terça-feira, 26 de junho de 2012

Febre do Rato


O diretor Claudio Assis trouxe a expressão popular “febre do rato” para o título de seu filme, traduzindo muito bem o protagonista Zizo (Irandhir Santos). Está com febre do rato aquele que está fora de controle, assim como o personagem, poeta do subúrbio de Recife, que com muita arte e cultura constitui um foco de resistência contra a desigualdade social e a condição de vida difícil à qual boa parte da população brasileira é relegada.

A periferia retratada no filme tem elementos da dificuldade cotidiana, porém o foco principal está em algo além dos problemas, em algo que move aqueles que não deixam de viver por conta de uma situação socioeconômica repleta de empecilhos. E em um ambiente que em geral é falsamente estereotipado com base na simplicidade extrema, Zizo ganha destaque pela sofisticação de seus versos, usados principalmente para o amor e para a contestação política de sua condição de vida.

A arte nem sempre é simples, nem óbvia, nem trivial. Mas há em sua essência uma motivação questionadora, que faz florescer naqueles que admiram suas formas multifacetadas a dúvida diante do que já está estabelecido. Assim são os poemas de Zizo para seus amigos. Em um meio carente de cultura vemos personagens como Pazinho (Matheus Nachtergaele) com dificuldade para compreender as palavras difíceis do poeta – o que rende cenas divertidas –, mas também é notável o valor que se dá ao elemento lúdico, que é fundamental para aliviar as tensões da vida. Os próprios filmes de Claudio Assis são exemplos claros disso. Assim como seus antecessores – Amarelo Manga e Baixio das Bestas – o atual trabalho não tem nada de óbvio, instigando a reflexão de quem assiste, como é característico do chamado cinema de autor.

Para tocar na que talvez seja a maior e mais incurável ferida do país, ou seja, a desigualdade social gritante, o longa trabalha pontos pouco atraentes para filmes de massa, explorando a nudez e a falta de pudor, que sem dúvida é chocante, mas somente para aqueles que veem a desigualdade social, que deveria gerar a real perplexidade, de forma impassível.

O uso dos corpos para a exploração de sua fonte de prazer, sem falsa moral ou pudor, já era conhecido na Grécia antiga, e sofre censura relativamente recente na sociedade, sobretudo depois da reforma protestante. Esse embate entre prazer e censura é bem simbolizado por Eneida (Nanda Costa), tentada pelos enigmáticos versos incompreendidos de Zizo ela resiste às suas seduções, porém não por moralismo, mas talvez esta seja sua forma de brincar com o cotidiano, quebrando com o esperado, de forma semelhante ao poeta, mas sem sua habilidade para a escrita.

Este é um ponto em que o cinema de arte é frequentemente atacado. Felizmente a crítica se desfaz por sua própria falta de conteúdo, pois enquanto filmes belíssimos como ‘Febre do Rato’ são produzidos, suas críticas negativas caem no engodo de classificá-los negativamente pelo excesso de nudez e a exibição das classes baixas, enquanto convenientemente fazem vista grossa à essência do roteiro, que é o embate entre classes sociais, tema indicado como esgotado por quem é beneficiado pelo abismo econômico da sociedade, mas triste e assustadoramente presente no dia-a-dia.

A síntese do sujeito com a febre do rato vem de uma espécie de dialética entre arte e realidade. A sociedade brasileira, que há quase meio século viu a intervenção militar castrando ideologias políticas, coibindo artistas e reprimindo a vida daqueles que querem de fato vivê-la, parece ter vergonhosamente se acostumado com a repressão militar, que hoje fica a cargo da polícia, mantenedora do histórico hostil e metodologia avessa ao diálogo.

Quantos Zizos há na periferia de Recife, São Paulo, Manaus, ou qualquer cidade brasileira, produzindo sua arte e contestando sua própria condição social, é difícil saber. Mas sem dúvida eles são tolerados enquanto mantém suas formas de expressão restrita aos guetos da pobreza. A partir do momento que tentam quebrar a ordem para conseguir, de fato, o progresso, o conservadorismo daqueles que estão no topo da pirâmide social não se contenta mais em apenas criticar a falta de pudor ou moral. É necessário usar isso como argumento para suprimir a voz que exige seus direitos.

Em tempos em que a violência policial é vista como necessária para suprimir a voz daqueles que já são suprimidos de tantas outras formas, Febre do Rato deixa implícito a alternativa de uma vida vivida em sua plenitude, repleta da arte que a ilustra e instiga, sem amarras, sem bloqueios, sem alienação e com o prazer ilimitado que ela pode conter.


terça-feira, 19 de junho de 2012

Hasta la Vista - venha como você é (Come as you are)


Através do longa de Geoffrey Enthoven somos levados em uma viagem muito especial, da Bélgica à Espanha, na companhia de três jovens. Em essência uma história bastante comum, ou seja, amigos que acabaram de sair da adolescência e usam como pretexto aos pais conhecer vinícolas espanholas, para na verdade visitar um bordel em Punta Del Mar.

A particularidade é que a ideia partiu de Philip (Robrecht Vanden Thoren, em atuação brilhante) que é tetraplégico, portanto precisa de ajuda para praticamente tudo o que faz. Uma das inspirações para a viagem é seu amigo Lars (Gilles De Schrijver), paraplégico devido a uma grave doença que pode tirar sua vida a qualquer momento, de forma que Philip quer garantir um pouco de diversão. Fechando o trio temos Jozef (Tom Audenaert, garantindo as cenas mais engraçadas) que é cego e gosta da ideia de conhecer ‘El Cielo’, um prostíbulo adaptado para portadores de necessidade especiais. É com o objetivo real de perder a virgindade que os amigos driblam resistências e dificuldades rumo à Espanha.

Entre as inúmeras formas possíveis para trabalhar este argumento, vemos uma opção interessante do filme, mostrando que uma viagem assim é possível e bastante viável, já que é passível de problemas como para qualquer viajante disposto a por os pés na estrada. O roteiro poderia ter sido todo escrito em tom de denúncia, mostrando o quanto as cidades são despreparadas para as necessidades dos portadores de determinada deficiência, porém no filme essa denúncia permeia as situações vividas pelos três amigos de forma bastante cômica, fazendo com que a crítica seja exposta de forma positiva, mostrando que a viagem da qual muitos duvidavam é possível.

Para ajudar na viagem eles são auxiliados por Claude (Isabelle De Hertogh), enfermeira que, com uma van adaptada, transporta os amigos e cuida da estadia. Alguns problemas pessoais da enfermeira – revelados durante o filme – e seu estereótipo alvo de brincadeiras de Philip e Lars fazem com que ela, mesmo distante da realidade dos amigos, fique talvez mais próxima de um sentimento de distanciamento da sociedade. Em pouco tempo os quatro viajantes já demonstram união e a profissional contratada para acompanhar parece mais uma amiga, sobretudo após apresentar aos amigos seu ‘hotel 1000 estrelas’.

Hasta La Vista evidencia que várias características daqueles que portam necessidades especiais não devem ser vistas com um olhar de compaixão ou algo do tipo. A deficiência física não os faz menos humanos, logo não deixam de ter os mesmos sentimentos, virtudes e falhas que qualquer pessoa. Não é necessário mais do que um pouco de bom senso para notar que Philip algumas vezes tem um comportamento questionável, principalmente em relação a Claude, porém nesse aspecto sua deficiência pode ser abstraída para notarmos que qualquer pessoa possui temperamento instável e que nem sempre a razão prevalece sobre as ações. Ao julgarmos equivocadamente como ingratidão uma atitude de quem não quer ser ajudado, fechamos os olhos para nossa própria ingratidão, muito menos justificável, ou ainda para o simples desejo que todos temos (com ou sem necessidades especiais) de um momento de privacidade, autossuficiência e afirmação pessoal.

A presença dos familiares, sobretudo de Philip, que requer maior auxílio, e de Lars, que tem a saúde mais frágil, é pequena e presente somente para dar fluência no enredo e indicar a necessidade de discernimento entre o que é realmente necessário em termos de atenção e o que extrapola esse limite, resultando em uma destruição desnecessária dos sonhos. Mais uma vez é factível a relação dos três jovens com outros quaisquer, sem limitações de movimento ou de visão, afinal, com cerca de vinte anos, qualquer jovem é seduzido pela ideia de uma viagem escondida, com fins distintos do que foi dito aos pais. A preocupação da família é compreensível, mas a intervenção desta deve sempre ser limitada para não limitar.

A comédia sutil e a crítica contida na aventura dos três amigos formam um filme que emociona e inspira, podendo ir além do senso comum baseado no engodo de que há ‘problemas maiores que os nossos’. Fica nas entrelinhas que todos passam por grandes dificuldades em determinadas situações, o que tem duas implicações: a primeira é que isso não é motivo para fugir da vida; a segunda (e mais importante) é que ninguém, nem mesmo os pais, têm o direito de coibir os sonhos sob o argumento proteger os sonhadores.


terça-feira, 5 de junho de 2012

Paraísos Artificiais


Com este longa o diretor Marcos Prado traz para as telas um tema bastante complexo, sobretudo pela falta de informação correta a respeito. O consumo de drogas sintéticas segue como tema proibido, de forma que o conhecimento que poderia auxiliar no discernimento sobre o consumo ou não das substâncias segue oculto na sociedade, que insiste em encarar todas as drogas da mesma forma, sem sequer saber ao certo quais os efeitos e malefícios de cada uma.

O roteiro demora um pouco para engrenar. O filme começa com alguns elementos desconexos para mostrar o romance da DJ Érika (Nathalia Dill) com Lara (Lívia de Bueno), e entre alguns flashbacks e momentos presentes vemos Nando (Luca Bianchi), que de alguma forma ronda a vida das duas. Mesmo com a história entrecortada, o início do filme tem longas cenas de raves, que apesar das belas paisagens litorâneas, não chegam a empolgar muito. É na segunda parte, quando as histórias começam a ser costuradas, que o filme começa a ganhar ritmo.

Mais que o enredo que guia o filme, ou seja, a história entrelaçada dos protagonistas, que forma uma trama interessante, o longa abre espaço para uma rica discussão sobre a forma como as drogas, sobretudo as sintéticas, são tratadas na sociedade, e geralmente de forma bastante negligente.

O filósofo Michel Foucault escreveu sobre a história da sexualidade, investigando o comportamento histórico para desvendar os motivos que levam o tema a ser encarado com tanto tabu. Apenas para citar alguns tópicos, Foucault atribui a repressão sexual a alguns fatores econômicos, visto que para jornadas de trabalho que duravam quase vinte horas era importante que os trabalhadores não gastassem energia com mais nada. Aos poucos a interdição da sexualidade propiciou sua mercantilização, gerando lucro de diversas formas, tanto com a produção de material voltado para o tema, quanto com a criação da necessidade de apoio psicológico, para quem não conseguia controlar um desejo que supostamente deveria ser reprimido.

Fazendo um paralelo com o consumo de drogas, evidentemente restrito dado ao caráter instintivo da sexualidade, ainda que Foucault tenha apontado sua construção social, vemos no filme personagens jovens, que vivem nas festas e sem o menor compromisso com uma vida regrada e economicamente produtiva. Condiz com a preocupação de poupar energia dos trabalhadores do séc. XVIII, através da interdição sexual, as consequências do consumo de drogas que podem comprometer a força produtiva da população.

O desdobramento da proibição das drogas tem o potencial de criar um mercado paralelo, não apenas dos entorpecentes em si, mas também através de clínicas de recuperação, auxílio psicológico, combate ao tráfico, campanhas preventivas e uma série de outros processos, que somados movimentam grande quantidade de dinheiro, gerando uma verdadeira cadeia produtiva, economicamente invejada por boa parte dos produtores e comerciantes.

Toda essa pressão voltada para criminalizar o consumo de boa parte das drogas tem, entre outras, duas consequências fundamentais. Uma delas é, a exemplo da repressão sexual estudada por Foucault, a vontade de saber, ou seja, inevitavelmente cria-se uma curiosidade em relação aquilo que é proibido de forma negligente, sem muitas explicações e geralmente de maneira equivocada. Ao descobrir empiricamente que as consequências do uso de drogas podem não ser tão dramaticamente exacerbadas quanto à imagem socialmente criada, uma rede de usuários passa a criar uma contra imagem sedutora e atraente para aqueles que nunca utilizaram drogas.

A outra consequência é que a proibição implica em silêncio, e este em falta de conhecimento. Há uma infinidade de drogas sintéticas, cada uma com efeitos, consequências e dosagem particulares. Partindo do princípio que a simples proibição vem se mostrando historicamente insuficiente para coibir o consumo de entorpecentes, seria muito mais seguro explicar detalhadamente as características das novas drogas – sem a ideia absurda de que isso estimularia o consumo – do que vender a falsa imagem que a realidade muitas vezes desconstrói e deslegitima.

O próprio filme em questão corrobora a ineficiência da atual postura social diante de entorpecentes, já que, generalizando para não revelar detalhes do final da trama, mostra os perigos que evidentemente existem em relação ao consumo de substâncias potencialmente letais, mas também mostra que muitos dos riscos vêm da falta de conhecimento e que o consumo não é necessariamente um poço sem fundo rumo ao inferno.


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