terça-feira, 31 de maio de 2016

A ditadura perfeita (La Dictadura Perfecta)

Uma ditadura, em seu sentido clássico, é o poder exercido de forma totalitária, por alguém que concentra em si uma autoridade incompatível com a alternância de poder e limitações de um chefe executivo. Em um Estado moderno, isso excluiria qualquer empresa, já que a definição se aplica aos representantes do governo.

O diretor Luis Estrada recorre à comédia para caricaturar a realidade e ampliar o conceito de poder, mostrando como uma alternância do chefe de poder executivo não implica, na prática, em uma democracia consolidada. Tudo começa quando, para apagar o incêndio proporcionado por uma gafe do presidente, um vídeo do governador Carmelo Vargas (Damián Alcázar) é divulgado pela MX TV.

Seria ótimo se o fato de um político recebendo uma mala de dinheiro vivo só fosse plausível no cinema. A propina, tanto quanto o desdobramento do caso, é tão real que causou desconforto no México dadas as semelhanças com a emissora Televisa e com eminentes figuras da política mexicana. Mesmo sendo um filme estrangeiro, o roteiro parece um apanhado de fatos ocorridos no Brasil, bastando poucas modificações para que as situações se adaptem ao nosso cotidiano.

Os países latinos têm em comum a vergonhosa necessidade de admitir a corrupção como prática corrente no exercício da política – fato antigo e independente de partidos. Isso faz com que inevitavelmente uma rede de comprometimentos seja formada nos bastidores. Conforme vemos no filme, e nos jornais, essa rede extrapola os limites da esfera política, contando com atores do setor privado tanto na consolidação de uma imagem quanto no fluxo de dinheiro envolvido.

A única alternativa para Carmelo Vargas foi buscar o amparo de seus algozes. A tentativa inicial de suborno fracassou, afinal, para quem estava com a carreira política de Carmelo nas mãos, mais uma mala recheada de dólares não significava nada. O acordo final implicou no desvio de um rio de dinheiro público investido legalmente na empresa, em troca dos serviços de marketing do produtor Carlos Rojo (Alfonso Herrera).

O que vem à tona é um contrato dentro da lei, de uma empresa privada prestando um serviço. O que fica oculto em um acerto tácito é o pagamento de um valor exorbitante para que um veículo com enorme poder de formação de opinião mude o foco de seus editoriais, moldando a opinião pública de forma sutil e eficiente, a despeito de trapalhadas que mais uma vez só deveriam ter espaço em um filme de comédia, mas que estão constantemente presentes em noticiários supostamente sérios.

Interferir na opinião pública não chega a ser um grande desafio, bastando a progressiva substituição dos noticiários. No lugar dos escândalos de corrupção entra algum fato marcante que mobilize o público. No filme esse fato é o sequestro de duas pequenas gêmeas, cuja cobertura é transformada quase em uma novela pela emissora que pouco se preocupa com o desenlace do caso, desde que possa capitalizar mais recursos e, principalmente, apagar da memória de seus telespectadores a má reputação do governador.

Ao que parece, o que sustenta a alternância de poder executivo é uma alternância de factoides televisivos, sem nenhum comprometimento com a informação, mas com o entretenimento vazio que vai ao ar em horário nobre travestido de noticiário. É notório como muitos assuntos veiculados à exaustão de repente perdem espaço até sumirem dos jornais.

O roteiro do filme é basicamente a filmagem de um roteiro real, que descreve a relação entre a grande mídia, comprometida com políticos corruptos, e a falta de escrúpulos daqueles que mantêm a estrutura do poder inabalável e hegemônica. Seduzida pela ideia de democracia reduzida à rotatividade de poder e fisgada pelo engodo de que políticos são todos iguais, boa parte da população se dá por satisfeita com eleições periódicas, nas quais escolhe o candidato que considera menos pior.

Assistindo ao filme, ou aos jornais, não demora para percebermos que algumas premissas democráticas, como o voto equitativo ou a igualdade de condições, são completamente desvirtuadas por somas obscenas de dinheiro público utilizadas para a construção de um candidato com amplo apoio de setores empresariais, com os quais o futuro eleito está comprometido até os ossos em um esquema corrupto do qual não conseguiria sair nem se quisesse.

Luis Estrada traz apenas um recorte caricaturado da realidade. É pertinente que a partir dos exemplos do filme a população pare para pensar em quantas emissoras, construtoras, igrejas, agências de publicidade e tantas outras empresas com contato direto com governantes podem contribuir com uma ilusão democrática, maquiando a perpetuação do poder nas mesmas mãos.


terça-feira, 17 de maio de 2016

A floresta que se move

É admirável que uma obra escrita há quase meio século siga servindo de inspiração para artistas do mundo inteiro. William Shakespeare conseguiu essa proeza retratando com maestria a estrutura de poder que sustentava as relações sociais de sua época, dessa forma encenar fielmente a história de Macbeth seria anacrônico, sobretudo no Brasil, que nunca teve uma monarquia tradicional como a britânica em seu governo, mas é possível transpor os atores sociais para a atual situação, mantendo a essência da obra.

Foi assim que o diretor Vinícius Coimbra montou sua versão da obra de Shakespeare, mostrando que a ambição pelo poder, descrita pelo dramaturgo quando o Brasil completara apenas um século, pode ser notada ainda hoje, com evidentes adaptações temporais e transposições devidas.

Curioso que a ambição pelo poder abandonou o caráter político. O protagonista já não quer chegar ao governo de um Estado, mas é simbolizado pelo personagem Elias (Gabriel Braga Nunes), que é surpreendido com a súbita possibilidade de chegar à presidência do maior banco privado do país. Essa simbologia é uma nuance fundamental para compreender quem está de fato no poder do país.

Por um lado é ótimo que não tenhamos um monarca onipotente com o poder de governar de forma arbitrária, por outro uma oligarquia formada por grandes corporações privadas se esconde por trás de uma teoria democrática, segundo a qual o governo deveria atuar em benefício da maioria da população.

Na prática não faz muita diferença quem assume a cadeira da presidência, o lucro dos poucos bancos privados que atuam no país segue batendo recordes consecutivos, governo após governo. Isso dá a essa oligarquia econômica poderes políticos consideráveis que, em conluio com outros setores da economia, como os grandes veículos de comunicação, podem driblar as regras democráticas, mantendo a maquiagem da alternância de poder.

Da mesma forma que a monarquia britânica tinha tudo para seguir tranquilamente no poder, não fosse a ganância de um de seus membros atuar diretamente para que a corrente sucessória fosse rompida, vemos no filme uma estrutura de poder extremamente propícia para a vida de Elias, não fosse a mesma ganância instigada por sua esposa Clara (Ana Paula Arósio).

Seguindo a profecia de uma misteriosa bordadeira, talvez a personagem mais anacrônica da adaptação, condizente com século 17, o protagonista é promovido à vice-presidência do banco, sendo a presidência seu caminho natural, visto que o filho de Heitor (Nelson Xavier), o atual presidente, não tem o menor interesse pelos negócios. Uma vida economicamente impecável, vivendo em uma mansão com todo o conforto que o dinheiro pode comprar e seguindo a carreira com que sonhou – que é factível para pouquíssimas pessoas. Tema recorrente em Shakespeare, e em toda a humanidade, o poder não satisfaz. Não faltam exemplos – históricos e fictícios – de quem teria tudo para uma vida brilhante, mas inexplicavelmente colocou tudo a perder.

Na história original o entrevero da família real trouxe problemas insolúveis para os envolvidos, entretanto podemos imaginar que para o reino, em longo prazo, tudo virou uma história lamentável, que abalou a família real, mas não ameaçou o poder da monarquia. Da mesma forma, o que quer que aconteça nos bastidores de poder de um grande banco privado terá uma influência imediata nas ações da empresa e irá influenciar na sucessão da cúpula, entretanto em pouco tempo a estrutura estará recomposta, a oligarquia reestabelecida e os danos serão restritos aos indivíduos envolvidos.

Historicamente Macbeth é classificado como uma tragédia, em contraponto às comédias que seu autor também escrevia. Já essa adaptação, na genérica classificação dos filmes, é classificada como drama. Uma visão mais abrangente poderia dizer que se trata de um filme de terror. Não o terror clássico, com monstros e criaturas sobrenaturais, mas um terror que quebra com as expectativas sociais.

Em um momento histórico em que cada vez mais o sucesso é associado com o desempenho econômico, a floresta que se move traz fantasmas que assombram a ideia de que a violência está restrita a uma classe extremamente distante daquela retratada no filme. Uma hipótese que Shakespeare desenvolveu com extrema competência em suas obras e que Vinícius Coimbra trouxe para as telas – ainda que distante de uma obra prima – é a de que a ganância é onipresente e pode tranquilamente se manifestar onde menos se espera. O terror se caracteriza em trazer para perto uma característica que se espera encontrar nos outros.



terça-feira, 3 de maio de 2016

Hermano - Uma fábula sobre futebol

Este longa do diretor Marcel Rasquin é venezuelano. Um ótimo representante do desconhecido cinema de nossos vizinhos, sobre os quais sabemos muito pouco mesmo fora das telas. O interessante é que sua história ilustra a periferia de qualquer país latino-americano, mostrando que temos muito mais em comum do que certas divergências políticas tendem a nos fazer acreditar.

Com uma trama central Rasquin utiliza diversas ramificações para ao menos indicar problemas graves e onipresentes em comunidades carentes, tão frequentes que fazem com que um roteiro realista esteja sempre estruturado com a mesma base.

Daniel (Fernando Moreno) e Júlio (Eliú Armas) são irmãos. Não de sangue, mas de criação e no filme essa característica é relevante, pois Daniel foi encontrado ainda bebê abandonado em meio a sacos de lixo. Grandes companheiros, os irmãos formam uma dupla de sucesso no La Ceniza, time de futebol da favela, e sonham com a chance de jogar em um grande time.

Um diferencial da Venezuela em relação aos demais sul-americanos é que o esporte nacional não é o futebol, mas o basebol. Seria como se no Brasil os meninos aspirassem sucesso no vôlei ou basquete, ou seja, um sonho ainda mais difícil que a carreira no esporte mais popular e consequentemente valorizado.

A primeira reação ao vermos o velho sonho de ser jogador de futebol é a de pensar que as chances de sucesso são muito remotas. De fato, porém não demora para notarmos que o contexto social dos personagens faz com que qualquer sonho que vislumbre ascensão social é tristemente remoto.

Um pouco de reflexão nos mostra como as histórias dos personagens, mesmo que ocultas, são diferenciadas por nuances. O acaso colocou Graciela (Marcela Girón), mãe biológica de Júlio, em contato com Daniel, mas o menino passou perto da morte por inanição, ou de uma criação descuidada que poderia leva-lo a ser mais um menino viciado em cheirar cola, praticando pequenos roubos com consequências trágicas.

Outro laço de personagens com destinos correlacionados é o que se forma entre Daniel e a jovem Sol (Leany Leal), que ilustra um problema assustadoramente comum, o da gravidez na adolescência. Jovem, sem formação nem renda e com um vínculo muito tênue com o pai da criança, o desenrolar da gravidez precoce é uma denúncia sutil de como o machismo capilarizado acaba punido as mulheres. A história de Sol, repetida ao longo das gerações, é uma das hipóteses mais prováveis para a origem de Daniel, neste ciclo de vidas quase pré-determinadas, em que indivíduos dificilmente conseguem assumir o protagonismo da própria história.

No contexto dos personagens do filme, aspirar um futuro melhor implica em superar problemas inimagináveis para boa parte da população. Exatamente por não ter contato direto com essa realidade, as classes economicamente mais elevadas não levam em conta, ao pensar em jovens como Daniel e Júlio, como algumas situações influenciam no desenvolvimento do indivíduo.

É evidente que uma condição econômica confortável não livra ninguém de problemas, que são distintos mas não estão ausentes da vida de ninguém, porém o filme retrata jovens são bombardeados com problemas cujos impactos podem levar vários anos para serem superados até mesmo por pessoas muito mais experientes.

Imaginar que decisões plenas e sensatas sejam tomadas ou que tragédias sejam superadas do dia para a noite, sem nenhum tipo de auxílio externo ou mesmo uma formação básica que prepare esses personagens tão reais para a vida chega a ser inocente.

Cabe ressaltar como a justiça local é posta em prática. A favela é quase um Estado à parte, com as próprias regras e juízes. Estes são tão impiedosos quanto boa parte da população acredita que o Estado formal deveria ser, isso inclui tortura, julgamentos sumários e pena capital. Seria ótimo se a exposição dessa suposta forma de justiça, assim como todos os problemas que ela desencadeia, fosse suficiente para esclarecer aqueles que acreditam ser esta a melhor forma de conduzir a sociedade.

Não são apenas as implicações negativas de indivíduos condicionados pelo medo, mas também a insegurança de viver em um ambiente com julgamentos arbitrários, passíveis de erros sem volta e marcados pela barbárie. O que se chama de justiça, tanto a do filme quanto a formal, que se aplica fora das telas, acaba sendo uma forma de manter poucos indivíduos no poder, que no filme se caracteriza pelo traficante, reprimindo os demais até o limite da lei. Em uma sociedade com leis arbitrárias, o limite também é assustadoramente arbitrário.


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