terça-feira, 24 de março de 2015

Boa Sorte

O uso de substâncias que alteram nosso estado de consciência acompanha toda a história da humanidade. Dos mais leves chás aos mais potentes alucinógenos, o homem cria diversas situações para justificar tal consumo, como rituais religiosos, purificação, comemorações, etc., até chegar ao puro uso recreativo.

Com o advento da modernidade o uso de algumas substâncias se tornou um grande problema. Muitas delas têm efeito em curto prazo, como a ressaca, que faz com que a força de trabalho do dia seguinte seja comprometida após uma noite de poucos limites. Outras mostram resultados em longo prazo, deteriorando pouco a pouco a capacidade produtiva – física ou intelectual – e também comprometendo a produtividade.

Neste longa a diretora Carolina Jabor adapta o conto "Frontal com Fanta", de Jorge Furtado, para através dos protagonistas João (João Pedro Zappa) e Judite (Deborah Secco) inserir o consumo de substâncias ilícitas em um contexto social, abrangendo as incoerências do discurso antidrogas e possíveis consequências do consumo de determinadas substâncias.

João é internado em uma clínica psiquiátrica. O diagnóstico foi dado mais pelos pais do que pelos médicos. Judite é a moça por quem ele se apaixona, o problema é que aos 30 anos ela é portadora do HIV e seu corpo, já bem debilitado pelo abuso de substâncias tóxicas, não tolera os remédios. Não tem mais para onde correr.

Desses dois estereótipos, o de Judite é o que passa a mensagem mais simples e clara. Não se trata de levar uma vida presa à moral e aos costumes tradicionais, mas de saber dosar os excessos para que possamos desfrutar do que quisermos por mais tempo. O grande destaque do filme é conseguir passar essa mensagem se um moralismo exagerado.

Há momentos em que podemos identificar certo arrependimento da personagem, sobretudo quando ela se sente inibida de planejar um futuro incerto e provavelmente curto, mas a maior notoriedade está na postura crítica de Judite diante de sua própria condição e das escolhas que fez ao longo da vida.

João já forma um estereótipo mais complexo, sobretudo por todos que o cercam. Se por um lado crescem os distúrbios psicológicos, tanto em quantidade quando em diversidade, por outro há uma crescente capitalização desses distúrbios. A quantidade de dinheiro que se movimenta com o comércio de remédios para o tratamento de problemas psicológicos é imensa, mesmo com a eficácia extremamente duvidosa. As clínicas particulares, como a que João e Judite estão internados, são igualmente lucrativas e os psiquiatras envolvidos trabalham, amparados por essa estrutura lucrativa, com uma família desesperada de um lado e um paciente já encarado como louco de outro.

Através de algumas atitudes metafóricas somos instigados a pensar na diferença com que encaramos as pequenas loucuras diárias. João diz poder ficar invisível, bastando para isso misturar um medicamento com refrigerante, assim ninguém pode vê-lo. Na verdade os exemplos disso apenas escancaram certos absurdos cotidianos; mostram o quanto podemos ficar entretidos com bobagens ou acostumados com absurdos a ponto de não enxergarmos o que está ao redor, a menos que algo muito inusitado aconteça.

Anestesiados em nosso cotidiano insano, mas já naturalizado, passamos a agir com intolerância diante do que consideramos anormal. É frequente vermos um comportamento distinto do que esperamos sendo taxado de loucura, doença, anormalidade e uma série de outros adjetivos que apenas mascaram nossa frustração por um comportamento que não se adequa às regras.

Tudo bem que o filme mostra o contraponto de João através de Judite, que na ausência de limites parece ter chegado ao fim da linha bem antes do que gostaria, mas é com ela que o rapaz se identifica e é o sentimento que surge entre os dois que toma o espaço de sua ansiedade, antes preenchida por remédios.

Um passeio rápido pelo centro de uma grande cidade nos dá inúmeros motivos para sentir angústia, a divisão que o filme nos mostra se dá pela tolerância em relação a como as pessoas lidam com tamanho desconforto. Parece que acostumar-se é tolerado, ignorar os problemas ou se tornar insensível até mesmo diante de pessoas próximas também é considerado normal.

O ‘problema’ parecem ser aqueles que não conseguem se adequar aos absurdos. Portanto qualquer tentativa de reação, qualquer tentativa de fuga com substâncias ilegais que alteram a consciência são logo taxadas de loucura e demandam tratamento, rendendo lucro, rendendo uma falsa sensação de dever cumprido por parte dos responsáveis pela internação.

Uma passagem breve, porém sempre marcante, é a de Fernanda Montenegro como avó de Judite, que com a maior naturalidade enrola um baseado e fuma como se fosse um cigarro comum. Não teve tanta repercussão quanto o rápido beijo em Nathália Timberg na novela, mas atitudes controversas encenadas por uma atriz tão consagrada sempre ajudam a desconstruir preconceitos. É um passo pequeno, mas representativo.


terça-feira, 17 de março de 2015

Para sempre Alice (Still Alice)

Meus ontens estão desaparecendo e meus amanhãs são incertos. Então, para que eu vivo? Vivo para cada dia. Vivo o presente.

O mal de Alzheimer nos remete logo à perda de memória. De fato esse é o sintoma imediato, que chega ao extremo de fazer com que as pessoas próximas daqueles que têm a doença precisarem tirar os espelhos da casa, pois em níveis avançados os pacientes “esquecem” que envelheceram. Dá para imaginar a sensação de interromper essa leitura agora, ir até o banheiro, olhar no espelho e dar de cara com um reflexo décadas mais velho do que se espera?

Adaptado do romance homônimo de Lisa Genova, os diretores Richard Glatzer e Wash Westmoreland mostram nas telas não somente a angústia inicial da protagonista Alice (Julianne Moore), mas como a vida de todos que estão próximos é severamente afetada com o desenvolvimento da doença.

O Alzheimer é terrível para qualquer pessoa, independente de idade ou histórico de vida, mas aqui tudo fica mais impactante, pois a protagonista é uma renomada professora de Harvard, com um intelecto até então invejável, e tem uma rara instalação precoce da doença. Alice tem apenas cinquenta anos e está no auge de sua carreira; nos primeiros meses tem consciência do definhamento de seu potencial.

Sua família é composta pelo marido, também professor de Harvard, e três filhos. Todos com carreira promissora e compromissos inadiáveis, ao menos até a descoberta da doença. Olhando de fora é fácil e tentador dizermos que não deve haver limites para a dedicação de todos à Alice, afinal é uma pessoa da família, extremamente importante para seus entes, que por isso não devem medir esforços para fazer o que tiver ao alcance.

O que não podemos esquecer é que não se trata de uma internação temporária, com previsão de alta. Alice, aquela profissional competente, mãe dedicada e esposa que soma suas qualidades às do marido formando um casal exemplar não irá receber alta, pior, irá receber notícias cada vez mais desanimadoras sobre seu estado de saúde. Consciente de seu estado e refutando a hipótese de se tornar um peso para a família, a protagonista tenta encontrar uma solução enquanto sua racionalidade ainda permite.

Uma reflexão que o filme acaba instigando se dá em relação ao limite do que somos. Aquela pessoa será “para sempre Alice”, ou em uma tradução mais precisa do título original, continua sendo Alice, ao menos fisicamente. Por isso mesmo notamos uma tentativa dos familiares de conciliar os cuidados que despendem a ela e suas necessidades pessoais.

Não se trata de esquecer a esposa ou a mãe, mas de equilibrar as necessidades às quais a própria protagonista, logo após o diagnóstico, tinha a preocupação de não se tornar um empecilho. Talvez a consequência mais dolorosa do Alzheimer seja relegada aos familiares, que estão condenados a assistir a uma morte cognitiva antes da morte física. Qual seria a data desse óbito precoce? Quando Alice não reconhece a própria filha? Ou quando acredita que a irmã – morta há mais de trinta anos – está em casa?

Ao menos para um leigo, como eu, a impressão é a de que o diagnóstico de Alzheimer é uma condenação inapelável. No caso de Alice é ainda pior, já que a rara forma de instalação precoce de seu caso é genético e dominante. Seus filhos têm 50% de chance de também desenvolver a doença. À mãe, desesperada, só resta chorar e se desculpar por uma culpa que não existe.

Um portador de Alzheimer sabe que sua consciência está se esvaindo, sobretudo uma professora universitária com acesso a muitos estudos sobre o tema. Planejar parece um ato quase irresponsável, já que não se sabe se a doença irá se desenvolver rápido. Viver intensamente os últimos momentos de consciência parece ser o que resta, ainda que não restem lembranças posteriores.

Há alguns anos, quando começaram a falar em clonagem de seres humanos, os cientistas se apressaram em deixar claro que a clonagem consistiria em uma cópia genética, o que não quer dizer que resultaria em dois seres humanos iguais, já que somos formados por lembranças de vivências e aprendizagens inseridas em um contexto social e histórico.

Sendo assim, apagando essas lembranças, o que sobra? Ao que parece, uma cópia do que já fomos. Geneticamente igual, mas vazia de conteúdo e cada vez mais incapaz de interagir com o que está ao redor. Angustiante – a quem as faculdades mentais ainda permitem sentir angústia.


terça-feira, 10 de março de 2015

Relatos Selvagens (Relatos Salvajes)

Através de seis histórias o diretor Damián Szifron consegue pegar ações cotidianas e desenvolver tramas com reações que costumam transitar entre nossas intenções mais bem reprimidas. Nossa sociedade, muitas vezes hostil, parece nos provocar pouco a pouco, até o dia que não estamos mais dispostos a aguentar provocações e explodimos.

O que fica sempre bem claro no filme é que nossas ações – ou reações – estão distantes de serem isentas de culpa. Não há certo e errado em Relatos Selvagens, mas em geral uma sucessão de pequenas corrupções e atos inescrupulosos, que quando abrimos mão da civilidade e ignoramos as consequências de nossos atos, tornam-se embates selvagens.

As provocações sofridas pelos protagonistas variam, mas com a exceção de uma ou outra mais grave, o restante poderia ser resolvido em uma mesa de bar, ou mesmo esquecido, sem grandes prejuízos e com muitas vantagens aos envolvidos. O paradoxo é que a mesma civilização a qual evocamos na hora de ponderar o comportamento dos personagens é aquela que, com pequenas corrupções somadas, irritam ao ponto de nos fazer perder o bom senso.

Alguns conflitos do filme são entre pessoas. Provocações, traições, corrupções, etc. Uma série de comportamentos colocados de forma a escancarar a incoerência das reações, baseadas na parcialidade de que quando alguém faz é absurdo, mas quando a própria pessoa faz existe alguma justificativa ou desculpa esfarrapada.

Duas das histórias desenvolvem basicamente um embate entre cidadão e estado, evidenciando o stress causado pela burocracia e as brechas que surgem para que os personagens envolvidos possam levar alguma vantagem.

Não é fácil ter que lidar com injustiças cotidianas e institucionais. Frequentemente somos tentados a pensar que não apenas o mundo é injusto, como também nunca é injusto a nosso favor. Na verdade nossas pequenas corrupções passam despercebidas aos nossos próprios olhos.

Quando estamos presos em um congestionamento e um ‘espertinho’ (para não baixar o nível do blog) passa correndo pelo acostamento, ficamos torcendo para que um guarda de trânsito esteja de plantão à frente. Evidentemente que se formos flagrados parados em local proibido vamos declamar a sequência de justificativas que todos temos decoradas – é só um minutinho, já vou sair, não tinha vaga, etc.

No caso do filme não há sequência de justificativas, mas confrontos diretos e inconsequentes, que o diretor tem o mérito de conseguir exibir com humor, por maiores que sejam as tragédias. Em comum vemos personagens que não buscam justiça, mas uma vingança que consideram justa, dadas as circunstâncias.

Após pensar um pouco no retrospecto das histórias, tentando encontrar alguma sequência lógica para os episódios, acredito que é possível encontrar uma racionalização crescente das reações. Não que os personagens se tornem centrados e reflexivos, os relatos são selvagens do começo ao fim, mas mesmo sem nenhum spoiler dá para dizer que os conflitos passam de ações surreais para reações mais plausíveis, que podem ser criticadas em maior ou menor nível, dependendo das loucuras que cada um já tenha cometido na vida real.

Em uma sociedade que, sobretudo em grandes metrópoles, tem se mostrado pouco acolhedora, é compreensível que muitas vezes nosso limite seja extrapolado e consideremos que precisamos fazer qualquer coisa em troca do que consideramos justo. Entre comédia e violência, Szifron nos lembra em todas as histórias que nossas ações não estão nem isentas de culpa nem livres de consequências.

Diante das conclusões tragicômicas das histórias narradas, a conclusão que fica bem evidente é que por mais difícil que seja tomar uma atitude racional, por vezes isso pode nos livrar de muitos transtornos adicionais. Indo um pouco além, não custa lembrar que uma decisão racional não exclui a justiça ou vingança que os personagens do filme buscam.

Abrindo mão da impulsividade selvagem podemos ser politicamente corretos e chegar à justiça de fato, combatendo também nossas próprias corrupções, ou ainda manter a linha dos personagens do filme e obter uma vingança pessoal, sem ter que sofrer consequências tão severas por isso.

Quando o filme acaba – e esse é um daqueles que nos deixa um lamento por não ter mais histórias – resta a reflexão sobre nossa própria conduta cotidiana. As instituições burocráticas irritam, algumas atitudes irritam, mas fazemos parte deste tecido social. O que está ao nosso alcance é cuidar de nossas próprias atitudes, que sozinhas não são quase nada, porém esse ‘quase’ pode fazer toda a diferença.


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