terça-feira, 27 de novembro de 2012

Os Matadores


Esse é o primeiro longa-metragem do diretor Beto Brant. Também a primeira parceria com o escritor Marçal Aquino, que acabou virando um prenúncio das boas obras de adaptação que viriam posteriormente.

Neste caso o conto homônimo do escritor é mais conciso e direto. Um bom exemplo de como o cinema pode complementar uma obra, ressaltando aspectos distintos e desenvolvendo temas cuja linguagem não é tão eficiente na literatura, superando a desnecessária comparação entre livro e filme, sobre qual seria supostamente melhor.

Os elementos do enredo são aqueles tão frequentes e bem descritos na obra de Aquino, com acertos de contas, matadores de aluguel, conflitos em regiões remotas, prostituição e nuances de um submundo real, porém oculto e geralmente distante da mídia.

Com o cerne da história desenvolvido na região de fronteira entre Brasil e Paraguai, vemos uma realidade bastante característica, com elementos que até podem estar presentes em cidades, mas com a clivagem entre urbano e rural preservada. O coronelismo, a naturalidade com que conflitos são resolvidos com assassinatos e a hierarquia de poder estabelecida – entre outros detalhes – podem ser percebidos nas cidades, como bem indicam alguns outros contos de Aquino.

Porém é notável como Toninho (Murilo Benício), que vem do Rio, destoa tanto do local quanto das pessoas, enquanto a velha dupla de matadores formada por Alfredão (Wolney de Assis) e Múcio (Chico Diaz, em ótima interpretação como paraguaio) estão em consonância, ainda que não escapem de percalços.

Esta divisão do Brasil entre o leste, litorâneo e mais urbanizado, em contraposição ao oeste, fronteiriço e predominantemente rural, ganhou força e legitimidade alguns anos depois do filme, com o referendo de 2005, sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, cujo resultado revelou apoio bem maior às armas em regiões de fronteiras, além de outros fatores culturais.

Evidentemente que a resolução de problemas através da eliminação do inimigo tem raízes antigas. Fomos colonizados por grandes senhores de terra, onipotentes, com poder econômico e social suficiente para pagar pelo assassinato de quem estivesse no caminho, saindo não somente impunes, mas também fortalecidos pelo medo que espalhavam nas proximidades.

Esta herança está presente em nosso território apresentando-se de forma mais fiel à origem em áreas rurais e distantes, conforme vemos no filme, mas prática semelhante também é notada em centros urbanos. As execuções ligadas ao tráfico de drogas ou a grupos de extermínio, muitas vezes formados por policiais, agem cotidianamente e quando o acerto velado entre policiais e traficantes é abalado as chacinas passam a ser fato cotidiano.

É curiosa a incoerência formada pela cultura de massa frente ao comportamento violento relacionado ao acerto de contas. As ondas de violência geradas por essa cultura da vingança são, felizmente, repudiadas pela população – talvez mais por temer pela segurança pessoal do que pela barbárie em si –, porém a resolução do problema através de assassinato de criminosos nem sempre é mal vista.

Caindo no engodo da dicotomia entre bem e mal, parte da população apoia que criminosos sejam mortos sem julgamento, por policiais que agem de forma arbitrária e onipotente, como os antigos coronéis. Há nesse apoio a omissão dos crimes praticados pelas autoridades, pois assim como vem sendo praticado por poderosos há séculos, o assassinato que se esconde sob a falsa atribuição de justiça acaba fornecendo poder ilegítimo ao assassino – seja ele matador de aluguel, policial, traficante ou qualquer outro.

Ao abrir concessão para certas ilegalidades a sociedade cai em um desdobramento de estado sem lei, conforme podemos notar no filme, onde os próprios códigos de conduta são criados e quem tem mais armas, ou mais dinheiro para contratar matadores, corrobora o próprio poder e permanece acima da lei – postura que pode ser apoiada por parte da sociedade, até que algum erro grosseiro (além da ilegalidade em si) seja cometido.

A viabilidade de um filme como Os Matadores assusta pela realidade com que as cenas são apresentadas, de forma crua e direta. Seria ótimo que se tratasse de um filme de ficção, no máximo um retrato de passado longínquo, entretanto a trama é um registro atual, de uma sociedade que reluta em abandonar costumes arcaicos.


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Elefante Branco (Elefante Blanco)


A qualidade do cinema argentino poucas vezes é questionada. Cada vez mais os filmes de nossos vizinhos vêm se tornando referência pela qualidade, desde o roteiro até a conclusão da obra. O equívoco está no fato de muitos restringirem a diferença em relação ao cinema brasileiro à temática, alegando que supostamente nossos filmes só abordam a pobreza, utilizando as favelas como cenário, portanto já teriam cansado o público.

O tema geral característico de cada país está diretamente relacionado com a sociedade do mesmo, que não determina, mas influencia muito no trabalho de cineastas, escritores e qualquer outro tipo de artista do país. Este longa do diretor Pablo Trapero rompe com o paradigma da temática ao apresentar a Villa Virgen, uma favela na periferia de Buenos Aires, deixando claro que o que faz um filme ser bom ou ruim não é o seu tema, mas a forma como este é abordado e trabalhado.

Ao redor de um prédio que começou a ser construído em 1937 com o intuito de ser um grande hospital, e virou um “elefante branco” por seguir inacabado depois de falácias de governos populistas e ditadura militar, cresceu uma favela onde os moradores convivem com sérios problemas, desde o abastecimento de água até a violência do tráfico.

A descrição do local é comum a várias favelas brasileiras, porém chama a atenção com certa particularidade a semelhança com a favela do Moinho, no centro de São Paulo, que cresceu ao redor de um grande prédio abandonado (antigo moinho) e, em área nobre da cidade, misteriosamente foi devastada por dois incêndios em menos de um ano.

Nestas comunidades é frequente o trabalho de missionários, que tentam suprir a falta de investimento do estado organizando e prestando serviços aos moradores. No filme o principal líder deste trabalho é o padre Julián (Ricardo Darín), que para o trabalho hercúleo de tentar urbanizar os barracos com a mão de obra dos próprios moradores conta com a assistente social Luciana (Martina Gusman), além de tentar transferir aos poucos sua liderança para o padre Nicolás (Jérémie Renier).

Se em um texto anterior deste blog, sobre “O gato do rabino”, foi abordado o problema da imposição da fé religiosa para aqueles que não querem seguir tais doutrinas, vemos aqui uma situação quase oposta. O trabalho na favela não precisaria ser feito por alguém vinculado à religião, mas Julián utiliza o prestígio e respeito que sua condição de padre lhe dá para tentar mediar conflitos, que são inúmeros.

Ainda assim as ações positivas se dão muito mais no plano individual, pois Julián e o francês Nicolás estão dispostos a se sacrificarem para auxiliar aqueles que precisam, porém a igreja como instituição, simbolizada pelos superiores, se esforça para restringir o trabalho ao assistencialismo vazio, que de forma rasa rende boa fama para a igreja, mas limita os benefícios à comunidade local.

Os problemas de uma favela, assim como sua própria existência, são múltiplos. Um somatório de falta de investimento, segregações sociais e diversos fatores históricos que culminam em algo como Villa Virgen. Da mesma forma, a solução não é pontual nem será dada somente pela igreja, apesar disso o peso político dessa instituição, se pode ser utilizado para influenciar nas ações do estado, poderia também ser utilizado mais enfaticamente na tentativa de reduzir desigualdades sociais.

Se a igreja tem poder para barrar projetos contrários às suas doutrinas, poderia ao menos tentar evidenciar a falta de políticas públicas para serviços básicos como o abastecimento de água, pois se os moradores devem trabalhar duro pelo próprio saneamento, como venderão suas forças de trabalho, já esgotadas? Talvez possa parecer mais econômico ao estado negar o básico à determinada parcela da população, porém a quebra de direitos implica na possibilidade de contestação de deveres, por parte daqueles que têm seus direitos negados, dentre eles o dever de se submeter ao monopólio legítimo da violência.

Sem dúvida certos problemas, como os viciados em crack, são extremamente complexos. Quando mesmo aqueles que têm determinação em deixar a droga e condições para buscar tratamento nas melhores clínicas apresentam taxas de retorno à droga de mais de 80%, fica difícil acreditar que uma criança abandonada tenha chances de recuperação. Todavia a ideia ignorante, mas indicada no filme provavelmente por ser comum, de assassinar aqueles envolvidos com a droga não chega nem perto de solucionar o problema, afinal, não precisa ser especialista no assunto para prever que novos traficantes e usuários surgirão, caso não haja medidas preventivas.

Elefante Branco apresenta, de forma perturbadora e com muita qualidade, questões cotidianas para milhões de pessoas que vivem naquelas condições sociais e econômicas, que provavelmente não terão acesso ao filme. Entre os que poderão conferir a obra, vale a pena utilizar o potencial do cinema para conhecer realidades sem precisa vivê-las de perto. Neste caso é bastante útil para tentar desfazer certos preconceitos.


terça-feira, 6 de novembro de 2012

Um dia sem mexicanos (A day without a Mexican)


O longa do diretor Sergio Arau não chega a ser um bom filme. Uma pena, pois explora mal um tema rico ao ponto de fazer valer a pena a comédia sem graça, que fornece alguns dados interessantes sobre o tecido social da California, mas que pode ser expandido para diversas outras situações.

Certo dia os imigrantes latinos, cerca de um terço da população do estado, desaparece sem deixar vestígios. Uma neblina densa também isola o estado, sem sinais de telecomunicação ou meios físicos para cruzar as fronteiras. Começa então a aparecer algumas opiniões daqueles que sempre olharam os latinos de cima para baixo, expostas como uma tentativa de humor.

Vemos logo que reduzir os imigrantes, de origens diversas, a mexicanos indica a prática comum de se referir à determinada região, no caso toda a América Latina, como uma massa amorfa de iguais, sem particularidades que valham a pena ser consideradas.

A hipocrisia de se valer de determinada cultura quando é conveniente e rebaixar a mesma conforme haja mudanças no ponto de vista não para na generalização dos imigrantes. A famosa acusação infundada de um californiano de que imigrantes roubam os “nossos” empregos é desconstruída pelo óbvio, latinos nos Estados Unidos, assim como qualquer explorado no território de seu explorador, assume serviços pesados e desagradáveis. Subempregos, com subsalários, para suburbanos.

Apesar de serem mal remunerados pela venda de sua força de trabalho, o total de imigrantes tem peso grande na economia, afinal, mesmo ganhando pouco também consomem, compram e investem o dinheiro na economia local. Em contrapartida recebem pouco retorno financeiro e social.

Relegados às áreas menos nobres da cidade, com pouco investimento por parte do governo ao qual pagam impostos, aqueles que são alvos de preconceitos geram um equilíbrio extremamente favorável àqueles que naturalizam a exploração e ainda culpam os explorados por toda e qualquer dificuldade cotidiana.

O discurso patético dos que se valem de uma posição social para manter a estrutura de poder se torna ainda mais risível quando tenta lançar um olhar sobre a realidade do outro. É mais fácil para o mais pobre ter noção de como é a vida do rico, seja pelo contato devido aos serviços prestados, seja pela televisão, o que acaba naturalizando o preconceito e este acaba descaracterizado, visto no máximo como dívida histórica, quando na verdade é atual, com raízes antigas.

A naturalização do preconceito contra quem vem de fora casa muito bem com a predisposição de não assumir os próprios erros. Conforme nos indica Fernando Pessoa, "Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo." Assim, se uso o acostamento por este ser a única via desobstruída onde posso correr com meu carro, a culpa é de quem vem de fora e entope as ruas com carros; se meu filho se envolve em alguma confusão, a culpa é dá má companhia dos que vêm de fora; se tenho que pagar propina para me livrar de alguma punição mais séria, é porque fui forçado a driblar uma suposta injustiça social, que desta vez não é a meu favor.

Seguindo esta lógica maluca, um roteiro se repete sempre após as eleições. Alguns são a favor do derramamento de sangue contra a violência, outros apoiam a presença maciça da igreja na política, mas uma opinião é quase unânime: Se meu candidato não ganha, a culpa é de quem vem de fora.

Estamos em uma democracia onde, ao menos em tese, o pluripartidarismo representa a sociedade multifacetada e as eleições serviriam para que essas múltiplas faces fossem representadas no poder. Problemas estruturais a parte, é cômodo acusar de ignorância aquele que ao menos deveria tentar votar em quem lhe garanta os direitos à sua classe, ao invés de corroborar os direitos dos exploradores supracitados.

Sem dúvida há uma série de fatores que influenciam em tomadas de decisões por parte de políticos eleitos, não por acaso esses fatores refletem e muito a estrutura estabelecida entre exploradores e explorados. Apesar disso, aquele que se encontra em situação semelhante a dos latinos retratados no filme e vota em alguém que pretende lutar por melhores condições para aqueles que contribuem muito e recebem pouco, não é ignorante nem interesseiro. Não mais do que quem já é favorecido pelo modelo atual e vota pela manutenção do status quo


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