terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Narradores de Javé

O longa dirigido por Eliane Caffé em 2001 mostra a história do pequeno povoado de Javé, prestes a ser inundado quando o governo da Bahia decide represar o rio para a construção de uma usina. Dez anos após o lançamento do filme sua exibição se torna cada vez mais necessária em um país que sempre exaltou seu potencial hidrelétrico, ignorando os impactos sociais e ambientais gerados pelas imensas barragens necessárias para a construção das usinas.

Para tentar salvar o local, o povo de Javé, quase todos analfabetos, pensam em escrever um livro com as histórias locais, um registro supostamente científico, para que isso sirva de argumento e impeça a construção da barragem, já que só cidades com importância histórica são poupadas. A transcrição das histórias, difundidas oralmente no povoado, fica por conta de Antonio Biá (José Dumont), que além de saber escrever sabe vender histórias e tem o dom da malandragem, que as durezas da vida ensinam tão bem.

A partir disso o filme segue como uma deliciosa comédia marcada por regionalismos e situações inusitadas dos moradores contanto as histórias da forma como lembram. Não obstante, a memória, como já dizia Walter Benjamin, é recomposta de forma única a cada vez que a invocamos e as acareações informais entre os moradores de Javé nunca chegam a um acordo sobre o que de fato aconteceu.

A divergência em relação aos fatos é bastante natural, assim como a grandiosidade de tudo o que é contado. O povo pode ser simples, sofrido e inculto pela óptica da cultura dominante, mas também têm ícones, mártires e histórias grandiosas, talvez falaciosas como qualquer sociedade, pois isso ajuda a encobrir as mazelas, dando a cada indivíduo a sensação de ser indispensável.

Antonio Biá procura fantasiar ainda mais os fatos narrados, criando fábulas a partir de fatos cotidianos e pensando em detalhes que poderiam beirar o realismo fantástico, tão bem narrados, apesar de não serem escritos. As distorções nos fatos podem, a princípio, ser criticadas, afinal a ideia era fazer um relato científico, baseado no suposto profissionalismo da ciência, que dá veracidade aos fatos de forma quase inquestionável. Porém, se Biá cria fantasias sobre as histórias narradas, os interessados em inundar o local também apresentam dados de forma tendenciosa, omitindo problemas, minimizando impactos e vangloriando as vantagens de uma usina hidrelétrica em um local distante das grandes cidades.

Empunhando a bandeira do progresso e desenvolvimento, em detrimento de comunidades supostamente menores e menos importantes, defensores das usinas hidrelétricas atropelam detalhes primordiais, como por exemplo, para quem se destina o desenvolvimento prometido, já que uma simples sondagem em áreas alagadas com o mesmo intuito (e mesmo discurso) no passado mostrará que as populações ribeirinhas permanecem estagnadas, se não piores em relação ao período anterior ao suposto desenvolvimento. Além disso, mesmo que os povoados inundados pelas represas costumem ser bastante simples, sua população cria raízes – comprovadas pelas histórias narradas em Javé – que não merecem ser simplesmente afogadas por um lago de usina. Ainda que houvesse um programa realmente sério de realocação dos moradores, nuances do local de origem são insubstituíveis, como a personagem do filme que lembra o cemitério da cidade, onde seus antepassados estão sepultados, e agora será submerso para o progresso de cidades e pessoas que aquela população sequer conhece.

A geração de energia é uma necessidade tão grande quanto os problemas que ela gera, não apenas no Brasil, mas em vários outros países que utilizam outras matrizes energéticas. Se a demanda por energia e o potencial hidrelétrico devem ser unidos, o mínimo que se espera – para não entrar no imenso impacto ambiental que uma represa causa – é que o desenvolvimento gerado pela nova usina chegue de fato à população que sacrificou suas terras, suas histórias, suas lembranças, para que grandes centros urbanos pudessem seguir suas vidas como se nada diferente tivesse acontecido. Para que as pessoas tenham histórias, é necessário condições de vida para isso, de forma que não sobrevivam para trabalhar, mas vivam a vida com o direito de extravasar a imaginação e bom humor, tão bem retratados no filme.

Com as discussões sobre a usina de Belo Monte bastante acaloradas, com ambos os lados defendendo bravamente seus argumentos, vemos que não há decisão unânime e plenamente satisfatória, mas os moradores de Javé nos mostram a discrepância de forças entre a população, que só tem suas divertidas e encantadoras histórias, e todo o aparato governamental, capaz de convencer até mesmo de que os impactos de uma hidrelétrica são pequenos. Claro que o filme é um recorte fictício baseado em tantos povoados que passaram e ainda vão passar por situações semelhantes, mas aquele povo passional e divertido sem dúvida é mais esclarecedor que a recente guerra de vídeos sensacionalistas, pró e contra Belo Monte.


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Chico Rei

Uma das grandes funções do cinema é servir de aporte para a transmissão de fatos históricos, que são de suma importância tanto para evitar a repetição de tragédias quanto para evidenciar certos absurdos passados que influenciam muito em nosso cotidiano. Toda história é contada a partir de um ponto de vista, cuja verdade acaba sendo formada por uma dialética entre lembranças e intuitos. Nessa linha de raciocínio temos, por exemplo, inúmeras obras retratando os horrores do holocausto, com algumas delas criadas por judeus que se esforçam em retratar o fato sob o ponto de vista do oprimido, ao invés do opressor.

A Segunda Guerra teve seus campos de batalha distantes do Brasil, mas nosso ‘holocausto’ foi bem mais longo. Durante três séculos negros foram covardemente capturados na África e condenados ao trabalho forçado nas lavouras e minas de ouro na América. Outra diferença para o holocausto é que hoje, judeus como Steve Spielberg podem retratar com maestria a vida de pessoas como Oskar Schindler, enquanto negros brasileiros continuam sofrendo duros preconceitos e enfrentando barreiras sociais e econômicas, que dificultam até mesmo a narrativa da história sob o ponto de vista dos oprimidos. Ainda assim temos algumas obras muito bem elaboradas para a descrição da escravidão. Uma delas, com direção de Walter Lima Junior, conta a história de Chico Rei, lendária figura que pagou pela liberdade de tantos negros quanto lhe foi possível comprar com o ouro que, com mais facilidade que o comum, encontrava nas minas.

Difícil narrar com precisão a vida de Chico Rei, interpretado por Severo d’Acelino, afinal a documentação da época era precária, sobretudo em relação a assuntos vergonhosos como a exploração tão cruel de seres humanos, por isso o filme é baseado em relatos populares e outras obras com o mesmo tema. Mais importante do que o retrato fiel do que aconteceu, é a simbologia criada ao redor do escravo que com sua facilidade para encontrar ouro, poderia tranquilamente viver em paz, mas preferiu salvar o máximo de pessoas possível. Como um tipo de Schindler de sua época, o ex-escravo pode comprar a liberdade de seu povo – aceitando aqui que a liberdade pode ser comprada – o que o torna herói em uma época em que o racismo era institucional e subsidiado até mesmo pela igreja.

Os relatos históricos do transporte desumano, do leilão de escravos, dos castigos, dos abusos e uma série de outras nuances, com a intervenção do cinema ganham a força da imagem, que choca, mas não chega sequer a um vislumbre do que foi viver tudo isso, sentir na pele e na consciência tudo o que nenhuma mente sã seria capaz de criar para rebaixar um ser humano para um estado indigno até mesmo para animais. Se hoje a situação encontrada no Brasil melhorou – já que transformar a escravidão de constitucional para crime, apesar de ser o mínimo, é uma melhora – ainda está longe do ideal e talvez mais próxima da escravidão do que gostaríamos. Em um mundo menos segregado, mas ainda preconceituoso e com fortes bases da estrutura escravocrata, as grandes fontes de renda não são mais minas de ouro, mas grandes empresas cujos donos, não por acaso, nada têm de descendência africana.

Infelizmente o filme fornece vários elementos que nos permite fazer ligação com a sociedade de hoje, não é preciso nem criatividade, basta um jornal, um programa de televisão, ou uma simples caminhada pelas ruas para notar o quanto o período da escravidão nos influencia e como essa influência é absurdamente aceita passivamente. Para piorar – como se precisasse – teorias são criadas ao longo dos anos para tentar atenuar a barbárie e, como sempre, culpar as vítimas por sua condição. Neste caso específico, é frequente atribuir a captura de escravo aos próprios negros de tribos rivais, omitindo convenientemente que essa captura era feita sob a mira de armas de fogo e das ameaças mais torpes.

Esta falácia absurda e ignorante pode ter duas justificativas. Uma delas é a evidente busca de alívio moral daqueles que se recusam a admitir a culpa, preferindo jogá-la na vítima e surpreendentemente não sentir nenhum peso na consciência por isso (caso ainda não tenha ficado claro, faço um paralelo quase infantil para dizer que, ainda que de fato as tribos rivais capturassem outras por vontade própria, a receptação de carga roubada também é crime).

A outra hipótese é bem subliminar no filme: a de julgar os escravos com base na atitude dos europeus; atitude esta que se dá pela lógica de mover o mundo pelos interesses, ao invés dos princípios. Ou seja, é possível ver no filme que, diferente de Chico Rei, que ajudou ao máximo seu povo, europeus que vinham para o Brasil eram explorados pela metrópole portuguesa, de forma leve se comparada com a exploração dos negros, porém a relação entre europeus e senhores de escravos nunca chegou perto da cooperação que havia entre os negros. Como lidar com essa inveja? Jogando a culpa nas vítimas, como sempre.

Essa é uma grande produção da década de 80, obrigatória ao pensarmos em escravidão, assim como o longa “Quanto vale ou é por quilo?”, que adapta Machado de Assis para comparar mais explicitamente a época da escravidão com os dias atuais.


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cinema Aspirinas e Urubus

O longa de Marcelo Gomes é um filme de época. A história se desenvolve em 1942, quando o alemão Johann (Peter Ketnath) vem para o Brasil para fugir da guerra que devastava seu continente. Aqui já temos um dos tantos pontos interessantes do filme. Demora um pouco para notarmos que tudo ocorreu há quase setenta anos e durante todo o tempo temos a incômoda impressão de que é um relato atual. A gente surrada pelo tempo, cujas marcas de expressão impedem de estimar a idade, condiz com o cenário rústico, que dá ao filme de época a cara de contemporâneo, uma espécie de desdobramento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que ganhou tons desbotados no lugar do original em branco e preto.

O sertanejo aqui segue os estereótipos quase inquebráveis com Ranulpho (João Miguel), que por acaso aproxima-se de Johann e ambos desenvolvem uma grande amizade, mesmo com tanta diferença cultural entre os dois. O trabalho do alemão é vagar pelo sertão, improvisando um pequeno cinema para exibir um filme sobre os benefícios da aspirina para os moradores da cidade grande. Se hoje, diante do bombardeio de informações e vídeos, as propagandas têm o poder de convencer as pessoas de que elas devem comprar uma coisa da qual nunca sentiram falta – por vezes sem sequer saber qual a utilidade – o que dizer de pequenos vilarejos isolados na década de 40.

Nosso primeiro impacto pode ser o de crítica às pessoas que compram aspirinas sem motivo e acabam gastando o dinheiro que fará falta para comprar bens essenciais. Mas a lógica de exibir uma mercadoria consumida em um local mais desenvolvido, para convencer consumidores de outros locais a comprá-la é reproduzida em várias esferas. Com o mundo globalizado e a facilidade de disseminação da informação, que não precisa mais viajar pelo sertão em um caminhão, improvisando um cinema, uma das principais técnicas de marketing continua sendo a exibição de estereótipos consumindo um produto que posteriormente será oferecido para quem, muitas vezes, nunca chegará perto de atingir o estereótipo da propaganda. Parece que mesmo muitas décadas depois da história narrada no filme, os urubus permanecem por toda parte.

A expropriação do dinheiro dos cidadãos é mostrada mais diretamente através da vendas das aspirinas, entretanto uma outra forma de enriquecimento do privado a despeito do público é citada no filme através do ciclo da borracha, já decadente na época, mas que movimentou muito dinheiro e muita gente ao longo da guerra, quando os nordestinos viram na necessidade de mão-de-obra para a extração do látex na Amazônia o vislumbre de uma vida melhor. O resultado é bem conhecido do povo brasileiro, quer dizer, alguns poucos enriqueceram o suficiente para manter infindáveis gerações de sua prole como poderosos donos de terra, não necessariamente brasileiros, basta lembrar que uma cidade da região amazônica se chama Fordilândia, uma ‘homenagem’ a Henry Ford, que investiu na extração de matéria-prima na região.

O que o filme deixa implícito, e a história nos revela, é que o ciclo da borracha foi um gérmen das parcerias público-privadas atuais, onde o estado entra com o investimento – neste caso custeando o transporte dos trabalhadores do nordeste para a região norte, além de toda assistência necessária para a população amazônica, que cresceu subitamente – e as empresas ficam com o lucro de tudo que é extraído, pagando taxas irrisórias perto do valor arrecadado com matéria-prima.

Entre tantos pontos do filme que poderiam ser ressaltados aqui, vale lembrar que em meio a tantas insanidades que rondaram a Segunda Guerra, cujos preceitos nazistas continuam a nos assombrar através de ignorantes que insistem, algumas décadas depois, em pregar intolerância e a tão ridícula quanto inexistente superioridade racial, destaca-se a bonita amizade entre um alemão, contrário à guerra, e um nordestino, que pouco sabe sobre o teor do conflito. Provavelmente essa relação não foi intencional, mas usar uma nacionalidade que em tempos de guerra remete ao nazismo, e um estereótipo tão atacado pelo nazismo velado em nosso país obteve um ótimo resultado ao mostrar que a convivência pacífica no plano individual pode acontecer livremente. Sem intolerância, sem preconceito, sem ignorância.

É mais uma ótima produção nacional, que obteve pouco destaque. Faz pensar na tela itinerante que Johann levava sertão adentro pode ser uma alternativa interessante, ao menos em curto prazo, para a escassez de cinemas pelo interior do país. Se serviu para a divulgação das aspirinas, sem dúvida serviria para a divulgação da cultura, essa sim presente massivamente em centros urbanos e pólos desenvolvidos e tão necessária para áreas distantes e carentes.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Nina

O diretor Heitor Dhalia foi ousado ao dirigir em seu primeiro longa uma adaptação da obra Crime e Castigo, de Dostoievski. Trocando o protagonista por Nina (Guta Stresser) e a Rússia do século XIX pelo Brasil do século XXI, vemos o tema central da obra desenvolvido pelo diretor e os dramas particulares, as crises psicológicas e os sentimentos que há mais de cem anos remoem tanto o personagem da literatura, quanto os que o acompanharam, muito bem representados em cena.

A narração de Nina antes mesmo do início do filme já dá a entender que, na divisão proposta por Dostoievsky entre pessoas ordinárias e extraordinárias, ela opta pela segunda categoria. Ao longo da trama isso se traduz como alguém que se recusa a aceitar um status quo absurdo e inadmissível, que sem nenhuma justificativa, ainda que cínica, tenta tirar da protagonista, recém chegada a uma grande cidade, as oportunidades de viver a vida de forma prazerosa, ao invés de manter-se constantemente sob a pressão das obrigações diárias de trabalho e contas para pagar.

É curioso – e preocupante – notar que alguns elementos descritos inicialmente há tanto tempo na Rússia podem ser transpostos com bastante fidelidade para a vida contemporânea no Brasil, sem que isso cause estranheza ou anacronismo. A vida da personagem retratada pode ser bastante dura, mas a alternativa de ceder às obrigações e se encaixar no padrão de acordar cedo, passar o dia trabalhando e ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar o quarto alugado não é nada sedutora para Nina.

Em oposição à jovem sonhadora, que veio para uma grande cidade para viver, ao invés de se manter viva, e prega no quarto os desenhos que faz para extravasar seus sentimentos, o diretor apresenta Dona Eulália (Myriam Muniz), a velha mesquinha que ao alugar um dos quartos para Nina tenta cobrar por cada mísero detalhe que pode ser rentável de alguma forma. Não há nada de extraordinário nela, a construção da personagem que mantém seu apartamento escuro, mal ventilado, com mobília antiga e sua voz aguda e tremula é condizente com suas atitudes tão duradouras, já que se encaixam em um antigo romance russo e em um filme brasileiro contemporâneo.

A velha mesquinha e irritante, presa às formalidades e individualista ao extremo é uma forma de criticar, exacerbando, o posicionamento legalista e mantenedor de uma antiga ordem vigente. Entre as diversas formas de encarar o individualismo em uma grande cidade, é possível pensar na satisfação de Dona Eulália com sua vida de cárcere voluntário, fechando qualquer brecha para tudo o que há para fora de seu apartamento. O problema é que Nina é a simbologia contrária, com sua juventude que anseia pela vida, se esforça por quebrar padrões e tenta sempre propor algo novo. É neste ponto que o individualismo da velha senhora passa a ser questionável, pois extrapola os limites da própria pessoa e passa a tentar ser imposto aos que estiverem por perto.

Com as bandeiras de liberdade e igualdade levantadas há dois séculos, na Revolução Francesa, a ideia de liberdade seduz e inspira a jovem Nina a romper as inúmeras amarras que tentam arrastá-la para a vida monótona e sem brilho, mas também tem inspirado, por séculos, a velha Eulália, que parece trazer seus conceitos da Idade Média e acredita que a liberdade está no direito de ignorar o outro, vivendo em sociedade com a atitude paradoxal de ser legalista até o ponto em que as leis são vantajosas para si.

Já a igualdade – que a princípio visa os mesmos direitos e oportunidades – nas mãos de tantos que, mesmo sem admitir, se encaixam muito bem no perfil de Dona Eulália, vem ganhando contornos de planificação dos indivíduos, ou seja, o padrão de comportamento é imposto para que os indivíduos sejam iguais ao invés de seus direitos e oportunidades. Esse embate é o ponto central que rege a vida de Nina. Até que ponto ela pode lutar pelo seu direito de ser livre e manter suas obrigações, mas acabar com as explorações (termos que vêm sendo constantemente confundidos)?

Aqui o filme surpreende se distanciando do livro, pois se Dostoievski já indica no título de sua obra que houve um crime, a tendência de muitas interpretações é de barrar a simbologia da velha ordem e dos novos questionamentos e se ater ao crime em si, que excluindo as metáforas é evidentemente reprovável. Sem entrar em detalhes sobre o final do filme, após vivermos toda a angústia de Nina, com o medo servindo de barreira para sua vida, nos deparamos com algo que deixa o filme bastante emblemático e curioso. Talvez uma alternativa à forma da morte de uma velha (ideologia) de controle dos indivíduos e imposição de comportamento através da supremacia econômica.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os Infiltrados (The Departed)

O filme tem como base da trama agentes da máfia e da polícia infiltrados no campo de ação dos adversários. Atuar em um campo com o qual não se tem familiaridade e mesmo assim não ser descoberto é praticamente impossível, pois são tantos detalhes que podem denunciar a falta de familiaridade com o ambiente que apenas quem conhece as nuances de um determinado campo poderia ser capaz de fingir, ainda que com certa dificuldade, naturalidade naquele meio.

Assim o mafioso Frank Costello (Jack Nicholson) colocou em prática um plano que teria resultados em longo prazo, treinando Colin Sullivan (Matt Damon) desde a infância para que ele pudesse se tornar policial e servir de informante sobre os planos policiais em relação à máfia. Pelas cenas do filme é possível notar a formação diversificada por parte de Sullivan, cuja socialização contou com elementos religiosos quando era coroinha, métodos dos mafiosos como cobrança de propina de comerciantes, a instrução persistente de Costello de que os homens fazem seus próprios caminhos e também uma cultura bastante refinada, que fica latente quando o personagem valoriza vestir terno ao invés de uniforme policial, ou quando lamenta o restaurante não servir pato com laranjas. Com isso vemos grande capital cultural nas atitudes do personagem.

Apesar de ter crescido junto à máfia, Sullivan não é um criminoso vulgar e suas ações têm violência velada, pois foi socializado para agir dentro da polícia com atitudes baseadas sempre na inteligência e postas em prática com muita calma e sutileza. É possível perceber que o habitus do personagem gira em torno de tomar as atitudes corretas, devidamente pensadas e muito bem articuladas para que suas metas sejam atingidas, ou seja, trilhar um caminho por onde deve seguir.

O sucesso do plano de Costello, de infiltrar um agente na polícia, é claramente consolidado diante da facilidade e rapidez com que Sullivan inicia seu trabalho na polícia e destaca-se como homem de confiança. O agente não foi socializado para ser um policial qualquer, mas para executar serviços de inteligência, baseados na perspicácia e astúcia, de forma que em nenhum momento alguma suspeita é levantada contra ele. Mesmo quando a antipatia dos outros policiais é despertada ele dribla as adversidades com a prepotência de quem foi treinado para ter poder e saber utilizá-lo a seu favor.

O agente infiltrado na máfia pela polícia é Billy Costigan (Leonardo DiCaprio). Ainda que não tenha sido proposital como no caso de Sullivan, ele também foi criado em um ambiente, pois a família era de mafiosos, e tentou ingressar em outro, já que queria ser policial. Aparentemente seria a mesma trajetória para os dois, porém a socialização de Costigan não tinha como objetivo colocá-lo na polícia, de forma que esta inserção em um campo com o qual não tinha familiaridade, diferente de Sullivan, foi problemática desde o início.

O sargento Dignam (Mark Wahlberg) deixa claro que Costigan tinha origem irlandesa, foi criado no sul e membros de sua família eram ligados à máfia, ou seja, totalmente contrário ao indivíduo traçar seu próprio caminho e excluindo a academia de polícia do campo de possibilidades do personagem. Talvez a hostilidade por parte de Dignam foi encenada apenas para colocar como única opção para ser policial o ingresso na máfia como agente infiltrado, pois ninguém mais indicado para o serviço do que alguém que tem todo o capital social necessário para aproximar-se do chefão da máfia.

Este trabalho não era exatamente a forma com que Costigan pensava em ser policial, mas acabou sendo a única possível. Provavelmente a vontade de combater a máfia motivou o personagem a aceitar o serviço, mas em pouco tempo a meta passou a ser salvar a própria vida, já que se Sullivan fosse descoberto provavelmente seria preso, e se ele fosse descoberto sem dúvida seria morto.

O capital social de Costigan permitiu fácil aproximação da máfia e seu capital cultural fez com que a identificação com o chefão Frank Costello fosse quase imediata. O comportamento agressivo do personagem é notado em várias ocasiões, mesmo que não haja motivações profissionais, ou seja, Costigan foi socializado em um meio bastante hostil e violento, tendo consolidado o habitus de resolver os problemas através da violência física. Mesmo tendo que pensar rápido e agir friamente, com muita inteligência da mesma forma que Sullivan, o comportamento dos personagens fora do ambiente de trabalho demonstra habitus quase opostos, pois a educação e polidez de Sullivan contrastam com a agressividade de Costigan, sendo que o primeiro foi treinado conforme já discutido, e o segundo apenas teve que desenvolver técnicas para sobreviver em um ambiente nada amistoso, onde impera a lei do mais forte.

Em uma cena que deixa implícita a diferença de formação, Costello reconhece a importância da escola, logo é possível deduzir que a instituição teve grande peso na formação de Sullivan, porém Costigan indica não ter interesse, assim com base nas teorias de Bourdieu é possível notar que a escola não teve tanta influência na socialização do personagem. O que é claramente perceptível é que por mais chocante que seja o comportamento dos mafiosos Costigan consegue agir com a naturalidade necessária para que não levante suspeita. Ainda que reconheça o horror da barbárie ele consegue manter o controle e expressa isso para a psicóloga, quando diz que o coração pode disparar, mas as mãos não tremem.

Ao longo do filme notamos que os objetivos dos dois infiltrados são bastante semelhantes, porém Sullivan mostra-se muito mais tranquilo em seu trabalho, enquanto Costigan vive em uma tensão constante, prestes a explodir. Isso é compreensível ao pensarmos que Sullivan exerce o papel para o qual foi preparado durante toda a vida, logo sente a consagração de um trabalho em suas atitudes. Costigan vive a situação contrária, pois não é exatamente um policial como gostaria de ser, não é um mafioso mesmo inserido dentro da gangue de Costello, e quando conquista Madeleine (Vera Farmiga) ele não é mais que um amante, portanto foi uma ótima opção do diretor Martin Scorsese mostrar a cena do casal com um cover da música “Confortably Numb”, pois em todas as situações da vida de Costigan ele não é muito mais que uma versão do original.

Apesar de serem campos relativamente semelhantes, máfia e polícia possuem no filme diferenças relevantes, assim como a formação dos dois agentes. Uma delas é a insubordinação da máfia ao estado, pois ainda que os mafiosos tenham suas próprias leis, punido os transgressores de maneira muito mais severa que o estado, o chefe da máfia não precisa prestar contas de suas atitudes e pode agir arbitrariamente. Já a polícia deve agir dentro de seus limites, de forma que mesmo sabendo dos crimes da máfia, não possui meios de incriminar Costello sem provas claras.

Em consequência disso, como já foi mencionado, Costigan sofre muito mais pressão para ser perfeito em suas atitudes, pois para a máfia não há outra punição além de assassinato, muitas vezes precedido de tortura. No caso de Sullivan qualquer tipo de punição envolveria uma série de direitos por parte do acusado, cujos quais a polícia não tem meios legais de violar.

Outra diferença é que a máfia age exclusivamente em prol da própria máfia, visando o lucro independente dos meios que precisam ser seguidos para atingi-los, já a polícia do filme não visa interesses pessoais e não há cenas que mostrem negociação com mafiosos, subornos ou algo do tipo, apenas a meta de combate a máfia. Ainda que muitas técnicas sejam parecidas, há a diferença dos objetivos.

Um ponto curioso do filme é a forma como a origem irlandesa dos personagens é tratada. Muitas vezes essa origem é depreciada pelos próprios personagens irlandeses, ou seja, eles podem ter os valores consolidados por suas famílias, mas caem em contradição por pretenderem ascensão negando as próprias origens. Apesar de não existirem elementos sobre a formação do mafioso, supomos que sua socialização o levou à máfia, porém suas atitudes influenciam no meio em que vive, forçando mudanças estruturais no campo da máfia.

Com um enredo baseado em tantos detalhes, em que qualquer passo em falso poderia desencadear uma série de reações adversas, é natural que as tensões acumuladas venham a explodir. O enredo extremamente bem amarrado é mais uma grande obra de Scorsese, um dos gênios do cinema, que é capaz de fornecer em uma única obra inúmeros elementos de análise. Sem revelar detalhes do final do filme, uma possível dúvida – independente de como ele termine – é se Sullivan e Costigan poderiam viver como policial e mafioso de forma definitiva.

Sullivan teria condições para isso, afinal ficou muito tempo trabalhando na polícia sem despertar suspeitas. Porém ele teria que reestruturar sua vida, que foi toda destinada para ser infiltrado na instituição e identificar informações relevantes à máfia. Provavelmente essa efetivação seria mais fácil para Costigan, que almejava a inserção em um campo desconhecido, para o qual não estava plenamente preparado e que logo no início sofreu grande rejeição.




terça-feira, 8 de novembro de 2011

Machuca

Dois anos antes do filme “O ano em que meus pais saíram de férias” ser lançado no Brasil, o chileno Andrés Wood lançava, em 2004, o filme Machuca, que também aborda um período da ditadura militar sob o ponto de vista de uma criança. Ambos são filmes bem simples e, voltados para o grande público, visam mostrar alguns impactos do período ditatorial sobre as crianças.

Apesar de a intervenção militar ter sido bastante dura nos países latino-americanos, algumas nuances fazem com que a história de cada país ressalte pontos específicos. Assim, em Machuca, o diretor reserva a primeira parte do filme para mostrar um pouco da sociedade chilena nas vésperas do dia 11 de setembro de 1973 – quando o presidente Salvador Allende, eleito por voto popular, foi covardemente derrubado do poder – para em seguida apresentar alguns resultados da ação militar sobre as pessoas.

Como a sociedade é muito multifacetada para ser representada em todos os seus aspectos dentro de um único filme, a opção aqui é polarizar os estereótipos entre a classe média alta, indignada com o governo de Allende, e a classe pobre, defensores do governo. A metáfora para essa ilustração é montada na escola particular, frequentada por Gonzalo Infante (Matías Quer), que passa a fornecer bolsa integral para alguns estudantes pobres, entre eles Pedro Machuca (Ariel Mateluna).

É a amizade entre Gonzalo e Machuca que guia o filme para uma série de referências que constroem um recorte da sociedade chilena da época. Muitas coisas passam despercebidas no Brasil, como a distinção de classe através do sotaque ou a diferença de nomes, pois o menino pobre é chamado pelo sobrenome (Machuca) estigmatizado por caracterizar pessoas pobres. Outras distinções são mais que claras, como a casa, roupas e hábitos dos dois amigos. Dentro do universo infantil os discursos dos adultos são ramificados para apontar as diferenças de classes.

Com estereótipos bem simples – por vezes até demais – vemos como os pais dos estudantes da escola particular rechaçam a presença de alunos bolsistas, alegando que os hábitos destes iriam influenciar seus filhos (evidentemente fechando os olhos para a falta de educação que já marcava alguns alunos vindos da classe média), um ponto que chama a atenção é a manifestação da burguesia contra o governo Allende, extremamente confluente com o patético movimento "Cansei", que surgiu meteoricamente no Brasil em 2007, quando um presidente ascendeu da camada popular – mesmo trabalhando muito mais para as classes altas que Allende.

A segunda parte do filme é para abordar o início dos quase vinte anos de regime ditatorial que seguiram o golpe militar chileno. É notável a mudança de ritmo do longa, que acompanha a mudança social ocorrida no país, como em qualquer estado que subitamente passa a ser tutelado pela intolerância. Enquanto a sociedade entrava em conflito para defender seus interesses e pontos de vista, os mais jovens, talvez com senso crítico menos viciado pelas opiniões que nos bombardeiam dia a dia, conseguem encontrar pontos em comum e perceber que o estranhamento causado pelo simples deslocamento de um para o ambiente do outro – seja o menino pobre na mansão do amigo, ou o menino rico no barraco de Machuca – não é aceitável, ou ainda natural.

É evidente que conflitos sociais, sobretudo em sociedades com grandes abismos entre as classes, sempre existirão. A forma de resolução dos conflitos é que deve ser discutida, pois no Chile e países vizinhos a solução foi a intervenção de uma instituição nascida e criada para a guerra, para o conflito armado onde o mais forte sufoca o mais fraco. Militares não servem para solucionar conflitos, para isso existe a política, e a intervenção militar se dá quando a minoria em número se recusa a dialogar com a minoria em poder bélico.

Alguns filmes vêm sendo lançados no cone sul abordando o período militar, mesmo tendo passado quinze ou vinte anos após o fim formal do totalitarismo. Talvez pareça anacronismo revisitar temas de décadas passadas com tantas questões sociais atuais a serem abordadas. O detalhe é que os anos de chumbo deixam raízes profundas. O ensino superior chileno atualmente é particular – semelhante ao colégio onde Gonzalo estudava – e isso vem excluindo boa parte da juventude chilena há muitos anos. Recentemente as antigas reivindicações do movimento estudantil, até então ignoradas, ganharam força e abandonaram os papéis a partir do momento em que estudantes foram para as ruas – semelhante às revoltas retratadas no filme. O resultado foi o mais previsível possível, com os mesmos militares, a mesma disparidade de força e a mesma ausência de diálogo.

No Brasil não é muito diferente. Nossa polícia militar se mantém entre as mais violentas do mundo, superando com folga a polícia norte-americana (mundialmente famosa pela sua truculência). Boa parte da sociedade, acostumada há décadas a acreditar que a “ordem” trará “progresso” chega a se orgulhar da instituição militar encarregada de sua segurança, ainda que a ação continue – assim como retratado por Andrés Wood – apenas perpetuando um status quo insatisfatório.

Machuca é exageradamente didático para mostrar que integrar classes sociais desde cedo, oferecendo educação igualitária para todos, não é isoladamente a solução de problemas, porém é um passo fundamental. Além disso, a intervenção militar na sociedade civil, sobretudo na educação, não soluciona problemas, porém é um passo fundamental para perpetuá-los.


terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Palhaço

Selton Mello estreou como diretor com o longa “Feliz Natal”, mesmo com o bom trabalho a popularidade do ator não se refletiu no roteiro tenso e introspectivo, que ganhou status de filme cult e acabou pouco conhecido. Em seu segundo trabalho a direção de Selton está mais madura e o roteiro (mais uma vez em parceria com Marcelo Vindicatto) explora muito bem o universo lúdico e descontraído do circo para suavizar a melancolia proveniente tanto da dificuldade econômica que o circo encontra, quanto dos problemas pessoais de Benjamin, o palhaço Pangaré (Selton Mello), que acredita ter perdido a graça e não consegue mais encontrar nos risos do público a motivação para seu trabalho.

O filme serve muito bem como comédia descontraída, com ótima fotografia e que diverte não somente nos espetáculos dos palhaços Pangaré e Puro Sangue (Paulo José), mas no dia-a-dia sempre inusitado de toda a trupe. Porém o roteiro não abandona completamente a reflexão sobre problemas individuais, explorados mais explicitamente no primeiro filme do diretor. O palhaço triste, que acredita não ser engraçado e questiona sobre quem vai lhe fazer rir, da margem para muitas questões.

Benjamin demonstra tristeza, mas não sabemos qual o motivo. Na verdade nem ele sabe, já que esse sentimento não necessita de uma motivação clara e explícita, podendo surgir até mesmo pela presença de novos desejos, obscuros até mesmo para quem sente, que dirá para quem assiste. A identificação deste possível novo desejo é importante, e a partir disso o palhaço passa a buscar um sentido para sua vida e talvez este, sim, seja o grande problema a ser resolvido ao longo da trama, afinal não temos um desejo ou uma meta na vida. Somos multifacetados e uma realização, felizmente, não nos satisfaz – assim como uma frustração, felizmente, não nos destrói.

Perdendo o interesse pela profissão, Benjamin parece não tolerar mais os espetáculos de humor que oferece ao público, sendo que as apresentações no picadeiro soam para ele como uma grande farsa. Assim, o palhaço faz um elo entre o riso fácil e defensivo, que nos oferece uma fuga das dificuldades cotidianas – um dos lados já destacados do filme –, e o triste amor que o personagem busca, tentando concretizar a paixão platônica que sente por uma bela moça, logo a primeira vista. O tipo de amor que vai machucar, mas ensina a lidar com perdas inevitáveis, que não ocorrem apenas no plano amoroso, de forma inigualável.

Não por acaso o circo se chama Esperança, sentimento que permeia o palhaço triste em busca de um sentido maior para a vida; também o próprio circo, que lida diariamente com a falta de recursos; e por que não os espectadores, torcendo pelo simpático palhaço e pelo divertido circo, para que encontrarem seus caminhos. A esperança é um sentimento simbolizado pela jovem Guilhermina (Larissa Manoela), que encanta pela beleza, graça e inocência, mas que inevitavelmente passará por duras provas antes de se concretizar. É uma grande sorte que essas provas estejam permeadas pelo riso do universo circense, cabendo aqui ressaltar a importância do circo para pessoas que tem poucas experiências lúdicas ao longo da vida, dado que o pequeno circo apresenta seus espetáculos em cidadezinhas do interior, distantes dos pólos culturais.

Por fim, sem revelar como a trama termina, como solucionar o conflito do palhaço que busca o sentido para a própria vida? A indicação deste como sendo, talvez, o grande problema se dá devido à ofuscação do cotidiano criada pelas grandes buscas. Quando a trivialidade do dia a dia deixa de fazer sentido, ou seja, para um palhaço nada mais direto que a satisfação de seu respeitável público, a busca de algo maior, que justifique todas as ações mas que raramente existe, acaba por frustrar ainda mais, já que essa busca tem a tendência de roubar uma base do indivíduo (sua vida cotidiana) sem lhe oferecer algo em troca.

Tentar curar a tristeza, como se fosse uma patologia, buscando algo maior pelo qual a vida passa a valer a pena pode até funcionar, mas o mais provável é que isso afaste o indivíduo dos prazeres atingíveis. É importante ressaltar que a ideia não é acreditar que Benjamin, ou qualquer um que cedo ou tarde vai se deparar com os mesmos questionamentos, deva se contentar com pouco ou abrir mão de sonhos que podem surgir ao longo da vida, mas que manter um circo em situações precárias e ser competente o suficiente para entreter o público, apesar das dificuldades pessoais e profissionais, já constitui um sentido nada desprezível e afastar algumas dificuldades, valorizando a própria experiência de viver, é o ponto de partida para voos mais altos. É a partir desta valorização que o personagem terá bases para lutar pelo que deseja – estes sim, desejos sem limites. Talvez tudo o que o personagem precise é ligar seu ventilador para refrescar e deixar as ideias fluírem – como um possível sentido de metáfora para o ventilador tão desejado por Benjamin.

Com a carreira de ator mais que consolidada Selton Mello já mostra ser capaz de reunir um elenco de peso para um roteiro que condensa grande conteúdo, expresso de forma leve e simples. Um trabalho para poucos, que deixa grande expectativa em relação ao que vem por aí.


terça-feira, 18 de outubro de 2011

Habanastation

O longa do diretor cubano Ian Padrón é um registro interessante de alguns aspectos da sociedade da ilha. Diante de tantas opiniões tão seguras quanto infundadas sobre um país que poucos conhecem, tanto defendendo fervorosamente quanto rechaçando qualquer qualidade que possa existir, o cinema é historicamente uma ferramenta que pode nos dar uma noção sobre países desconhecidos. O que vemos através de Habanastation é algo aparentemente evidente, mas ao falarmos da lendária Cuba nada chega a ser exatamente óbvio.

A base do enredo é a desigualdade social, pois sim, ela existe em Cuba, entre o jovem Carlos (Andy Fornaris), que vive em um bairro pobre da Havana velha, e Mayito (Ernesto Escalona), cujo pai é músico e por isso viaja o mundo, traz presentes para o filho e mantém a família em um bairro rico. O título Habanastation é um trocadilho com o videogame Playstation, que Mayito ganha do pai.

No simbólico primeiro de maio, em meio à grande comemoração na Praça da Revolução, trabalhadores e estudantes celebram a data e Mayito se perde da excursão de sua escola, indo acidentalmente até o bairro pobre de Carlos. A partir daí vemos uma sequência bem humorada de uma história cubana, mas que em sua essência poderia acontecer em qualquer outro país. Com o humor característico notado em vários filmes cubanos, Habanastation é permeado por críticas sociais e metáforas que geralmente são utilizadas tanto para apoiar quanto para criticar o regime de governo, variando conforme a opinião política de quem assiste.

Se por um lado é notável a diferença entre os padrões de vida dos dois jovens – discrepância presente em qualquer país latino, porém em destaque aqui por se tratar de Cuba – por outro vemos que os dois estudam na mesma escola, ou seja, contam com a mesma formação e não há privilégios estruturais para um deles apenas por conta da família rica. Ainda que seja pouco para obter maior igualdade social, a formação igualitária é um primeiro passo indispensável, que o Brasil está longe de dar. Digo que é pouco, pois as condições de vida além da escola também pesam, por exemplo, no filme Mayito tem as aulas como única preocupação, enquanto Carlos foi forçado a ter uma vida adulta e cercada de responsabilidades logo cedo, pois a mãe morreu quando ainda era muito pequeno e o pai está preso. Nessas condições, apenas frequentar a mesma escola é pouco para garantir igualdade de oportunidades.

Outro aspecto que chama a atenção – este talvez mais próximo do cinema brasileiro – é a diferença de valores perceptível entre Carlos e Mayito. A juventude cercada de bens materiais não garante ao garoto rico detalhes extremamente relevantes como brincadeiras com os amigos e o valor dado à importância de bons relacionamentos entre as pessoas. O abismo retratado entre os dois personagens não possui grande diferenças das obras de outros países que abordam o tema, afinal em um mundo globalizado, onde impera um padrão de sociedade, é de se esperar pouca variação na forma geral de tratamento entre as classes.

O que enriquece o discurso em Habanastation é a metáfora que cerca o tema, relacionando o conflito com o futuro da ilha. Mais de cinquenta anos depois da revolução que implementou o atual regime, Cuba vive uma transição que extrapola a família Castro, já que a geração dos guerrilheiros da década de 60 em breve dará lugar para jovens que não viveram sob outra forma de governo e, salvo a educação que recebem nas escolas, terão que fazer escolhas sem muitas referências de política externa. A dúvida é se optam por um caminho mais próximo ao estilo de vida de Mayito, materialmente muito sedutor, ainda que para poucos, ou se resgatam os princípios da revolução, que os levaram a superar muitas dificuldades para obter grandes conquistas.

Grande sucesso em seu país de origem o filme instiga debates, sobretudo na sociedade cubana, não apenas por ser o alvo do diretor, mas também pelo hábito cultivado há décadas de opinar sobre assuntos gerais e buscar através da troca de ideias as melhores alternativas. Fora da ilha as opiniões controversas a respeito de sua forma de governo continuarão por um bom tempo, mas obras com conteúdo tão rico quanto Habanastation lançam um pouco de luz sobre as críticas, tanto negativas quanto positivas, para que estas se tornem mais bem fundadas.


Está completo, mas sem legenda.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Medianeras

Conforme revelado no filme ‘medianeras’ são as paredes laterais de um edifício, aquelas enormes e sem janelas, por isso mesmo muito visadas para expor grandes anúncios. Dentro da proposta do filme, de abordar o cotidiano de uma grande cidade onde, apesar de cercados de gente, seus cidadãos vivem isolados entre si – condição bastante favorecida pela arquitetura desordenada, que quando pensada é para favorecer o individualismo, ao invés da integração – as medianeras formam um ótimo signo, sendo uma grande parede intransponível, que isola, separa, esconde e priva moradores de experiências que poderiam ser bastante ricas.

Apesar de toda a história acontecer em Buenos Aires, grandes cidades costumam ter algumas características semelhantes, sobretudo quando se desenvolvem de forma parecida, portando o enredo deixa qualquer morador de São Paulo bastante familiarizado. Para apresentar esse aspecto de Buenos Aires e como é a vida de seus moradores, o diretor Gustavo Taretto nos apresenta um recorte da vida de Martín (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala), vizinhos desconhecidos que seguem sempre por perto um do outro, com desejos parecidos, carências parecidas, porém sem cruzar seus caminhos.

As peculiaridades dos personagens, que deixam suas vidas muito engraçadas para quem assiste, não são exclusivas de uma cidade cosmopolita, mas são características cujo estilo de vida dos moradores das grandes cidades facilita. Martín pouco sai de casa, faz praticamente tudo pelo computador, além de ser fóbico e hipocondríaco. Mariana é vitrinista, exprime seus sentimentos tentando colocar um pouco de arte no dia-a-dia e, assim como Martín, sofre com a solidão após terminar um relacionamento.

É de se esperar que ambos devem se encontrar, mas mesmo com tantas opções de lazer, muitas vezes a disposição dos prédios e vários outros fatores de uma cidade não colaboram muito para facilitar o encontro de seus moradores. Martín comenta que Buenos Aires dá as costas para o rio. O que dizer de São Paulo, que dá seu esgoto para os rios, asfaltando suas margens ao invés de aproveitá-las para estimular o convívio dos moradores?

A história bem humorada e encantadora do casal que busca um ao outro, ainda que sem saber, não abandona a crítica a alguns aspectos arquitetônicos da cidade e mesmo ao comportamento de alguns de seus moradores, porém essa crítica não deve ser compreendida como sendo à cidade em si. A impressão que fica é a de que um crescimento planejado, ordenado e que favorecesse o convívio social, em detrimento do individualismo, somente facilitaria e deixaria mais prazerosa a vida de quem aprende a desfrutar de um grande centro urbano.

A prova de que a vida retratada não precisa ser necessariamente ruim ou mesmo difícil é o humor com que as situações do filme são retratadas e, principalmente, a beleza encontrada em meio aos infinitos prédios da capital argentina. Se por um lado a vida é corrida e grandes obstáculos – muitos graças à falta de planejamento urbano – devem ser enfrentados diariamente, por outro, é nessas cidades que a vida cultural explode e a diversidade de opções, em todos os sentidos, aflora em quantidade inimaginável para uma pequena cidade do interior – de qualquer país. Em meio a tudo isso fica muito mais fácil para uma personagem como Mariana encontrar um ‘Wally’.

Como a posição de vítimas da falta de planejamento não resolve muita coisa, tão pouco conforta quem se sente solitário em meio a multidão das cidades, cabe lembrar que tanto Martín quanto Mariana vivem com foco em um único e grande objetivo, uma busca retroalimentada pela angústia da solidão, que parece isolar os personagens de todo resto que os cercam (e que em uma cidade como Buenos Aires, não é pouca coisa). Grandes metas são válidas, podem ser bem trabalhadas, servir de inspiração, motivação, etc. Mas nunca devem ofuscar o encanto que o cotidiano da vida em um grande centro urbano pode propiciar. A vida nos cerca; podemos contemplá-la pela janela, ou sair para participar.


terça-feira, 27 de setembro de 2011

Hesher

A influência da banda Metallica no filme do diretor Spencer Susser pode ser notada de forma imediata pelas letras que consagraram o logotipo da banda e foram usadas também para o nome do filme. Além disso, várias músicas da banda, que foi uma das precursoras do thrash metal, formam a trilha sonora do filme, o que é raro, já que os integrantes do Metallica não costumam autorizar o uso de suas músicas. O que faz deste filme uma exceção é que o personagem Hesher (Joseph Gordon-Levitt) foi inspirado em Cliff Burton, o genial baixista que morreu em um acidente com o ônibus da banda em 1986, e a encenação realmente lembra o músico.

O roteiro transita entre drama e comédia para mostrar o inusitado encontro do pequeno TJ (Devin Brochu), que acabou de perder a mãe, com Hesher, que entra na vida do garoto por acaso e se recusa a deixá-lo em paz – quase como um Bartleby, de Herman Melville – mas apesar de não se encaixar na realidade na qual se encontra, assim como o personagem da literatura, Hesher não se aquieta e reage, ora com violência, ora com discursos recheados de metáforas vulgares, portanto cômicas, para ilustrar situações sérias.

Com o desenrolar das histórias dos dois personagens é possível notar certa relação entre o estilo de vida de ambos, sendo que a forma com que Hesher trata TJ, muitas vezes parecendo mais com desdém do que com amizade, indica a forma com que provavelmente foi tratado e se habituou, ou seja, sempre sozinho, sem poder contar com outras pessoas e com uma necessidade latente de encarar as dificuldades da vida. Sem escrúpulos Hesher parece ter a personalidade imbatível, sendo que não há situação ruim que um pouco de adrenalina não resolva – e quem acompanhou alguns relatos sobre a cena trash metal do início dos anos 80 sabe como costumavam ficar os camarins das bandas, formadas por jovens como o personagem.

Um indivíduo como Hesher não passa a agir de forma agressiva sem motivos e o filme de Susser é uma proposta interessante para ver dois períodos da vida de um estereótipo em momentos diferentes, pois uma das interpretações possíveis é que TJ é um Hesher em formação. Em um extremo o garoto acabou de perder a mãe e como se isso já não fosse bem difícil ainda tem que lidar com a hostilidade na escola, as atitudes patéticas de seu pai (Rainn Wilson), que de todas as maneiras de lidar com a súbita perda da esposa, parece escolher sempre as piores, e o amor platônico que cria por Nicole (Natalie Portman), sendo que a atração de TJ pela moça pode ser explicada muito mais por uma espécie de Édipo, com o garoto vendo na moça que o defendeu a figura da mãe que ele teve que abandonar, mais do que propriamente uma atração pelo feminino.

Em meio a todas essas dificuldades o outro extremo é Hesher, que pela convivência acaba servindo de modelo para o garoto. A forma rude de resolver os problemas e os discursos, nos quais a discrepância entre forma e conteúdo pode desagradar a quem assiste, passam a influenciar TJ em suas atitudes. O garoto também é forçado por Hesher a enfrentar seus medos e sua timidez, como talvez o controverso personagem também tenha sido forçado. Indiretamente TJ é instruído a valorizar sua família e isso indica que Hesher dá valor ao que não teve, sobretudo com os divertidos diálogos entre o cabeludo, coberto com tatuagens caseiras bem toscas, e a avó de TJ. Em mais uma referência a Cliff Burton, o diretor coloca a música Anesthesia, em off, tocada por Hesher. Poucos além do lendário baixista poderiam compor um solo tão elaborado ainda no começo da carreira, o que aproxima o personagem do músico e é mais uma obra do Metallica com a qual TJ entra em contato.

Longe de ser uma obra prima do cinema, Hesher tem o mérito de trazer para as telas um protagonista cujo estilo de vida é muitas vezes até marginalizado, porém muito comum desde o início dos anos 80. Sem dúvida muitos se identificarão com o bom humor incompreendido, as insanidades e o lado obscuro do personagem, que não se encaixa em um mundo no qual realmente não vale a pena se encaixar. A maneira informal de Hesher é desprezada pelo que geralmente é formal e no mínimo risível, como as atitudes do pai de TJ diante dos problemas.

Difícil dizer se o jovem se tornará mais um Hesher quando crescer um pouco, mas se por um lado explosões de violência não são o melhor exemplo para o menino, por outro ele teve uma forte referência de vida intensa e de uma personalidade que não se resigna aos problemas, enfrentando todos ao invés de baixar a cabeça. Na atual época do “politicamente correto”, na qual parece haver uma obsessão por afastar as crianças do que seria ruim Hesher nos mostra que a essência dos problemas é mais complexa do que a dicotomia entre certo e errado.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um Conto Chinês (Un Cuento Chino)

Se no filme Além da Estrada vemos dois jovens dando uma chance para as oportunidades da vida, esforçando-se para transformar tudo em benefícios, nesta deliciosa comédia do diretor Sebastián Borensztein vemos o protagonista Roberto (Ricardo Darín) como um solitário de meia idade, rabugento, mal humorado e repleto de manias, que de tão insólitas e repetitivas ficam extremamente divertidas nas telas.

É óbvio que mesmo que tentemos guiar nossas vidas com rédeas curtas, pensando meticulosamente em cada detalhe do cotidiano, uma série de imprevistos irão aparecer. Se não formos até a montanha (de percalços) ela virá até nós. A construção do personagem de Roberto é coerente ao cercar os cenários com antiguidades e lembranças antigas, afinal é recente a ideia de aproveitar os imprevistos da vida. Hoje, para muitos, chega a soar estranho – tanto que o resultado é cômico – tanta meticulosidade e a tentativa tão desesperada de controlar o destino.

Se voltarmos à Idade Média veremos que a sociedade não tinha alternativa à rotina do cotidiano, tendo cada classe suas atividades pré-definidas quase pela vida toda. Em período bem mais recente, há poucas décadas, ainda que houvesse maior mobilidade social e diferentes caminhos a serem seguidos pelos indivíduos, o mais comum era um casamento arranjado, quase ao mesmo tempo em que se encontrava um emprego no qual havia possibilidade de permanecer ao longo de toda a vida. A cruzada moderna não tem cunho religioso, mas é, sobretudo nas grandes cidades, contra a rotina e a falta de grandes acontecimentos no dia-a-dia. Contra esse sentimento de urgência pelo novo não faltam focos de resistência, como Roberto.

O que desconstrói a rigidez do personagem é a súbita presença do chinês Jun (Ignacio Huang), que sem falar uma palavra de espanhol entra na vida de Roberto e obriga uma considerável mudança de hábitos, sobretudo para quem é tão metódico. O convívio forçado de dois personagens tão distintos abre espaço para duas perspectivas interessantes.

Primeiro notamos a necessidade da comunicação sem palavras. Em meio à ansiedade crescente da modernidade, com telefone, televisão, rádio, internet e inúmeras outras formas de informação que nos bombardeiam, tornando tudo urgente e imediato para que o tempo de mais informações não seja perdido, acaba não sobrando atenção para tudo que fuja da palavra em qualquer uma de suas formas. De repente a fala não se torna desnecessária, mas inútil devido aos idiomas tão distintos e o único caminho é tentar algum tipo de contato através de cada detalhe que costuma passar despercebido. Gestos, olhares, expressões, silêncio e tudo o que em tese pode substituir palavras, mas que costuma nos colocar em pânico pela falta de hábito de usá-los sem poder dizer nada para auxiliar o contato, deve ser usado amplamente nas ‘conversas’ entre Roberto e Jun.

Outro detalhe curioso é a ambiguidade do comportamento de Roberto, pois sendo tão solitário e mal-humorado poderíamos esperar que ele criasse oportunidades de se afastar de Jun e se livrar do problema que surgiu de repente em sua vida, porém ele não cria tais situações e ainda as evita. Na verdade a personalidade de Roberto foi formada aos poucos até chegar ao que vemos na tela, e ainda que a solidão seja um hábito e a meticulosidade cresça exponencialmente aos que se acostumam com a vida solitária, vemos Roberto tratando as pessoas que precisam de ajuda com muito apreço, provavelmente com o apreço que muitos lhe negaram, formando o indivíduo aparentemente em guerra contra o mundo, mas que na verdade apenas tenta evitar as hostilidades da vida. A incompreensão da maioria das pessoas em relação a essa personalidade acaba apenas reforçando o estereótipo que se cria ao redor do personagem, de alguém amargo, mas que no fundo só vive a vida em uma eterna defensiva.

Um conto chinês trabalha a comédia implícita nos fatos inusitados e mostra que é possível e muito produtivo a realização de filmes divertidos, mas com boas histórias, ao invés de roteiros vazios com piadas esparsas. Aos poucos nos encantamos com Roberto não apenas pela diversão que ele nos proporciona, mas pelas suas atitudes em relação à vida – e é claro que tudo fica mais fácil com a encenação de Ricardo Darín. Se chegamos ao fim do filme esperando pela reaproximação do personagem de um antigo amor é pela consciência de que uma companhia faria bem ao seu lado rabugento, e que é um desperdício seu lado atencioso viver sozinho.


terça-feira, 6 de setembro de 2011

Além da Estrada

O longa do diretor Charly Braun (não é nome artístico!) conta com roteiro simples, mas não simplista, e encanta com a beleza das paisagens uruguaias, além da simpatia de muitos personagens que aparecem ao longo da viagem que forma o road-movie. O encontro causal do argentino Santiago (Esteban Feune de Colombi) com a belga Juliette (Jill Mulleady) proporciona uma viagem envolvente, tanto pela estrada com percalços quanto pelo que há além da estrada, metafórica para o curso da vida dos personagens.

Em meio à ficção há depoimentos de moradores locais cuja espontaneidade dificilmente poderia ser encenada, e é mérito do diretor ter inserido esses trechos de forma muito natural na trama, misturando ficção e realidade sem cortes repentinos. Outra ferramenta que contribui para dar naturalidade à história é o enredo abstrato e incerto, assim como o futuro de quem põe o pé na estrada, sem saber muito bem o que virá pela frente.

A meta de Santiago é bastante clara, pois quer conhecer um terreno deixado pelos pais, falecidos, em Rocha. Já Juliette vem da Europa para tentar encontrar um antigo amor, com a esperança de uma vida melhor. A partir daí a estrada – da viagem e da vida – pode até ser bem traçada e planejada, mas conta com inúmeros e inevitáveis cruzamentos, a partir dos quais não se sabe muito bem o que pode acontecer. O que resta é encarar os imprevistos e tirar proveito deles da melhor forma possível.

A história do filme se desenrola à medida que os dois personagens principais se deparam com a necessidade de se desviar do que haviam planejado. É evidente que no cinema vemos personagens agindo sob direção e tomando atitudes que remetem a um roteiro, porém a forma com que o diretor apresenta o filme aproxima muito a ficção e a vida real. Desta forma o que faz os desvios de percurso serem bons ou ruins depende em grande parte da forma com que são encarados e trabalhados. Assim como na vida de qualquer um, pesa nas decisões dos personagens os conselhos de pessoas mais velhas, que tem a vantagem de poder contar com a maturidade, pois se é, felizmente, inevitável sermos surpreendidos por imprevistos, a maturidade nos ajuda a ter discernimento e nos afastar um pouco das piores escolhas – sempre tão atrativas quando queremos agradar.

Como o vínculo do casal de amigos é construído desde o início do filme, com o contato entre os dois sempre aumentando, algumas cenas em que eles estão separados podem soar um pouco estranhas e soltas. O interessante é que as cenas de estranhamento condizem com a denúncia de que o local pacato, hospitaleiro e extremamente atraente aos visitantes já é alvo da especulação imobiliária, com a elevação dos preços dos terrenos e cujo desdobramento, ainda que o filme não fale, é a inevitável descaracterização local. Tão estranho quanto o afastamento do casal, quando o afeto entre os dois é substituído por atitudes muito mais egoístas, é a ideia de descaracterização do vilarejo.

Sem uma grande trama, quase fundamental em filmes mais comerciais, o que nos prende aqui é a expectativa sobre o que haverá para além da estrada de cada personagem e como cada um vai lidar com os imprevistos que os lançam um contra o outro. A expectativa estimulada pelo filme é de que os dois fiquem juntos, pois a cumplicidade e ternura entre os dois, somadas às cenas gravadas com uma super-8, dão a impressão de um relicário de bons momentos. A dúvida é se ambos aproveitarão as boas chances que o acaso lhes proporciona, e essa dúvida nos vem por ser tão comum desperdiçarmos os acasos na vida real.

Lamentar que histórias como a de Santiago e Juliette só acontecem nos cinemas é frequente. De fato não é todo dia que temos a chance de viajar por lindas paisagens no interior do Uruguai, encontrar pessoas agradáveis e desfrutar bons momentos. Porém o filme não traz nada de extremamente cinematográfico, exibindo apenas um recorte do momento em que as estradas dos dois personagens se cruzam. Assim como torcemos para que eles deem uma chance um ao outro, também podemos olhar para além da estrada que seguimos. Por vezes, os atalhos e desvios podem oferecer grandes surpresas.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

Diário de uma busca

O cinema latino está repleto de filmes que abordam as ditaduras militares que assolaram o continente na segunda metade do séc. XX. O tema é bastante compreensível, dado a forma com que estes governos assolaram os países, e muito importante para que as gerações seguintes às ditaduras tenham clareza sobre como a população era (mal)tratada, independente de indicadores econômicos. O diferencial do documentário de Flavia Castro é que a diretora não aborda uma grande personalidade ou um grande fato da história do Brasil, mas a história do militante Celso Afonso Gay de Castro, para ela o mais importante. Seu próprio pai.

Dentro desta proposta dificilmente o filme deixaria de ser intimista e a diretora explorou muito bem o recurso de contar a história da própria família. Todo narrado em primeira pessoa, o documentário ganha mesmo traços de um diário, que começa na década de 1960 e percorre os caminhos que o pai, militante de esquerda, foi obrigado a percorrer para fugir da perseguição política do regime opressor contra o qual lutava, até sua morte que, como tantas outras deste período, foi cercada de mistérios e contradições.

O resultado final mostra a trajetória de sua vida entrecortada com o final trágico e misterioso, sendo que um ponto marcante é que não se trata apenas da diretora contando a história de vida de Celso Castro, mas a construção de sua trajetória a partir de lembranças, documentos e entrevistas. Assim o filme não mostra como Flavia Castro se lembra dos fatos narrados, mas como a menina, filha de um casal de militantes, que vivia em reuniões políticas e frequentemente era obrigada a mudar de país, interpretava aquela situação bastante caótica até mesmo para um adulto.

Em meio a tanto material que nos fornece uma visão geral sobre a ditadura militar, encontramos no “Diário de uma busca” uma fonte bastante particular e pessoal, através da qual podemos fazer comparação com o todo e tirar conclusões específicas, não apenas dos efeitos gerais da repressão militar e supressão de direitos do cidadão, mas também as consequências desta situação de extrema tensão, tanto sobre quem dedicou a própria vida por uma causa, quanto para seus familiares e pessoas ao redor, como Sandra Castro e seu irmão Joca, que também participa do filme.

É de uma forma bastante imparcial que a diretora mostra a menina repreendida por chamar o pai pelo nome verdadeiro, ao invés do nome de guerra (seja lá o que isso signifique para uma criança), a ainda menina que acaba exigindo o direito de ao menos compartilhar um segredo com a melhor amiga, a jovem já bastante politizada depois de tantas reuniões partidárias, a moça que chegou a dividir suas angústias com o pai – que por um lado presenciou o fim da ditadura, mas por outro fez parte de uma geração que teve que lidar com uma grande frustração política – até chegarmos ao trabalho da cineasta, que de forma corajosa exibe, sem aparente rancor, o conteúdo de cartas e depoimentos de familiares, para tentar juntar, em uma espécie de quebra-cabeças, com o conteúdo de documentos oficiais e depoimentos de profissionais e quem sabe esclarecer um pouco a morte do pai – cabe chamar a atenção para a entrevista com o filósofo Daniel Bensaïd, pouco antes de sua morte.

É antiga a tentativa dos homens de reconstituir acontecimentos a partir de pequenos indícios encontrados em um local, sobretudo quando há um crime a ser desvendado. Se com o tempo a tecnologia interveio com ferramentas para facilitar o trabalho de peritos, fornecendo bases mais sólidas que as mágicas divagações de personagens literários como Aguste Dupin ou Sherlock Holmes, a força política interveio com a parcialidade e os interesses particulares sobrepostos aos públicos. Não são poucos os casos mal explicados ocorridos durante a ditadura militar, sendo que a insistente manutenção de documentos secretos dificulta, intencionalmente, ainda mais a investigação sobre o que realmente acontecia nos bastidores do poder naquela época.

O caso de Celso Castro é mais um em que as peças não se encaixam nem grosseiramente, pois os testemunhos são por vezes omissos, os laudos contradizem a versão oficial e os depoimentos de familiares e amigos, ainda que não tenham muito valor jurídico, não explicam porque Celso estaria envolvido no suposto assalto que culminou em sua morte. Para tornar o fato ainda mais misterioso, o apartamento no qual se desenvolveu a ação era de um ex-oficial nazista.

É impossível chegar a uma conclusão definitiva sobre um fato ocorrido há tanto tempo, porém com tantos interesses e tantos grupos políticos envolvidos, ou seja, militares, nazistas, militantes e todos interagindo em uma sociedade cujo cenário político era bastante tumultuado e transitório, não seria nenhum absurdo que a corda tenha arrebentado para o lado mais fraco.

O filme lança luz sobre a vida de um militante da época da ditadura, que individualmente pode não ser um ícone da política brasileira, mas assistir ao "Diário de uma busca" suscita algumas reflexões. Além do trabalho de Celso e tantos outros ser heroico, dado a discrepância de forças entre militares e civis, é prudente lembrarmos que os mesmos militares que (des)governaram o país ainda têm muita força política. É uma tarefa histórica e importante do cinema retratar certos períodos, de uma forma que pode se tornar didática aos que não viveram tal período.


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Os famosos e os duendes da morte

My weariness amazes me, I'm branded on my feet,
I have no one to meet
And the ancient empty street's too dead for dreaming.
(Bob Dylan)


Depois de fazer sucesso na internet com o curta “Tapa na Pantera”, o diretor Esmir Filho lançou seu primeiro longa metragem, baseado no livro homônimo, de Ismael Caneppele, que no filme interpreta o misterioso Julian.

Vemos na tela elementos contemporâneos com os personagens que se comunicam pelo MSN e colocam vídeos no Youtube. O protagonista é um jovem conhecido pelo nickname Mr. Tambourine Man (Henrique Larré), que vive em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul e parece não caber dentro dos limites da cidade, ansiando ampliar seus horizontes e ao menos viajar para ver o show de Bob Dylan, famoso autor da música utilizada pelo jovem como nickname.

A internet e as músicas dão um verniz moderno para um tema antigo. Ao menos desde o romantismo vemos jovens lidando com existências aparentemente vazias, não condizendo com a realidade da maioria que os cerca. Características marcantes no período romântico, o suicídio e a morte permeiam o filme do começo ao fim. Para abordar o controverso e refutado tema da morte, tão marcante no romantismo, o diretor optou por uma estética simbolista, com fotografias claras e planos oscilando rapidamente entre sonho e realidade o diretor exibe sequências que dizem muito com poucos diálogos, apenas com imagens que a princípio confundem, mas aos poucos esclarecem tanto a história quanto o emaranhado de sentimentos do protagonista. Há também a metáfora – restrita a o título – utilizando a emblemática figura mitológica dos duendes, que não trabalham para o Papai Noel ou na história da Branca de Neve, mas para a morte, seduzindo e atraindo para ela.

Apesar da melancolia vivida pelo protagonista ser notada há séculos na sociedade, a história do filme traz duas particularidades decorrentes da pequena cidade em que se desenvolve. Primeiro que o suicídio não é um caso pontual e isolado na cidade, mas um problema aparentemente recorrente, já que por motivos diversos alguns moradores decidem saltar de uma ponte rumo ao suposto fim redentor. Além disso, o restante da população é composto por um povo alegre e coeso pelas tradições da colonização alemã, sendo que mesmo os jovens – geralmente contestadores e inovadores – se satisfazem com a rotina quebrada pela tradicional festa junina, mantida mesmo após um suicídio, mostrando o quanto o ato é banalizado no município e o quanto as tradições são mantidas e respeitadas. Ainda que essa alegria seja aparente e oculte angústias e tristezas pessoais, é suficiente para que os indivíduos se sintam incluídos em um grupo social.

A importância de sentir-se incluso em um grupo é claramente exposta por Émile Durkheim, no livro “O suicídio”, onde indica a existência do suicídio egoísta, caracterizado muito bem pelos elementos trabalhados no filme, ou seja, um indivíduo, ou um pequeno grupo deles, não se encaixa no ambiente onde vive, sente deslocado e incompreendido. A partir disso a conclusão que cada um tira da própria existência é variável, podendo perfeitamente caminhar para o sentimento de inutilidade, ou seja, dado à falta de relações que o prendam à sociedade, provocar a própria morte não apenas acabará com o sofrimento pessoal, mas ainda trará pouco impacto entre os demais – raciocínio que de certa forma é até corroborado pela banalidade com que os moradores encaram o fato.

Evidentemente o filme toca a cada um que assiste de forma diferente, ainda que alguns refutem o tema central e tentem reduzi-lo a uma bobagem tétrica, é inevitável a identificação pessoal em ao menos algumas cenas, sendo que muitos devem encontrar grande identificação com o personagem Mr. Tambourine Man. Importante ressaltar que a angústia do jovem, que vive sua vida virtual embalada ao som de Bob Dylan, também tem aspectos positivos, tais quais os poetas românticos que, se por um lado morriam cedo em virtude do spleen que os cercava, por outro deixavam obras admiráveis, extraídas da existência por vezes classificada de vazia, porém cheia o suficiente para gerar bons frutos. A morte prematura é trágica e lamentável, mas a vida morosa, imersa numa predestinação de felicidade sem motivo não é uma opção das mais atraentes.

No filme o protagonista conhece Julian, personagem obscuro e marginalizado, em parte pelo preconceito diante do que é desconhecido, mas talvez haja entre os dois uma cumplicidade de sentimentos suficiente para instigar maior contato, não necessariamente benéfico, porém diante de opções não muito atraentes para a vida, não há escolhas fáceis de serem tomadas, tão pouco caminhos agradáveis de serem seguidos. Provavelmente essa dificuldade é o que torna o filme tão atraente para alguns e entediante para outros – aqueles acostumados a fechar os olhos e aceitar o que for mais fácil.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Solidão e Fé

Mais que um documentário sobre rodeios, o que a diretora Tatiana Lohmann nos apresenta é um olhar feminino sobre um universo predominantemente masculino. Não se trata das mega produções milionárias em que se transformaram as festas de rodeio – ainda que inevitavelmente este seja o cenário de algumas partes do filme –, mas sim da visão bastante particular de uma cineasta que até então não conhecia os bastidores de uma arena e o quanto estes bastidores ainda mantêm da tradição que deu origem aos espetáculos atuais.

A ideia de domar um animal selvagem acompanha a história da humanidade desde seus primórdios e foi esse desejo, ou mesmo necessidade, que aliado à diversão nas horas vagas daqueles que conduziam o gado em longas jornadas, deu origem à festa realizada no meio rural. Aos poucos o entretenimento passou a ser lucrativo, portanto moldado para atrair cada vez mais público – e mais dinheiro. Em meio à modernização, a profissionalização e mesmo a transformação da festa em esporte, perdura a figura do peão de boiadeiro, visto muitas vezes como guerreiro, herói ou mesmo um mito, que enfrenta sua sina em uma arena repleta de espectadores.

Neste universo situado entre a modernidade e o tradicional Tatiana Lohmann opta por narrar seu trabalho em primeira pessoa, expondo claramente suas intenções e o caminho percorrido ao longo das gravações. O resultado desta escolha é extremamente positivo, pois a diretora expõe também os preconceitos que tinha antes de iniciar o trabalho – sem dúvida presentes em muitos que olham a sinopse do filme – e desconstrói pouco a pouco as barreiras que existiam entre a cineasta e o tema retratado. Assim como ela foi seduzida pelos bastidores do rodeio e seus personagens, sua forma de apresentar o trabalho também seduz a quem assiste e desfaz muitos preconceitos.

O primeiro ponto a ser desconstruído é a imagem de maus tratos aos animais, que recentemente passou a ser a grande polêmica em torno dos rodeios. O filme deixa claro que nenhuma injúria aos animais foi presenciada e que a fiscalização sobre o tratamento dos touros é rígida. É claro que as críticas em relação ao evento são muitas e existem diversos argumentos contra sua realização, mas uma das funções de um documentário é exatamente esclarecer alguns pontos relevantes sobre o tema analisado, sendo que nesta obra em particular é coerente a argumentação de que um touro de rodeio é um animal bastante valorizado neste meio, valendo uma pequena fortuna a seu proprietário, de forma que não seria muito inteligente maltratá-lo. Além disso, como já foi mencionado, o sistema capitalista lapidou os rodeios ao seu interesse, de forma que maus tratos significariam lucros menores.

Voltando o foco do documentário sobre a figura do peão de boiadeiro, Tatiana Lohmann torna marcante sua visão feminina sobre os homens que dedicam suas vidas às montarias. O olhar delicado, complementado pela narrativa suave da voz feminina, contrasta com a imagem do homem rústico, quebrando até mesmo a rigidez de cenas repletas de adrenalina, como o peão se preparando sobre o touro antes de entrar na arena. Até mesmo no machismo histórico, enraizado na figura do peão, a diretora encontra brechas como a forte ligação de um dos peões com sua mãe e a devoção de todos à figura feminina da Virgem Maria.

Fica claro com o desenrolar do filme como o estereótipo do indivíduo que ganha a vida de rodeio em rodeio é construído socialmente e é cercado por uma aura que encanta os que se aproximam. No depoimento dos homens mais velhos notamos um machismo latente, que hoje poderia beirar o cômico, não fossem as consequências trágicas que essa forma de preconceito pode acarretar; e é nesse meio bastante fechado e rígido que os peões nascem e crescem, desenvolvendo a personalidade com base nos discursos que acompanham desde pequenos. Aos poucos esse estereótipo vem mudando e os homens mais novos já não são tão radicais em suas falas, ainda que os resquícios do machismo ainda estejam presentes. Esta mudança também remete ao espetáculo que rompeu as fronteiras da área rural e agora deve servir às grandes massas. Aquela figura retratada pelos velhos homens de rodeio já não venderia tanto.

Aos poucos a figura do peão adaptou-se, mas não perdeu o encanto sobre o rodeio. É este encanto que aos poucos deixa a diretora do filme cada vez mais compenetrada em seu trabalho, trazendo consigo quem assiste ao filme e passa a compreender um pouco mais aqueles homens solitários – tanto na vida errante quanto nos segundos de eternidade sobre o touro –, devotos e que inconscientemente resgatam a figura do herói. Apesar do filme não ter a intenção de abordar aspectos econômicos dos rodeios, é evidente a disparidade da distribuição do lucro dos eventos, já que as arenas lotadas, que ostentam dezenas de logotipos e investem alto na caracterização do espetáculo contrastam com as casas simples daqueles que arriscam suas vidas – com total consciência e desejo – para levar entretenimento ao público. Ganhar um carro ou uma moto pode ser muito para os rapazes de vida simples que chegam ao estrelato relâmpago, mas não chega a fazer grande diferença no lucro que os rodeios promovem às empresas. Parece que o que move os peões é muito mais a paixão que o dinheiro.

Uma frase muito marcante de Tatiana Lohmann estampa os cartazes do filme: “Tem aspectos num homem que uma mulher não entende, só contempla.” A recíproca é verdadeira, pois a delicadeza extraída de um universo tradicionalmente rústico tem a marca feminina que ultrapassa nosso entendimento. Melhor mesmo é contemplar.

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