terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Vestido

Para este longa o diretor Paulo Thiago partiu de uma adaptação literária um pouco inusitada, pois a obra de origem não é um romance, mas o poema ‘Caso do Vestido’, de Carlos Drummond de Andrade. É um detalhe relevante, já que os romances adaptados são inevitavelmente simplificados para serem adequados ao formato cinematográfico. Neste caso a história teve que ser desenvolvida, dando detalhes à trama e aos personagens, que estão ausentes no poema. A comparação sobre qual seria melhor é infundada, já que são linguagens muito distintas, mas o filme proporciona uma história interessante.

Frequentemente as roupas ganham um status simbólico que ultrapassam seu valor de utilidade, por isso os vestidos de noiva costumam ser guardados por toda a vida, por vezes passando de mãe para filha. Aqui o vestido em questão não é de casamento, mas também guarda lembranças de uma história.

Quando Ângela (Ana Beatriz Nogueira) ganhou o tal vestido de seu marido Ulisses (Leonardo Vieira) ela parecia viver seu conto de fadas particular. Casada e com duas filhas, dedicava a vida a cuidar do marido e da casa em uma pequena cidade do interior.

Para compreender o contexto da história e seu desenvolvimento, é necessário lembrar que essa família nuclear era praticamente uma regra social vigente no país até meados do século XX. O destaque do poema de Carlos Drummond de Andrade é exatamente evidenciar o casamento em crise, a separação e abalos na vida familiar, que hoje não chegam a ganhar tanto destaque, mas era uma novidade na sociedade, que a corrente literária modernista exteriorizava em suas obras.

No filme esse elemento inovador é a personagem Bárbara (Gabriela Duarte), que se aproxima da família de forma dúbia, pois por um lado faz amizade com a angelical Ângela, por outro questiona seus valores morais e a suposta felicidade inabalável que o modelo de esposa ideal defendia. Fica evidente desde o início que Ulisses terá uma atração pela moça que vem da capital e isso irá abalar seu casamento.

A sociedade pode ter mudado desde a época retratada, porém, como em uma fase de transição, seguimos entre uma postura mais liberal, com a mulher se distanciando da vida exclusiva de dona-de-casa, e a tradição de valores morais, que desde aquela época eram mantidos muito mais por força do que por vontade.

O problema dessa transição social – que é benéfica e necessária, por dar à mulher o direito de ter escolhas ao invés de uma vida pré-determinada – é que a nova realidade é mais complexa, escancarando problemas que sempre existiram, mas costumavam ser mais discretos e socialmente aceitos, como a infidelidade masculina. A incoerência de valorizar a família tradicional e nuclear para a mulher e tolerar a infidelidade masculina passou a ser questionada, juntamente com o aumento dos pedidos de divórcio.

Pode ser um alívio não ser mais obrigada a tolerar traições, o que não torna mais fácil ver o sonho de uma família dita perfeita desfeito. Além do trauma pessoal e do choque emocional de uma crise no relacionamento, Ângela simboliza mulheres que na época não tinham referências sociais desta situação. Ainda que o filme não retrate a mesma fase histórica em que o poema foi escrito, os cenários fazem referências ao passado ao longo de todo o filme.

Através de Ulisses podemos ver uma transição mais suave, já que em uma sociedade que permanece machista, o homem segue com certas facilidades. O caso não chega a ser uma dicotomia na qual buscamos quem está certo ou quem está errado, é apenas cômodo aos homens culpar o casamento pela frustração de uma vida que supostamente seria de grandes aventuras e usar isso como justificativa para trocar de esposa.

Com uma transição social longe de ser consolidada, ainda vemos a história do filme com influências tanto de visões mais tradicionais quanto de comportamentos modernos. Mesmo assim, é inegável que a vida de um casal é desenvolvida em conjunto, com responsabilidades de erros e acertos compartilhadas. Da mesma forma que a desculpa masculina de uma vida grandiosa frustrada pelo casamento torna-se insustentável depois do divórcio, já que a vida do marido segue entediante; a felicidade inabalável de uma família padrão também não se sustenta sozinha.

Não é a toa que Carlos Drummond de Andrade é uma referência na literatura. Encaixar os vários aspectos da vida social em versos de um poema é uma tarefa para poucos, que aqui foi transposta para as telas repaginando características que continuam influenciando em nossa sociedade.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Lilet never happened‏

O cinema de cada país costuma ter seu próprio estilo. A cultura local acaba influenciando fortemente nos temas e roteiros. Isso deixa ainda mais curioso o fato de um filme rodado do outro lado do mundo ter um enredo tão globalizado e familiar para os brasileiros. Este longa, do diretor Jacco Groen, é um ótimo exemplo.

Na periferia de Manila, capital das Filipinas, a protagonista Lilet (Sandy Talag) é uma menina de doze anos. Por vezes se apresenta como Branca de Neve e seu comportamento também alterna entre o rude e agressivo de uma realidade cruel e o sonho da criança frágil, em busca de proteção.

A situação econômica precária da família empurra as crianças para a rua, os pais, imersos em problemas, não apenas negligenciam a educação dos filhos como em casos extremos – como o de Lilet – exploram as crianças. Primeiro com a venda de produtos nos semáforos, depois, quando situação se agrava, recorrem ao mercado sexual, sustentado pelo fetiche de homens insanos o suficiente para manter a prostituição infantil.

Apesar das crianças terem um futuro quase pré-determinado por essas condições, o futuro de meninos e meninas começa a ser separado. Enquanto elas aprendem desde cedo os recursos que seus corpos têm a oferecer, eles permanecem nas ruas e logo percebem que há atividades mais rentáveis do que a venda de quinquilharias. Atividades ilegais, mas como cobrar cidadania de alguém que não tem os mínimos direitos garantidos?

Socialmente a reação diante dos problemas de uma infância destruída também é diferente. O caráter de vítima das meninas raramente é negado, porém a reação não vai muito além de uma indignação distante, sem nada de concreto. Já em relação aos meninos seduzidos pelo crime a indignação ultrapassa completamente a tentativa de compreensão.

A violência contra meninas que se prostituem é um crime inaceitável, porém tem como principal vítima as próprias meninas. É possível fechar os olhos e fingir que nada acontece, ou que são casos distantes. Já a violência sofrida pelos meninos se reflete na própria sociedade, que sentirá os efeitos diretos através dos furtos cometidos.

Diante deste cenário a reação mais comum é a fúria voltada contra os menores, incriminados por não cumprirem um dever, ignorando as condições críticas em que nasceram e cresceram.

No filme esse estereótipo é representado por Nonoy (Timothy Mabalot), que nutre uma paixão adolescente por Lilet. Isso divide o jovem entre a vida nas ruas, estimulada pela jovem, e o abrigo criado por Claire (Johanna ter Steege), visando oferecer o mínimo de cidadania que as crianças precisam.

Por mais bem intencionado que seja o trabalho de pessoas como Claire, o caminho não é nada fácil. Além de lutar contra a simbologia de uma pessoa estrangeira se aproximando das crianças locais, muitas vezes chegando de países responsáveis pela exploração que causa tantas mazelas sociais, é necessário lutar também contra a sedutora liberdade oferecida pelas ruas.

Em uma escola tradicional, estruturada, em que os alunos não precisam lidar em casa com problemas financeiros, já não é fácil convencer os estudantes de que o ensino é necessário e benéfico, sendo que muitos frequentam as aulas diariamente simplesmente por obrigação. Imaginar que a importância do estudo seja encarada como elementar pelas crianças, sobretudo em um local onde fará pouca diferença no futuro, é uma utopia.

Conforme já mencionado, esse é um filme que com poucas alterações poderia ser filmado em vários outros países, aparentemente distintos. O que acaba unindo esses países é a necessidade de manter boa parte da população marginalizada, com uma esperança que nunca será concretizada, mas costuma ser suficiente para manter a paz social, mesmo diante de um abismo econômico.

A solução para os problemas apontados no filme é complexa, pois extrapola o caso individual de Lilet. Não basta convencer uma das crianças a tentar mudar devida, até porque a mudança não tem como ser garantida. Os problemas sociais, que muitas vezes não passam de reflexos bem indiretos de uma estrutura social comprometida, devem ser combatidos em sua base.

Preocupar-se com furtos de menores infratores serve apenas para tirar o foco de verdadeiros problemas, que não são combatidos por serem de responsabilidade de pessoas com grande influência econômica e política. Enquanto houver uma concentração de renda que exija um contingente de mazelas sustentando uma pequena parcela da sociedade, o roteiro deste filme seguirá verídico e universalizado.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Pedra da Paciência (Syngué sabour)

A psicanálise, em linhas bem gerais, estimula que a pessoa analisada fale sobre sua própria vida e aos poucos pequenos detalhes encaixados acabam revelando fatos de seu inconsciente, do qual nem a própria pessoa se dava conta.

Claro que para isso o psicoterapeuta deve estar presente, ninguém consegue ‘se analisar’ sem ajuda. Apesar disso, algumas linhas psicanalíticas podem ser notada neste longa do diretor Atiq Rahimi.

Em estado vegetativo após levar um tiro na nuca, um homem afegão (Hamidreza Javdan) passa o dia sob os cuidados da esposa (Golshifteh Farahani). Como se isso não fosse uma situação complicada o suficiente, esses cuidados não são ministrados em um hospital, com profissionalismo, mas no quarto de casa, com uma mísera sonda de soro ligada à boca e um pano húmido para o banho.

Em região constantemente bombardeada e sob o fogo cruzado de milícias afegãs, a esposa vive o dilema de abandonar o marido – pelo qual no fundo não tem grande sentimento afetivo – ou arriscar a própria vida para cuidar dele.

Neste contexto entra em cena a metáfora da pedra da paciência, uma pedra mágica para os persas, que ouve os lamentos de um interlocutor, até que se rompe libertando a pessoa de seus traumas. Ao saber dessa lenda a esposa começa a se aproximar aos poucos do marido e a falar sobre sua própria vida, como se fosse ele sua pedra da paciência.

O machismo em si já é uma expressão da ignorância. Nada de bom pode surgir de um pressuposto de superioridade sem nenhum fundamento. Porém o machismo levado ao extremo, como em regimes mais conservadores que se baseiam em fundamentalismo religioso, como vemos no Afeganistão e como vimos por muito tempo no Brasil de algumas décadas atrás, proporciona algumas cenas tragicômicas, como vemos no filme.

Qualquer animal tem seus mecanismos de defesa. Os humanos também, e com a intervenção da racionalidade. Em uma sociedade em que a mulher segue sendo tratada ora como uma escrava, ora como ferramenta para o marido, é inevitável que estratégias sejam traçadas para que as punições não sejam postas em prática.

Conforme as confissões da afegã são narradas, vemos que ela não almejava nada muito grandioso. Reclamava da falta de contato com o marido, que beijava suas codornas utilizadas em rinhas, mas nunca a esposa; narrava as estratégias utilizadas contra o próprio marido, não por desejo de enganá-lo, mas por necessidade de não ser punida por uma culpa que não era sua; e uma série de eventos inimagináveis para uma sociedade com a nossa, ou seja, ainda muito machista, porém longe do extremismo afegão.

O sentimento da esposa em relação ao marido é bastante ambíguo. Chega a amaldiçoa-lo, mostrando seu ódio, mas após tanto tempo de convivência forçada, ela não abre mão da esperança de que as coisas melhorem, caso ele volte do coma.

Essa complacência pode ser encarada com certo romantismo e esperança feminina, mas há também uma motivação racional. O machismo é sempre muito bem blindado contra reações femininas. A esposa sabe que mulheres que já foram casadas são vistas como um objeto de segunda mão, com pouco ou nenhum valor de mercado. Longe de querer aceitar a vida que levava, também não é uma boa opção assumir o papel de divorciada ou mesmo de mãe de dois filhos sem um pai presente.

Além de um retrato da sociedade afegã vista de dentro, o filme mostra quem ganha com o machismo vigente, ou seja, ninguém. É evidente que as mulheres são as que mais sofrem, tanto física quanto psicologicamente, mas não dá para dizer que os problemas não atingem também os homens.

Sem querer transformar os agressores em vítimas, o homem em coma é o retrato do machista sob as consequências dos próprios atos. Frio a ponto de dispensar mais atenção a uma codorna que à própria família, enganado graças a sua imposição de regras insanas, ferido em uma discussão desnecessária.

Colocado desta forma parece uma situação distante da que vivemos por aqui. De fato superamos algumas ações do machismo, mas enquanto mulheres seguirem sendo agredidas, violentadas, por vezes assassinadas, e com direitos restritos em relação aos dos homens, não podemos nos orgulhar de termos superado o machismo. Ele existe, nos cerca, nos envergonha e se não tomarmos cuidado, nos seduz.


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