quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ninguém escreve ao Coronel (El coronel no tiene quien le escriba)

Gabriel García Marquez escreveu a novela “Ninguém escreve ao coronel” em Paris, durante seu exílio, mas as referências da história deixam claro que seus personagens estão na terra de Marquez, até mesmo fazendo menção à fictícia Macondo, na qual posteriormente o autor desenvolve a história do romance “Cem anos de solidão”. Ainda que a obra seja um dos primeiros passos no desenvolvimento de Macondo e da família de Aureliano Buendía – também citado –, acabou se tornando um bom complemento com elementos que indicam o que aconteceu fora da cidade enquanto o coronel Buendía lutava na revolução.

Apesar na narrativa do livro ser bastante linear, favorecendo bastante a transposição fiel ao cinema, o diretor Arturo Ripstein apresentou algumas alterações que tiveram resultado bastante positivo no filme. O longa foi rodado no México, mas mantém as características de floresta equatorial, com chuvas intensas, clima quente e, socialmente, o vilarejo pobre e afastado da cidade. Há também a inclusão de fatos e personagens destacando certos sentimentos dos personagens, que vai à contramão das adaptações, pois geralmente na transposição trechos são suprimidos.

A princípio nos parece estranho ver um coronel nas situações expostas, afinal foge da realidade brasileira um militar aposentado, que aqui recebe altíssimos salários após degradar o país por duas décadas, passando por sérias dificuldades devido à pensão prometida pelo governo, que nunca chega. A realidade do casal é condizente com a maioria dos idosos de países pobres, racionando os alimentos escassos, tendo que se contentar com as roupas velhas, com a casa degradada pelo tempo e sempre torcendo para que nenhuma doença apareça com a demanda de remédios que sacrifiquem ainda mais a vida sofrida. O único elemento realmente destoante em relação ao que estamos acostumados no Brasil é o fato do idoso em questão ser militar, que aqui vivem em condições verdadeiramente opostas às descritas anteriormente.

Aos poucos entramos no cotidiano do Coronel (Fernando Luján), tão opressor e degradado em todos os sentidos. A cidade pobre e isolada sofre também com o clima quente e úmido; na pequena casa velha, que o militar divide com sua esposa Lola (Marisa Paredes), sobram poucos objetos após a venda dos mesmos para conseguir algum dinheiro; além das dificuldades físicas da idade, os idosos ainda precisam enfrentar os percalços psicológicos tanto da humilhação por não terem como se sustentar – situação agravada pela hipoteca da casa, que não é descrita no livro – quanto da dor de ter perdido o filho.

Mesmo sem um personagem presente, é através do filho Augustin que boa parte do enredo se desenvolve, pois aos poucos vemos que o clima de censura política vigora até mesmo na cidade que beira a um simples povoado, onde os amigos de Augustin dão continuidade à tentativa do jovem de driblar o controle e divulgar informações de forma clandestina. Além disso, o autor expõe a importância das brigas de galo na cidade, das quais o jovem participava tendo deixado como principal lembrança aos seus pais um galo de briga, supostamente o melhor da cidade, alvo de apostas que poderiam livrar o casal de idosos das dificuldades financeiras. Neste ponto Arturo Ripstein complementa o texto original incluindo a personagem Julia (Salma Hayek), a prostituta com a qual Augustin se relacionava e talvez tenha sido fundamental no assassinato do mesmo. Há mais de uma interpretação para a tragédia envolvendo os elementos políticos e passionais.

Através da moça o autor mostrou a agonia do coronel por não deixar herdeiros, superando até o tradicional moralismo para chorar diante da prostituta e afirmar que gostaria que o filho tivesse lhe deixado um neto. A presença da moça no enredo humaniza a trama e ajuda na composição do sentimento pela imagem, já que a obra original conta com a descrição detalhada com palavras, ou seja, com um recurso bem diferente do cinema.

Mesmo sendo um dos primeiros trabalhos literários de Marquez, que serviu de experiência para o desenvolvimento do trabalho que lhe rendeu o Nobel de 1982, “Ninguém escreve ao coronel” já mostra o grande talento do escritor, apresentado não apenas através da literatura, mas do ativismo político e vários outros trabalhos pela América Latina.


Não encontrei o trailer, mas dá para ver o filme todo no Youtube (áudio em espanhol, legenda em inglês)

terça-feira, 12 de abril de 2011

Amor?

"O mais importante não é o amor. O mais importante é a gentileza."
(Dostoiévski)


Em seu novo trabalho o diretor João Jardim trabalha com um sentimento extremamente complexo, multifacetado e marcante na vida de qualquer um. A interrogação do título já sugere, antes mesmo de vermos o filme, a dúvida: seja lá o que for abordado, é realmente amor?

A montagem do longa é pouco convencional, pois não foi elaborado um roteiro. Após realizar várias entrevistas com pessoas que falaram abertamente sobre seus relacionamentos conflituosos o conteúdo foi encenado por atores bastante conhecidos. Isso ajudou a manter os entrevistados no anonimato, estimulando o detalhamento das histórias sem receios em relação às consequências, e também torna o filme mais impessoal, pois um desconhecido daria a impressão de um caso isolado, já a forma que é apresentada, com atores, aumenta a identificação das pessoas com o conteúdo do filme.

É claro que histórias tão complexas e ricas em detalhes são muito particulares, mas é impossível assistir ao filme sem encontrar alguns pontos em comum com nossas próprias vidas em meio às histórias apresentadas. Esse mosaico de sentimentos que montamos a cada entrevista exibida mostra como as desavenças, que aparecem quando nos relacionamos com alguém, costumam ser muito comuns e ainda que o sentimento seja particular, suas expressões têm uma base possível de ser encontrada entre pessoas muito distintas entre si.

O que o filme deixa bem evidente é a forma que todos os entrevistados encontraram para lidar com os atritos, sempre através da violência física e psicológica. Assim, qualquer um que já tenha vivido os sentimentos descritos pelos personagens pode se identificar, mas hesita em procurar mais pontos em comum em virtude da violência, entretanto podemos concluir que as agressões descritas mostram apenas um caminho – bastante criticável – para solucionar conflitos bastante comuns como ciúme, insegurança, etc.

Algumas vezes é tentador responder à pergunta do título do filme apenas com um “não”. Negar que aqueles relacionamentos cercados de ameaças e agressões possam ser classificados como amor. Porém os seres humanos são bem mais complexos do que uma simples definição e, por mais estranho que possa parecer aos que estão distantes das situações descritas no filme, uma agressão pode até mesmo ser interpretada como forma de atenção, pois se uma pessoa está agredindo é porque, supostamente, se importa com a agredida.

Talvez para contornar o absurdo da agressão e não admitir que um relacionamento seja inviável nessas condições, um sentimento recorrente nas entrevistas é o de culpa. Ninguém assume toda a responsabilidade pela violência, pois é mais confortável justificar tal ato através das provocações sofridas. Da mesma forma nenhuma pessoa agredida deixa de assumir uma parcela de culpa por apanhar. O fato é que independente da provocação ou do conflito existente, nada justifica o abandono do diálogo, da razão, em prol da barbárie de uma agressão.

Em meio a tantos estereótipos que são criados em torno de um relacionamento geralmente nos vemos na imposição de uma vida a dois, pouco importando a qualidade dessa união ou até mesmo a anulação mútua que ela gera, pois é frequente nas entrevistas apresentadas no longa o relato de casos em que o casal praticamente interrompe a vida, que passa a ser voltada exclusivamente para um relacionamento quase doentio.

Existe uma infinidade de motivos pelos quais as pessoas podem se sujeitar a uma relação na qual toleram a violência, mas não é por acaso que agressores e agredidos lançam um olhar de arrependimento sobre o tema. Apesar de ser uma coletânea de entrevistas, o diretor João Jardim tem o mérito de escolher histórias muito bem articuladas, que muitas vezes dialogam entre si, além de dirigir muito bem os atores para que os depoimentos ganhem tom de naturalidade, ao invés de um texto ensaiado. O diretor mostra, de forma cada vez mais eficiente, as particularidades por trás dos estereótipos e busca no fundo de cada um o suficiente para estimular quem assiste a pensar de uma forma diferente sobre o tema abordado, sempre com muita arte.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Olhos Azuis

Com este filme o diretor José Joffily aborda um aspecto da imigração nos EUA. Não trata de ilegais que tentam cruzar o deserto e começar vida nova, mas de pessoas que tentam entrar legalmente, para trabalhos temporários, estudo ou turismo, porém devem passar por um verdadeiro pente fino, sob critérios bastante questionáveis.

No filme Marshall (David Rasche) é um oficial da imigração no aeroporto e está em seu último dia de trabalho antes da aposentadoria. A data especial mereceu uma comemoração regada a doses de uísque ao longo do dia, mas apesar disso o oficial prezava em seus discursos pela ordem e pelo cumprimento da lei. Já Nonato (Irandhir Santos) é o brasileiro que mora legalmente nos EUA e após um breve retorno ao Brasil, para visitar a filha, tem que enfrentar os amplos questionários aplicados aleatoriamente aos imigrantes oriundos de países subdesenvolvidos.

O foco do filme é mesmo os critérios – ou a falta deles – aplicados a quem desembarca, ainda que legalmente, nos Estados Unidos, mas o desenrolar do enredo abre espaço para uma análise sobre as relações de poder, baseadas no preconceito de quem o detém. Em uma escala global podemos ver um policial norte americano, que no alto de sua arrogância considera-se melhor que os imigrantes simplesmente por ter nascido em um país rico, desconsiderando também as origens desta riqueza. Reduzindo a escala e invertendo a polaridade do norte rico e sul pobre, vemos cotidianamente (e de forma muito mais intensa logo após as últimas eleições para a presidência) a mesma postura lamentavelmente preconceituosa dentro do Brasil, do sul e sudeste em relação ao norte e nordeste. Seria possível citar várias outras magnitudes em que o mesmo conteúdo preconceituoso se revela.

O próprio título da obra pode causar desconforto. Olhos azuis. Os olhos azuis de Marshall, que por vezes lacrimejam tanto pelo remorso que o assola em uma das partes do filme, quanto pela dor física provocada por um tumor, diante do qual não há ricos ou pobres. É evidente que a cor dos olhos em nada influencia no caráter de um indivíduo, assim como a cor de sua pele ou qualquer característica física, mas a metáfora que associa os olhos azuis à qualquer situação tradicionalmente é aplicada para coisas boas. Quando os olhos azuis são associados ao preconceito de Marshall contra latinos não nos incomodamos tanto, afinal temos a tendência de tomar partido do brasileiro, porém quando o ex-presidente Lula associa a culpa de uma crise econômica à gente loira e de olhos azuis, não faltam críticas acompanhadas de argumentos muitas vezes risíveis. Seria até plausível se os que bradaram contra Lula focassem a falsa associação de um estereótipo com uma atitude, mas a metáfora foi claramente associada aos países ricos e a indignação se deu por dois motivos, primeiramente porque seu conteúdo era irrefutável, pois a crise foi mesmo iniciada por gente rica que precisou mendigar ajuda milionária do governo. Depois porque o alvo da crítica foi uma classe social que há séculos utiliza outra metáfora pejorativa: “isso é coisa de preto”.

É curioso como quando as classes mais altas são contra atacadas, defendem-se com discursos baseados na liberdade de expressão, igualdade, diversidade de ideias, etc. Tudo muito bonito, por serem pontos verdadeiramente indispensáveis em uma sociedade, não fosse o fato de que na prática esses valores são encontrados unilateralmente, de forma que as classes economicamente superiores reivindicam o direito a atacar e expor claramente seu poder aos demais, porém estes não podem sequer ousar o contrário.

Recentemente encontramos um Marshall brasileiro, o deputado Jair Bolsonaro, que depois de declarações racistas e homofóbicas despertou a ira de muitos, mas também conquistou grandes fãs. Nas diferentes esferas em que a relação poder x preconceito se apresenta, muitos podem, até mesmo sem perceber, reproduzir o discurso imperialista, que após reprimir determinadas classes sociais durante muito tempo ainda colocam nos oprimidos a culpa de suas mazelas.

Não é difícil criticar Marshall diante das acusações absurdas, principalmente quando são dirigidas a um brasileiro, mas o mais importante é perceber que o mesmo discurso apresentado no filme pode ser reproduzido de várias formas e em várias esferas de poder.


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