores e cenários que não são idênticos ao que foi imaginado.

Com essa analogia podemos entender as frustrações que a visita de Mantovani proporcionou. Diferente do que muitos esperavam, o escritor é avesso ao assédio e à notoriedade. Ele até abre exceções por um pouco de simpatia, mas o público é intransigente em relação ao que espera.

Uma desproporção notável fica por conta dos valores de cada um. É evidente que passando tanto tempo em grandes cidades, em contato com a cultura erudita e imerso em um universo cosmopolita, Mantovani tem pouco em comum com os cidadãos provincianos, que não são inferiores por conta dessa diferença, somente têm um estilo de vida condizente com a realidade que os cercam.

A estrutura mercadológica também tem seu peso no abismo cultural formado entre o escritor e seus conterrâneos. À população de pequenas cidades do interior só chega o que pode ser consumido, gerando lucro para a cadeia produtiva. Desta forma os cidadãos mais ricos possuem grandes carros, casas suntuosas e ostentam bens materiais.

Em contrapartida, Salas, ou qualquer outra pequena cidade longe de grandes centros, não possui cinema, teatro, livrarias, muito menos exposições periódicas de artes. As pinturas de gosto duvidoso feitas por moradores não poderiam ser diferentes, já que nem mesmo os grandes nomes da pintura desenvolveram suas técnicas sem referências clássicas.

O orgulho ferido de alguns moradores diante da frustração com algumas atitudes de Mantovani não vem somente pelas críticas do escritor, mas pela condição inusitada de quebra de tradições.

Cidades que são pouco maiores que povoados possuem hierarquia política bastante clara. Os donos do poder não estão habituados, portanto não aceitam em nenhuma hipótese, ouvirem algo contrário ao que esperam, vindo de alguém sobre quem a elite não tem controle.

Colocando a literatura, ainda que de forma inusitada, como ponto central do filme, os diretores instigam de forma leve e bem humorada algumas reflexões sobre o comportamento social, confrontando a distância entre um escritor consagrado, que integra o seleto grupo de vencedores do prêmio Nobel, e uma boa parte da população, já que os estereótipos explorados estariam presentes em vários outros locais.

Um escritor engajado costuma pensar em temas profundos, que retratem problemas sociais e questionamentos internos, mas romper a barreira elitista e fazer com que as obras cheguem ao público alvo imaginado pelo autor, não pelas livrarias, é um desafio a mais para quem busca seguir o árduo caminho da escrita.


terça-feira, 11 de julho de 2017

Luz nas trevas - a volta do Bandido da Luz Vermelha

Bandido da Luz Vermelha foi como ficou conhecido João Acácio Pereira da Costa. Na década de 60 ele entrou na casa de suas vítimas utilizando uma lanterna com luz vermelha e os assassinatos entraram para a história da literatura policial do país.

As tragédias, imediatas para as vítimas e posterior para o próprio João Acácio, chegaram ao cinema em 1968, na obra dirigida por Rogério Sganzerla. Sob a influência do cinema novo, Sganzerla apresentou uma crítica social em forma de sátira, que se tornou um clássico do cinema nacional.

Depois de 50 anos a história volta a ser contata nas telas, desta vez dirigida por Ícaro Martins e Helena Ignez, que recorreram à obra original e utilizam trechos de sons e imagens, sobretudo para enfatizar um ambiente caótico e perturbado.

Esta versão também não visa uma cinebiografia. A sátira e as metáforas são formas eficazes de indicar que excluindo algumas peculiaridades de João Acácio, como a luz vermelha que destacou seus crimes, a essência do caso se assemelha a tantos outros que juntos colocam o país entre os mais violentos do mundo.

Todos os países têm casos isolados de assassinatos que chamam a atenção, pela quantidade de vítimas, crueldade extrema ou peculiaridade no método adotado pelo criminoso. Porém aqui o Bandido da Luz Vermelha (Ney Matogrosso) tem sua notoriedade diluída no mar de presos de uma cadeia superlotada.

A atuação do artista que, apesar de sempre muito performático, fez carreira na música, é baseada em monólogos de um presidiário com ampla visão crítica, tanto do sistema prisional quanto da estrutura social na qual esteve imerso até a detenção.

Há quem critique a análise do histórico social de criminosos, alegando que nada justifica os crimes cometidos. De fato, a maioria das pessoas expostas desde a infância às mesmas privações passam a vida sem recorrer aos crimes. Portando seria reducionista alegar que todo o problema vem da desigualdade social.

Mesmo assim, é inegável que as pessoas reagem de formas distintas aos estímulos sociais que recebem. Muitos, como João Acácio, optam por arcar com as possíveis consequências legais e desfrutar os lucros de assaltos. A eventual morte de uma vítima pode ser somada a tantos corpos, nem sempre criminosos, que amanhecem nas favelas.

O sistema prisional vingativo e corrupto, que visa proporcionar ao detento a pior condição de vida possível, lucrando com propinas de quem tenta comprar um resquício de dignidade, vem dando provas históricas de sua ineficiência. O índice de reincidência, a criminalidade fora de controle e a criação de facções criminosas parecem ser fatores cuidadosamente despercebidos pelos que defendem tratamento desumano aos detentos.

De forma difusa, o filme dá uma versão social para a criação de um criminoso, que não quer roubar pela mera sobrevivência, mas por uma vida de extravagâncias almejada por qualquer um e que nada justifica ser restrita a uma pequena parcela da população.

Uma sociedade mais igualitária e consequentemente mais justa não deve ser buscada como forma profilática para eventuais crimes bárbaros. O sangue dos latrocínios, no Brasil, é a ponta visível de toda uma estrutura de violências cotidianas, geralmente tão tradicionais que sequer são identificadas como tal.

O título ‘Luz nas trevas’ é ideal para a proposta do filme. Foge do estereótipo e expande a ideia de retratar o caso específico do ‘bandido da luz vermelha’. Além de resgatar a atmosfera do primeiro filme, mesclando crítica social e fatos históricos através da sátira, Ícaro Martins e Helena Ignez dão continuidade ao trabalho anterior, com uma roupagem moderna, mas abordando temas ainda presentes em nossa sociedade, mesmo depois de meio século.

Talvez o filme de Rogério Sganzerla pudesse ser visto em sua época com um pouco de esperança. João Acácio havia acabado de ser preso, com uma condenação que garantia o teto de trinta anos de encarceramento. A sociedade poderia seguir em frente, livre do assassino que povoou o imaginário do país.

Hoje sabemos que o bandido da luz vermelha do filme mais recente é puramente ficcional. O culto, consciente e artístico personagem interpretado por Ney Matogrosso em nada se assemelha ao João Acácio que deixou a cadeia depois de trinta anos, com evidentes problemas mentais e assassinado poucos meses mais tarde.

A realidade, despida dos floreios da arte, segue nos apresentando apenas o lado ruim dos problemas estruturais da sociedade, retratados nos dois filmes. Seguimos reproduzindo as condições ideais para a formação de criminosos e exibindo ícones do crime, quando presos, como troféus de caça.


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