terça-feira, 28 de abril de 2015

Ação entre amigos

A ditadura militar que assolou o Brasil durante vinte e um anos ainda mantém feridas abertas em nossa sociedade. Feridas que muito provavelmente não serão cicatrizadas devido a uma série de fatores.

Os criminosos que torturaram e assassinaram desde jovens militantes até crianças recém-nascidas se esconderam covardemente atrás da lei da anistia e não somente permaneceram impunes, como muitos ainda recebem aposentadorias de valor totalmente incompatível com a maioria dos aposentados do país.

Uma das consequências da impunidade por parte da justiça é a possível necessidade por parte das vítimas de fazer justiça com as próprias mãos, como uma forma de resolver as pendências engavetadas pelo judiciário. É a partir deste ponto que se desenvolve o filme do diretor Beto Brant.

O protagonista Miguel (Zecarlos Machado) acredita ter visto uma foto recente do algoz, Correia (Leonardo Villar), que oficialmente teria morrido há anos, e mobiliza os antigos companheiros de guerrilha para uma busca e a tão sonhada justiça.

São quatro ex-guerrilheiros que divergem quanto ao que devem fazer diante de uma pista bastante remota. Essa divergência é natural. Fazendo uma divisão bem simplista da sociedade que viveu a ditadura, separando em militares, combatentes e cidadãos que não se engajaram politicamente encontraremos hoje uma série de análises sobre o período, desde aqueles que reconhecem o terror do regime militar mas consideram que o melhor é esquecer e seguir a vida, até os que juram ter sido um período de prosperidade econômica, em que apenas terroristas foram reprimidos.

Tentar analisar determinado grupo, como os amigos do filme, sob uma falsa uniformidade, excluindo as particularidades pessoais, é um erro que leva a injustiças. Apesar dos guerrilheiros lutarem para derrubar um regime ilegítimo e politicamente fraco – a ponto de suprimir a oposição e fechar o congresso – cada um tinha suas motivações e valores pessoais, que segue influenciando nas atitudes a serem tomadas.

Hoje é muito cômodo opinarmos sobre erros e acertos daqueles que deram a vida pela redemocratização do país. Sentado diante de um computador há quem se sinta no direito de criticar aqueles que, sob tortura física e psicológica, entregaram planos que comprometeram a oposição. Difícil é saber como essas pessoas reagiriam depois de passar horas penduradas no pau-de-arara, levar choques nos órgãos genitais ou ver familiares ameaçados de morte.

Depois de passar por tudo isso durante meses as reações são as mais diversas, como indica o filme. Miguel está disposto a levar sua vingança até as últimas consequências, sem medir esforços para caçar aquele que o torturou e assassinou sua namorada. Se por um lado a justiça deve ficar restrita ao Estado e ser aplicada de forma imparcial, por outro a omissão das instituições diante de crimes tão cruéis leva suas vítimas à indignação dupla, tanto pelos males sofridos quanto pela impunidade daquele que goza de liberdade e bem estar depois dos crimes cometidos.

Apesar da indignação de Miguel ser compartilhada com os amigos, a sede de vingança encontra divergências. Nem todos estão dispostos a fazer justiça com as próprias mãos e essa recusa também pode ter vários motivos, dos mais egoístas aos mais altruístas, como o filme bem indica.

Diante de tantos absurdos que permearam o período de ditadura militar, de sua tomada ilegítima do poder até seu fim subordinado a uma anistia que acobertou assassinos torturadores, a impunidade daqueles que permaneceram por tanto tempo no poder sem sequer serem investigados pelos crimes que cometeram resulta em vários outros problemas.

Um deles é a tentativa de fazer justiça à margem da lei, que é uma atitude sempre condenável, por mais que a omissão jurídica seja revoltante. Não se trata de acobertar os crimes cometidos pelos ditadores e seus cúmplices, tão pouco perdoar o imperdoável. O que está em jogo são os riscos de executar uma sentença rasa, sem a apuração de fatos e consequentemente parcial.

Outro problema é a distorção histórica que se desenvolve, em parte devido à impunidade. Ainda hoje há quem veja os criminosos militares como heróis e cobrem a volta desse regime ao poder, em vez de exigir a punição pelos crimes cometidos ao longo das duas décadas em que permaneceram arbitrariamente no comando do país.

O fato de vivermos um período conturbado na política nacional exige uma reação da população, que deve cobrar seus direitos e os deveres mais básicos dos governantes – de todos os governantes. O que não tem justificativa é o clamor pela volta da ditadura como se este período tivesse trazido algo de bom para o país. Conforme foi difundido em reação às cobranças da volta dos militares ao poder, é fácil pedir uma ditatura em uma democracia, o difícil é pedir democracia em uma ditadura.


terça-feira, 14 de abril de 2015

A educação proibida (La educación prohibida)

Poucos temas são tão universais quanto a educação. Atualmente é quase impensável que crianças que não frequentem uma instituição escolar, pois ao menos em tese a educação é um direito de todos. Nesse documentário os diretores argentinos German Doin e Verónica Guzzo coletam materiais em oito países latino americanos para fazer uma crítica ao modelo de educação tradicional, tão antigo e tão anacrônico, apesar de generalizado.

Apesar do filme não ter material gravado no Brasil, nosso país não difere quase nada das situações homogêneas apresentadas e, sobretudo quando o governo lança o lema “pátria educadora” o assunto abordado no filme ganha ainda mais notoriedade.

Ninguém nega que a educação em nosso país precisa melhorar. Porém quando as necessidades avançam, as divergências começam a aparecer. Como fazer com que a educação melhore? O que significa uma educação de qualidade? Essas e outras perguntas atormentam governos e educadores pelo mundo e diante da dúvida sobre qual o caminho a ser tomado, seguimos com um modelo educacional que não evolui.

Os métodos pedagógicos melhoraram. Se pensarmos que o uso de palmatória era absolutamente normal e ainda existiam outros tipos de castigos físicos, o avanço foi enorme. Porém muitos ainda se baseiam em características passadas como referência de uma boa educação.

O modelo considerado ideal por muita gente é o de uma sala com crianças enfileiradas, em um silêncio sepulcral, ouvindo e anotando o que os professores têm a dizer. A utopia dessa ideia não se restringe ao fato de que antigamente isso era conseguido com base no medo de castigos físicos. Cada vez mais a ideia de uma educação totalmente passiva é ultrapassada por métodos muito mais eficientes.

Vemos no documentário a importância de cativar as crianças desde cedo para que elas não olhem para a escola como uma obrigação, mas como um lugar que será útil de alguma forma e simplesmente não há como fazer isso excluindo as brincadeiras que são inerentes ao universo infantil.

Ainda que não se de conta disso, ao brincar uma criança coloca em prática muito do que aprende – ou deveria aprender – em sala de aula, mas de uma forma muito mais atraente, consequentemente muito mais produtiva, do que sentada em uma cadeira desconfortável, sendo coibida de todas as formas possíveis.

No Brasil, durante as campanhas eleitorais, uma promessa muito frequente há várias eleições é o ensino em tempo integral. Com isso os educadores concordam, porém de nada adianta simplesmente estender o atual modelo para um período maior. Causaria apenas mais repulsa nas crianças que já não veem sentido no que os professores falam.

O ensino em tempo integral deveria diversificar as atividades e oferecer ferramentas para que os estudantes possam por em prática aquilo que mais gostam. É inútil colocar dezenas de estudantes em uma sala, desprezar as individualidades, aplicar o mesmo conteúdo e esperar que todos aprendam da mesma forma. Esse é o modelo vigente há muito tempo, portanto pode até dar resultados, mas para cada exemplo de sucesso há um exército de potenciais desperdiçados pela escola.

Por aqui as escolas particulares são vistas como modelo, sobretudo quando comparadas às piores escolas públicas, das quais alunos concluem o ensino médio muitas vezes sem saber ler e escrever. De fato é de se pensar o que esses estudantes fazem ao longo de toda a vida escolar se todo esse tempo não foi suficiente para aprender o mais básico. Por outro lado as escolas particulares não são isentas de críticas.

Uma visão utópica do filme mostra a importância das crianças receberem amor dos educadores e da própria família. As escolas particulares do Brasil tem um único foco: preparar o aluno para a vida profissional. Com currículo voltado para a aprovação no vestibular e um ambiente competitivo que instigue os estudantes a pertencer ao mercado de trabalho, as escolas não se preocupam em formar cidadãos, mas somente profissionais que terão sucesso – econômico – no mercado de trabalho, estimulando desde muito cedo a competição em detrimento da cooperação.

Parece que por mais que a sociedade mude e a pedagogia se desenvolva, a educação continua tendo como base valores como o medo, a competição, a obrigatoriedade. Não chega a ser uma grande surpresa termos uma sociedade violenta e assustada.

Curioso que apesar do Brasil não ter tido participação nas gravações, marcamos presença através de citações de Paulo Freire, um dos educadores mais respeitados do mundo, frequentemente hostilizado em seu próprio país, por pessoas que insistem em encarar teorias que visam maior equidade como inimigas a serem combatidas.

Precisamos definitivamente melhorar nossa educação. A partir disso será mais fácil melhorarmos as escolas.



terça-feira, 7 de abril de 2015

A boa mentira (The good lie)

Em contraste com sua diversidade étnica e cultural, a história do continente africano segue um padrão bastante triste de colonização, baseado sempre na extração de recursos, exploração de nativos e guerras que até hoje fazem com que milhares de refugiados migrem periodicamente na tentativa de fugir da morte.

Um exemplo claro desta situação é o Sudão. Com fronteiras traçadas por colonizadores europeus, desconsiderando completamente os conflitos étnicos locais, o país mergulhou em uma guerra que culminou na divisão do território. De forma bem resumida, na teoria o resultado foi a criação do Sudão do Sul, na prática este filme do diretor Philippe Falardeau mostra as nuances dos impactos do conflito nos povos locais.

Através de um grupo de irmãos, cujos pais foram mortos e agora devem caminhar mais de mil quilômetros até um campo de refugiados, conhecemos brevemente um estilo de vida que nos parece uma fábula, sendo na verdade uma realidade cotidiana, não somente para tribos africanas, mas também indígenas e povos que vivem – muito bem – distante do que costumamos chamar de civilização.

A ausência de escrita que dá valor à transmissão de conhecimento através de histórias, a habilidade de encontrar água onde parece existir somente areia, a capacidade de espantar predadores para conseguir sua caça. Uma infinidade de conhecimentos que, por não precisarmos, julgamos menores.

Somente após um corte temporal de muitos anos os irmãos que conseguiram sobreviver conseguem visto para os Estados Unidos. A segunda parte do filme mostra o estranhamento diante de uma cultura completamente nova, com valores morais muitas vezes opostos àqueles cultivados desde a infância e contato com pessoas presas às regras, até o momento em que o legalismo passa a ser pessoalmente desfavorável.

Em algumas situações a presença dos sudaneses nos Estados Unidos pode parecer um incômodo aos moradores, afinal toda a rotina diária precisa ser alterada e não basta simplesmente alocar os irmãos em uma casa. Se pessoas que vivem em grandes cidades, de qualquer país, passam por situações constrangedoras ao visitar o exterior, o que dizer de pessoas que nunca tiveram contato com a tecnologia mais básica e caem de paraquedas em um mundo completamente diferente?

Comparando a nova realidade com os valores dos africanos o filme mostra com muita competência algumas incoerências que merecem nossa reflexão. Toda a gratidão e dedicação dos imigrantes soam até engraçadas em uma sociedade já anestesiada pela necessidade de adequação aos padrões. A curiosidade e espanto quase infantis dos irmãos, que passam a vender suas forças de trabalho, a princípio nos divertem, porém deveriam nos envergonhar por passarmos a considerar normal o que eles questionam.

Um mercado jogar no lixo a comida que ainda serve para o consumo, apesar de não servir para o comércio; uma fábrica produzir peças em série tratando seus funcionários como máquinas; pessoas que seguem ordens e toleram absurdos dos patrões por precisarem manter os empregos. Tudo isso, tão natural, tão cotidiano, não faz parte das tribos ditas não civilizadas.

Para deixar a situação toda ainda pior podemos enfatizar que quase toda a dificuldade dos sudaneses – para manter o foco do filme, já que o raciocínio se estende para o restante da África negra – tem origem na colonização extrativista promovida por países de primeiro mundo, que se desenvolveram e construíram seu bem-estar social com base na riqueza retirada do continente africano.

Entre todas as funções que o cinema pode exercer, o diretor Philippe Falardeau conseguiu reunir várias em uma única obra. Seu filme entretém, informa, em alguns pontos chega a divertir, mas pensando no resultado final o que realmente marca é a emoção, a indignação e também o sentimento de culpa inevitável que é jogado sobre todos nós.

Independente de nunca termos pensado na guerra que dividiu o território do Sudão, nunca termos parado para refletir sobre os campos de refugiados ou sobre a situação dos imigrantes em países estrangeiros, quando nos orgulhamos de um mundo economicamente globalizado não temos como fugir do ônus da concentração de riquezas.

Lavar as mãos diante de um problema que objetivamente se estabelece entre colônias africanas e metrópoles de primeiro mundo nos garante um falso comodismo, omitindo o eixo de exploração da mão-de-obra africana, que de forma escrava construiu nosso país por quase quatro séculos.

Não dá para negar que as vítimas do desenvolvimento econômico global são os africanos, o que podemos ver no filme é que seria hipocrisia nos colocarmos com vítimas, mas perdemos muito negligenciando o conhecimento que os povos africanos têm a oferecer.

Nota: triste digitar o nome do filme no Google e ver que a maioria esmagadora das imagens que aparecem relacionadas são da atriz Reese Witherspoon, bonita, americana e coadjuvante, que ganha mais destaque que os protagonistas.


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