terça-feira, 27 de setembro de 2016

Boi Neon

O Brasil não é grande somente geograficamente. Culturalmente temos tanta diversidade que é bem difícil ter contato com os vários tipos de expressões artísticas e costumes marcantes de cada região. Uma forma de conhecer um pouco mais das culturas específicas que se espalham pelo país é através do cinema, que retrata cotidianos distintos das grandes cidades – que, infelizmente, concentram praticamente todas as salas de exibição.

Um bom exemplo disso é o longa do diretor Gabriel Mascaro, que mostra os bastidores das vaquejadas apresentadas pelo nordeste. O conflito entre cenas rústicas e afeto entre os personagens às vezes causa estranhamento, mas o sentimento é gerado mais pelo inusitado diante de um cotidiano desconhecido do que pelo filme em si.

Não se trata dos rodeios que em algumas cidades se tornaram eventos gigantes, que movimentam grandes cifras e pagam prêmios milionários. As vaquejadas são bem mais simples, rústicas e acabam expressando a vida daqueles que a tornam possível. Para que se chegue aos bois derrubados e imobilizados pelos cavaleiros existe muito trabalho pesado, mal remunerado e desconsiderado.

É interessante vermos a indignação – legítima – de algumas pessoas com o tratamento dispensado aos animais no filme. Existe uma louvável onda crescente de preocupação com os maus tratos, porém o que fica muito chamativo é a aproximação do estilo de vida das pessoas, frequentemente animalizadas.

Os personagens são transportados junto com os animais, dormem em espaços improvisados que mais parecem um curral, tomam banho ao ar livre improvisando uma cortina sob o caminhão. A forma com que tratam os bois não é pior do que a forma como são tratados pelos fazendeiros.

Qual o limite da diferença de tratamento entre humanos e animais é bastante discutível. Há até quem veja o filme e não encontre nada de errado com nenhum dos tratamentos. Porém uma demanda é primariamente distinta: a cultura. Ainda que a própria vaquejada possa se encarada como uma forma de expressão cultural, é latente a necessidade de cultura por parte dos personagens, seja de forma consciente – buscando atividades lúdicas que fujam do convencional – ou inconsciente, para que ascendam para uma vida mais digna.

A expressão artística é mostrada de forma curiosa no filme. Galega (Maeve Jinkings), a caminhoneira que leva o gado para os locais das vaquejadas, é também uma dançarina que ao som de músicas bregas e vestindo uma bizarra cabeça de cavalo se apresenta aos peões em um palco improvisado.

A vestimenta de Galega fica por conta de Iremar (Juliano Cazarré), o vaqueiro que quebra o estereótipo de atitudes masculinas desenhando roupas femininas e sonhando em trabalhar com costura. Assim como a dança de sua amiga, as roupas de Iremar não primam pela qualidade estética e deixam claro que a falta de referências artísticas é um fator bastante limitante para o trabalho alternativo dos dois.

Essa crítica, que pode parecer elitista, é pertinente a partir do momento que as expressões artísticas dos personagens não criam uma identidade própria, mas tentam imitar sem sucesso o que é considerado de bom gosto.

Grandes formas de arte nasceram marginalizadas antes de chegar ao reconhecimento, porém traziam elementos novos e contestadores, que são praticamente vetados aos personagens que, sem acesso à cultura, acabam já fazendo um grande trabalho ao romper com estereótipos de gênero.

Fica clara a perpetuação desta forma rústica e animalizada da vida com a personagem infantil Geise (Samya de Lavor). Filha de Galega e abandonada pelo pai, não há meritocracia que livre a menina de seguir os passos daqueles que a cercam. Adultos que foram tratados como bichos a vida inteira não veem outra forma de tratar a criança, senão de forma rude. Pode parecer evidente para quem vê de longe, mas para os personagens nem sempre é perceptível que às vezes a menina só precisa de um abraço.

A forma com que olhamos para os comportamentos sociais não é estática. A própria indignação com os maus tratos aos animais é relativamente recente. Trazer esse incômodo para as telas de forma direta e crua, aproximando a vida dos animais com a das pessoas, pode abrir caminho para uma conscientização de que comportamentos são aprendidos e relegar seres humanos a uma vida rude e desnecessariamente difícil só pode resultar em atitudes reprováveis, que não irão mudar com um passe de mágica.


terça-feira, 13 de setembro de 2016

De longe te observo (Desde allá)

O diretor venezuelano Lorenzo Vigas Castes consegue abordar em seu longa diversos tipos de violência, desde as mais evidentes até as nuances que, de tão naturalizadas, podem passar despercebidas, ainda que causem desconforto do começo ao fim do filme.

Sendo Caracas uma típica grande metrópole sul-americana, reúne a desigualdade social necessária para que a primeira e mais clara ideia de violência apareça. Isso fica ainda mais evidente ao observarmos que Armando (Alfredo Castro) é o protagonista representante da classe média, proprietário de um laboratório de próteses, com uma renda que proporciona uma vida materialmente confortável.

Em pouco tempo notamos que a figura aparentemente alvo da violência de uma metrópole desigual é amparada por uma estrutura de outras violências, ocultas ou por serem banalizadas e aceitas como normais ou por acontecerem longe dos espaços públicos que garantiriam notoriedade.

A sexualidade costuma ser encarada pela sociedade de forma bastante ambígua, para não dizer hipócrita. O olhar de censura de pessoas mais conservadoras torna alvo de preconceito condutas que são encaradas por muitos como imorais, partindo do princípio que entre quatro paredes haveria um comportamento padrão e correto, fora do qual as pessoas deveriam ser marginalizadas, ainda que suas práticas não interfiram em nada no convívio com a sociedade.

Neste ponto a figura de Armando é contraditória e emblemática. Visitando a periferia da cidade ele oferece generosas quantias de dinheiro para que jovens rapazes tirem a roupa em seu apartamento e ele se masturbe. Se por um lado a sexualidade de Armando é reprimida e ao mesmo tempo sua atração por homens é censurada, por outro lado a exploração de jovens, ainda que já tenham completado dezoito anos, com uma supremacia econômica é um abuso a ser combatido.

Foi em busca de jovens para satisfazer suas fantasias que Armando chegou até Elder (Luis Silva). No outro extremo da pirâmide social, o rapaz é o estereótipo de um perfil cuja existência já caracteriza uma violência contra sua classe. Com a família desestruturada, trabalhando desde cedo e praticando pequenos furtos para complementar a renda, Elder é normalmente visto como agente ativo da violência urbana. Raramente ele ou a classe que representa é vista como uma vítima da violência estrutural, necessária para manter privilégios econômicos de uma pequena parcela da população.

Elder se vê dividido entre a tentação pelo dinheiro fácil e a pressão da censura, mais pela homossexualidade que pela moral, ainda que não houvesse na proposta de Armando a necessidade de contato físico. Aparentemente a situação econômica degradante não permite a seleção das fontes de renda, porém a homofobia parece mais forte que as necessidades materiais.

A partir de então o que parece é que Armando não vê no jovem apenas mais uma fantasia a ser consumida, mas alguém em quem valeria a pena insistir para que se torne uma pessoa melhor, desde que tenha acesso a condições que deveriam ser básicas para qualquer pessoa, mas que na prática são restritas aos que têm poder econômico.

Uma exploração só tem espaço onde uma das partes possui em excesso o que a outra parte carece. Isso não acontece necessariamente através de dinheiro ou bens materiais. Na relação retratada Elder possui como única moeda de troca seu próprio corpo, que é objeto de desejo de Armando. Este em contrapartida não tem somente o dinheiro, mas também uma série de outros confortos materiais, capital cultural, experiência de vida e o que Elder parece ter sido privado por toda sua vida: afeto.

Ao olharmos para uma relação entre pessoas de idades muito diferentes uma série de abusos podem ser listados, um deles é a manipulação psicológica que ocorre em qualquer relação, ainda que involuntariamente. O agravante nesse caso é a discrepância de experiências de vida. Armando não é apenas mais velho que Elder, mas também tem muito mais cultura e uma vida diversificada, comparada à do jovem que no máximo deixa a periferia onde mora.

O diretor joga muito bem com as atitudes dos personagens mostrando sempre a ambiguidade de situações que fogem do simples certo ou errado. Estamos habituados com filmes estruturados na ideia de mocinhos e bandidos muito bem definidos, mas quando se falar em violência urbana de forma coerente com problemas sociais reais, tudo fica muito mais misturado.

A repressão sexual é um tipo de violência, assim como a privação de direitos sociais básicos. Se a prevenção a essas violências não foi possível, a correção deve ser feita de forma responsável e adequada. Um erro nunca se corrige com outro.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

O Vulcão Ixcanul (Ixcanul)

Esse é um daqueles filmes que ultrapassam completamente o limite o entretenimento. Não é divertido, talvez nem prazeroso, mas leva às telas uma realidade comum em locais remotos da América Latina. O cotidiano da protagonista Maria (María Mercedes Croy), assim como dos moradores vizinhos, é a síntese de dificuldades e preconceitos que não se restringem à Guatemala, tudo muito bem apresentado pelo diretor Jayro Bustamante.

Se por um lado os valores do mundo globalizado chegaram ao local, com tudo o que vem de fora visto como exemplo a ser seguido e referência de boa qualidade, por outro toda a base de vida dos moradores está nas tradições locais. Isso gera um choque de costumes que acaba oferecendo a parte ruim de cada lado.

A economia local é baseada no cultivo do café e milho, que mobiliza toda a força de trabalho para o plantio e colheita de um produto que será totalmente exportado, em contrapartida o que vem de fora para os moradores são produtos de má qualidade, visto como melhores simplesmente por virem dos Estados Unidos.

Com a má remuneração e vida difícil todos buscam formas de uma ascensão social, ou ao menos algo que traga algum tipo de conforto. Uma das formas é a antiga, e machista, tradição do casamento arranjado. É assim que a família de Maria pensa em conseguir uma vida melhor. O desconforto da moça tímida e insegura diante de uma situação inevitável, contra a qual nada pode fazer, é constrangedor.

Subjugado ao poder econômico, o machismo não garante aos homens locais a prosperidade, apenas oferece possibilidades que são negadas às mulheres. Essa também é uma característica de todas as formas de exploração, ou seja, na ausência de uma educação emancipatória os indivíduos explorados não lutam pela ascensão em comum, mas na prosperidade individual, que supostamente faria com que passassem à categoria de exploradores.

É assim que Pepe (Marvin Coroy) planeja emigrar aos Estados Unidos, sonhando em desfrutar das casas grandes, carros, fartura e todas as facilidades que o capitalismo proporciona para uma fatia pequena da população. Na construção onírica que os moradores fazem dos Estados Unidos não existe o preconceito contra imigrantes latinos, sendo que o vilarejo tem o agravante (para quem visa a migração) de falar somente o dialeto Kaqchikel.

Tendo muito mais identificação com Pepe do que com o marido que os pais escolheram, Maria faz de tudo para que ele a leve para os Estados Unidos, sem se dar conta de que as maravilhas norte-americanas são vedadas a eles, tão pouco que o machismo faz com que Pepe tenha muito mais liberdade de ao menos arriscar uma vida nova e partir em uma aventura – ainda que as restrições norte-americanas sejam as mesmas – do que Maria, que tem sua função social muito mais restrita e submissa.

Aos que ficam resta a exploração contínua em vários níveis; as mulheres pelos homens, estes pelos seus superiores, que serão explorados pelo dono da fazenda. Com um cotidiano tão duro é bastante natural que os moradores idealizem um local melhor e sonhem em viver nessa suposta perfeição. Na verdade, a parte do preconceito já mencionado, não haveria condições de um único país abrigar todo mundo e para um país atingir níveis de dominação global tão elevados, é indispensável que boa parte da população siga como o povoado retratado.

A única forma de produzir tanta riqueza é através da relação comercial que fica implícita ao longo do filme, ou seja, produtos primários são cultivados por quem recebe uma miséria pelo trabalho pesado que realiza e o valor agregado ao longo das transações comerciais serve para manter as relações econômicas.

O misticismo religioso, que acaba sendo uma das poucas opções que os moradores veem para se apegar, também prejudica o desenvolvimento na medida em que casa muito bem com o conformismo da situação de vida, atribuindo as dificuldades às forças sobrenaturais, como a do próprio vulcão que dá nome ao filme.

Um intermédio entre a cultura local e as comodidades que poderiam vir do exterior deveria ser pensado no sentido de oferecer aos moradores o que há de melhor em cada um dos lados, trazendo conforto com produtos externos e aproveitando a riqueza cultural da população, ao invés da velha tática de oferecer quinquilharias em troca do trabalho pesado que enriquece as grandes potências.


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