quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Reflexões de um Liquidificador

O diretor André Klotzel inovou neste seu trabalho mais recente do começo ao fim, pois desde o roteiro, de José Antônio de Souza, até a forma de lançamento do filme, contamos com diversas surpresas.

Diferente do sistema tradicional de lançamento nas salas de cinema, muitas vezes cruel, cuja permanência do filme é totalmente subordinada à quantidade de público dos primeiros dias, este longa estreou por um período pré-determinado e exibe uma sessão de curta metragem além de, em alguns horários, uma apresentação de stand up comedy antes do filme.

O fio condutor do enredo é o casal de idosos, Elvira (Ana Lucia Torre) e Onofre (Germano Haiut), que depois de fechar a pequena lanchonete não puderam desfrutar dos prazeres que a aposentadoria deveria proporcionar, pois para conseguir alguma renda Onofre começou a trabalhar como vigia noturno e Elvira recuperou o antigo ofício de empalham animais. No meio de tudo isso há o velho liquidificador, que depois de uma troca de peças ganhou consciência, desenvolvida até o ponto de falar com Elvira (dublado por Selton Mello). Temos a mesma sensação das tirinhas de Calvin e Haroldo, criadas por Bill Watterson, ou seja, aceitar que uma pessoa está falando e interagindo com um ser inanimado ou tentar perceber que todas as situações podem ser explicadas racionalmente, com o objeto sem vida servindo apenas de apoio para uma mente criativa?

No desenrolar da história cenas do passado são usadas para explicar o presente, ou seja, o desaparecimento misterioso de Onofre, do qual Elvira passa a ser suspeita. Entra em cena o investigador Fuinha (Aramis Trindade, que em meio ao grande elenco consegue se destacar pela ótima atuação) e apesar do mistério não ser o foco do filme, sendo toda trama logo revelada e restando apenas esperarmos pelo desfecho da investigação, as cenas contribuem muito para o humor do filme.

Nas entrelinhas de estilos, que passam pela comédia, terror, suspense e alguns outros, ainda há espaço para questões mais profundas. O liquidificador é velho, o casal de terceira idade mora em uma casa velha, com móveis velhos, em um bairro antigo e todo o filme tem poucos elementos novos, com algumas citações que nos fazem pensar no fim de determinados ciclos, por exemplo, quando o liquidificador diz que “servimos enquanto estamos bons, somos trocados quando a máquina estraga”. Porém os objetos da casa mostram o contrário, já que a torneira pinga mas não é trocada e o relógio funciona arbitrariamente mas continua na cozinha. Uma metáfora contrária à ideia do eletrodoméstico é indicada quando o carteiro (Marcos Cesana, que faleceu poucos meses antes da estreia do filme) leva o gato morto de sua mãe para ser empalhado por Elvira, ou seja, indica o prolongamento da vida a qualquer custo, ainda que simbolicamente.

Diferente de máquinas e de animais de estimação como seria encarado o ciclo de vida dos seres humanos? Os idosos seriam tratados como uma máquina cujo funcionamento está comprometido, por isso podem ser trocados ou a tendência é que eles existam sem conteúdo tal qual um gato empalhado? Elvira mostra a terceira alternativa trazendo um elemento novo em meio a tantas referências senis e, agindo juntamente com o liquidificador, que aprende definições de sentimentos e objetos tal qual o monstro criado por Frankenstein de Mary Shelley, mostra que os sentimentos da terceira idade também existem e devem ser respeitados.

Apesar do mistério não ser o ponto alto do trabalho, como já citado, vale a pena não entrar em detalhes do enredo para guardar algumas surpresas, mesmo assim é impossível deixar de citar a ótima utilização de técnicas cinematográficas por parte de Klotzel, capaz de transformar cenas com potencial de grandes filmes de terror parecerem leves e arrancando risos soltos da platéia graças a inserção da música ideal e da construção do clima de comédia ao longo do filme.

O filme fica em cartaz no Espaço Unibanco pelo menos até o dia 6 de outubro, porém seria muito bom que além disso fosse disseminado por mais salas pelo país.


terça-feira, 10 de agosto de 2010

O nome da rosa - Der name der rose

O enredo do filme de Jean-Jacques Annaud, baseado no livro homônimo de Umberto Eco, é ideal para os que gostam de histórias de detetive, por seguir a técnica tão bem desenvolvida por nomes como Edgar Alan Poe e Sir Arthur Conan Doyle. A diferença é que aqui os crimes ocorrem em 1327 e o cenário é um mosteiro italiano.

Semelhante a Auguste Dupin de Poe ou o mais conhecido Sherlock Holmes de Conan Doyle, Sean Connery interpreta o franciscano William de Baskerville, auxiliado por Adso Von Melk, interpretado por Christian Slater. A dupla chega ao mosteiro a princípio para um conclave, mas se deparam com uma série de assassinatos, que muitos monges atribuem ao demônio. Ao longo do filme fica polarizada a rivalidade entre a razão, utilizada por William para tentar desvendar quem é o assassino, e a fé, também utilizada e manipulada pelo assassino – que não será citado aqui para não estragar a surpresa de ninguém – para que todos acreditem que as mortes em série sejam obra do demônio, lembrando que a história se passa no século XIV, quando a igreja católica utilizava a inquisição para queimar supostos feiticeiros.

Além dos detetives que guiam a trama como em vários outros filmes, tem outro ponto extremamente contemporâneo na obra que faz a ligação entre o mosteiro e a época atual, apesar dos sete séculos de diferença. A característica tão marcante no período medieval e que, evidentemente com outras formas, perdura até hoje é o controle de informação. Sempre relacionado ao poder, o saber nas mãos de poucos permite a manipulação de muitos, por isso sempre foi de interesse dos poderosos restringir o acesso a vários tipos de informação.

Evidentemente era muito mais fácil controlar a informação há sete séculos, antes da imprensa, com os livros copiados manualmente, a grande maioria da população analfabeta e crente nos castigos divinos. Porém a tentativa de manter a população pouco instruída ainda é bastante frequente através de medidas que podem ser extremamente diretas ou mais sutis, com resultado em longo prazo. Os governos podem aplicar censura aos meios de comunicação, como infelizmente presenciamos cotidianamente, ou sucatear a educação da população para que aos poucos o senso crítico de cada um seja minimizado. É triste notar que os brasileiros conhecem as duas técnicas muito bem.

Historicamente a busca pelo conhecimento sempre ofereceu resistência ao controle de informações, que muitas vezes tem até o efeito contrário de instigar a vontade de saber, como muito bem trabalhado por Michel Foucault na obra “História da sexualidade”. Com o desenvolvimento dos meios de comunicação e a internet pulverizando informações em tempo real o trabalho dos que se empenham em barrar o conhecimento é mais difícil, mas ainda assim avançam as tentativas de bloqueios de sites e controle de acessos, pouco diferente dos monges da idade média que trancavam bibliotecas e envenenavam páginas de livros para matar quem se atrevesse a tentar lê-los.

Existe a falsa desculpa de que alguns conteúdos são impróprios para determinados ambientes ou para algumas idades. Digo falsa, pois ainda que de fato sejam, a tentativa arcaica de interdição ao acesso está longe de ser a melhor opção – exatamente por instigar a vontade de saber, citada acima. Certa vez presenciei um pai queixando-se de que a filha adolescente começava a dar trabalho por querer ler livros inadequados para sua idade, que ele proibia, e ao ser orientado de que este procedimento só poderia fazer com que a garota buscasse o conteúdo por outras formas e que o ideal seria ler os livros e discutir seu conteúdo abertamente com a filha, o pai negou alegando não ter tempo para ler. Este é o comportamento típico da igreja de sete séculos atrás, ou seja, recorrer à interdição e à punição – em caso de desobediência – ao invés de reconhecer os benefícios de pessoas instruídas trabalhando em conjunto.

Uma boa pedida para os fãs de cinema, com enredo atrativo, ótimas interpretações, belas fotografias, mas que acaba nos obrigando a baixar a cabeça e assumir que, apesar do fim da inquisição, a busca pelo controle cego de informações continua bastante presente, tal qual há muitos séculos.


O filme é de 1986, eu não encontrei nenhum trailer legendado.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Mary & Max - Uma amizade diferente

Há pouco tempo atrás os desenhos animados eram quase exclusivamente voltados para as crianças e raramente algum longa de animação era lançado com destaque, conseguindo uma bilheteria modesta. Atualmente os estúdios de animação criam produções milionárias e a quantidade de filmes lançados já proporciona fragmentação do setor com produções voltadas para públicos específicos, não apenas crianças em geral.

Na contramão dos lançamentos recentes, cada vez mais sofisticados e com efeitos visuais que buscam a perfeição, o australiano Adam Elliot lança Mary e Max. O longa utiliza bonecos de massinha e a técnica de stop-motion para retratar a inusitada amizade entre o nova-iorquino Max, que com 44 anos vive em seu mundo preto e branco, e a pequena australiana Mary, que por acaso envia uma carta de seu mundo em tons pastéis com suas dúvidas infantis ao americano. A partir daí começam uma amizade que dura mais de dez anos através de cartas que, de maneira muito simples, abordam assuntos bastante complexos. É um filme com muito conteúdo, formas muito bem trabalhadas e definitivamente não é voltado apenas às crianças.

Apesar dos 36 anos de diferença os dois protagonistas têm muito em comum e com o pouco que vemos da infância de Max podemos concluir que, não fosse a amizade criada, Mary provavelmente se tornaria uma adulta solitária e um tanto rabugenta, seguindo os passos de seu amigo, cuja solidão talvez pudesse ser justificada por um distúrbio. Aos poucos ambos trocam presentes, dúvidas e conselhos (por mais inusitado que possa parecer o adulto pede conselhos à menina), sendo as correspondências tão abrangentes que é praticamente impossível não nos reconhecermos em algumas situações.

Uma das tantas lições que podem ser aprendidas com os bonecos de massinha é que quanto mais nos trancamos em nós mesmos, mais exigentes ficamos em relação aos outros e menor a tolerância diante das atitudes tomadas por outras pessoas. A solidão que acompanha Max há mais de quatro décadas o torna incapaz de expressar sentimentos de forma cotidiana, sem que uma simples carta seja acompanhada de angústia e apreensão. Da mesma forma, o homem que não consegue chorar acaba substituindo as lágrimas por crises de pânico quando seus traumas são reavivados pelas queixas da garotinha, que sofre na escola com os mesmos problemas pelos quais Max já havia passado. Apesar de a solidão incomodar, o hábito de não ter ninguém que se contraponha às suas ideias faz com que Max afaste-se cada vez mais das pessoas, criando uma bola de neve; quanto mais isolado mais intolerante, o que acaba afastando as pessoas que o deixam ainda mais solitário.

Além disso, notamos outra importante característica em comum aos dois amigos: são extremamente sonhadores, com devaneios que variam entre os mais banais aos mais utópicos. O diferencial do filme é que, ao contrário da maioria, não mostra os protagonistas realizando seus sonhos e obtendo a felicidade esperada; tão pouco mostra as frustrações por não ter os sonhos realizados. A opção do diretor foi mostrar como as realizações também podem ser extremamente frustrantes, como muitas vezes verificamos em nossas vidas. Ao criarmos uma meta idealizamos tudo de forma perfeita e nos apoiamos em nossas convicções na esperança de que ao concluirmos nossos planos tudo será perfeito. Porém na prática os sonhos, quando vêm, trazem decepções inesperadas, que muitas vezes sufocam o prazer de quem não está disposto a abrir mão da perfeição idealizada, e para piorar ainda mais, é no sonho que algumas pessoas baseiam suas vidas, portanto uma vez realizado o sonho elas deparam-se com a situação inusitada de não ter de imediato pelo que viver. A princípio pode parecer estranho e incoerente, mas para algumas pessoas pode ser assustadoramente real.

O filme, multifacetado, não mostra apenas desilusões e tristeza. Os detalhes em vermelho vivo que quebram a monotonia das cores sóbrias, a trilha sonora que embala fatos que para uma menina de oito anos são verdadeiras aventuras, algumas trapalhadas que só são possíveis em animações e muitos outros pontos mantêm o elemento de comédia presente na maioria dos filmes deste gênero. Uma ótima mistura de humor e drama. Imperdível para quem gosta e para quem não gosta de animações!


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