terça-feira, 18 de junho de 2013

Pixo

João Wainer e Roberto Oliveira levam às telas um tema geralmente relegado à marginalidade. A pichação costuma ser tão reduzida ao vandalismo que quem não tem contato com esta realidade tem até dificuldade de enxergar qualquer coisa diferente de uma violência.

Porém o cinema tem como uma de suas funções levar aos que assistem uma realidade diferente, sem que haja a necessidade de vivenciar o que é visto. Assim os diretores dão voz àqueles que costumam ter como única forma de expressão os muros e prédios a serem pichados.

Com origem na necessidade de um canal de expressão política, as primeiras pichações a ganharem destaque foram as realizadas durante a repressão da ditadura militar. Uma forma barata e eficiente de expressar o descontentamento com o regime, ainda que tivesse a necessidade de ser uma mensagem concisa e naturalmente efêmera. Aos poucos a ideia de se expressar em muros extrapolou o contexto político nacional, chegando às periferias e, detalhe fundamental, desenvolvendo sua própria estética.

Talvez esse seja um ponto central que permeia o filme, portanto o tema. É muito fácil pegarmos uma ação criminalizada desde sua origem, pois os militares evidentemente já desqualificavam essas ações, e taxarmos de vandalismo, dizer que não é arte e que não deveria existir. No entanto, para quem está imerso nesta cultura, o sentido é bem diferente. Conforme o filme mostra claramente, um dos jovens estudou até a oitava série e mal consegue ler palavras simples em letra de forma, mas decifra com a facilidade com que você está lendo esse texto as letras codificadas do pixo.

Quanto ao argumento mais que frequente de que o pixo deixa a cidade feia, primeiramente uma cidade como São Paulo, com seus prédios abandonados e paredes sujas, não precisa de ajuda para ficar feia, além disso nosso padrão estético também é construído de acordo com nossas experiências. Acostumados com a imposição da estética burguesa, ouvimos desde crianças que as obras expostas em um museu são belas, assim nos deparamos com obras cubistas ou do expressionismo abstrato e dizemos serem bonitas, ainda que muitas vezes não conseguimos compreender seu sentido.

Se um artista, socialmente reconhecido como tal, utiliza telas ou cria formas diferentes para expressar sua criatividade, os pichadores veem na cidade a forma de expressar uma realidade com a qual não costumamos ter acesso. É cômodo morar em um bairro nobre e desqualificar os pichadores e seus trabalhos, porém a força desta intervenção vem de periferias carentes de formas alternativas de cultura, de outras formas de expressão e mesmo educação institucional.

Enquanto desqualificamos o trabalho dos pichadores, o documentário nos mostra que São Paulo é uma atração turística para estrangeiros que visitam a cidade especificamente para ver os prédios pichados, já que a cidade é a única à oferecer esta arte de forma tão intensa e rica.

E esses artistas, vândalos para alguns, mas que de uma forma de outra atraem turistas para a cidade, sequer tem um retorno concreto disso. Escalar um prédio sem nenhum equipamento de segurança, chegar perto da rede de alta tensão, “rodar” nas mãos da polícia. Tudo isso tem um propósito maior do que somente vandalismo. É um desafio, busca reconhecimento, forma de expressão. Motivações e trabalhos que costumam ser incompreensíveis para quem não conhece.

Antecipando a crítica pouco criativa, mas inevitável, eu não gostaria de ter minha casa pichada. Tenho minhas opiniões pessoais em relação ao uso da pichação, mas o reducionismo de taxar todo o movimento de vandalismo é ineficiente. Tão ineficiente quanto a ação da polícia ao deter os pichadores. Agredir, humilhar, pintar uma pessoa que, mesmo inconscientemente está buscando uma fuga da realidade dura que enfrenta é sem dúvida uma forma trágica de tratar o problema, como costuma ser a especialidade da polícia paulistana.

Apoiar a agressão aos pichadores sem compreender suas causas é tolerar a intervenção urbana igualmente violenta, tanto no descaso urbanístico por parte dos governantes quanto na ação publicitária massiva da maioria das empresas privadas, que tiveram uma pequena regulamentação com a lei cidade limpa, mas já começam a driblar a proibição em pontos de ônibus “patrocinados”.

Da mesma forma que o documentário, o objetivo aqui não é concluir se a pichação é arte ou não, até porque o caráter transgressor e marginalizado está em sua essência e é desejado pelos pichadores, mas é inegável que se trata de uma expressão cultural, sendo que nesta qualidade, deve ser mais compreendida do que o reducionismo de vandalismo permite.


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Terapia de Risco (Side Effects)

Se por um lado o homem vem desenvolvendo a medicina há milênios, com registro de cirurgias complexas desde a civilização egípcia, há mais de cinco mil anos, por outro muitos afirmam que ainda estamos engatinhando no que diz respeito à cura. De fato alguns procedimentos ainda são extremamente invasivos, outros agressivos ou pior, empíricos, com bases quase intuitivas, como alguns tratamentos psiquiátricos.

O diretor Steven Soderbergh aborda esse aspecto incluindo os obstáculos da medicina contemporânea, que além das dificuldades biológicas deve driblar os problemas criados pelo homem. Entre eles a especulação financeira dos grandes laboratórios, a indústria de seguros, os processos, além de uma característica que não entra no filme – talvez brasileira demais – a máfia dos planos de saúde.

Não são raras as vezes que um médico acaba sendo peça chave em um julgamento, assim Dr. Jonathan Banks (Jude Law). Frequentemente só ele pode dar um veredicto sobre as condições clínicas do réu em determinado crime, mas há muitas coisas por trás disso. Tudo fica ainda mais complexo quando se trata de um paciente com distúrbios psicológicos.

Quem dera houvesse um exame de sangue, ou algo do tipo, que indicasse os níveis ideais de serotonina, dopamina e outros neurotransmissores, dentro de um espectro pré-definido, como a diabetes ou colesterol, entretanto para os antidepressivos, médico e paciente podem levar muito tempo testando doses e princípios ativos, até chegar ao medicamento ideal.

Dr. Banks faz o procedimento padrão de testar um medicamento. Seria desta forma até mesmo em uma sociedade ideal, sem grandes laboratórios patrocinando médicos para aumentar a venda dos remédios, imagine em uma sociedade cada vez mais dependente da necessidade de medicamentos, que assimilou a ideia de tomar antidepressivos como se fosse aspirina.

Por outro lado há o paciente com um distúrbio extremamente particular no corpo. Há quem encare o cérebro como qualquer outro órgão, ou seja, se sofre de alguma patologia, esta pode ser diagnosticada e tratada. Porém é difícil desconsiderar a particularidade de ser um órgão imensamente influenciado por fatores externos. Além das características físicas, existe a mente, a abstração de males que se por um lado são patológicos, por outro não são visíveis e muitas vezes demandam tratamento igualmente abstrato, como a terapia sem medicação.

Caímos em outro ponto delicado: quais traços de comportamento devem ser encarados como patológicos e, portanto, tratados? No filme Emily Hawkins (Rooney Mara) passa por um período difícil. Seu marido acaba de sair da prisão e isso não foi suficiente para por fim à sua depressão e ansiedade. Atualmente, sobretudo em grandes cidades, com o bombardeio de informações, pressões externas, cobranças e ritmo de vida frenético, dá para dizer que aqueles que passarem pela vida sem um período de ansiedade ou até mesmo depressão, formam um traço estatístico irrelevante perto da massa que terá que lidar com esses problemas uma vez ou outra.

Talvez Emily não precisasse de remédios, um tratamento baseado em terapia seria suficiente. Porém o histórico de acompanhamento psiquiátrico – ela já havia feito tratamento com a Dra. Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones) – pesou na hora de testar um novo medicamento.

Não tem como não mencionar mais controvérsias. Por mais que testes de novas drogas sejam feitos em animais (o que em si já desagrada muita gente) é inevitável que em uma etapa final o teste seja em humanos. Como toda droga causa efeito colateral, as bulas dos remédios trazem uma lista enorme e assustadora de adversidades que o produto pode provocar, reduzindo assim as chances de um processo por parte dos pacientes.

Se a hipótese de mover processos é viável, muitas vezes coibida apenas pelo poder econômico de grandes laboratórios frente aos pacientes, por outro lado somos engenhosos em encontrar brechas que compliquem ainda mais uma delicada estrutura, como a relatada relação entre médicos, pacientes, laboratórios e medicamentos.

Diante das peças que não se encaixam na história vivida pelo Dr. Banks, o personagem partirá para uma interessante história de detetive, focada na intuição e cruzamento de informações. Não vale a pena detalhar o final para não estragar nenhuma surpresa, mas o fato é que o enredo do filme expõe fraquezas de um sistema.

Não faltam exemplos na vida real em que médicos e, sobretudo, pacientes são prejudicados de alguma forma. Impossível saber quantos casos sequer são descobertos, porém um fato é evidente: os laboratórios, salvo raríssimas exceções, saem impunes.


terça-feira, 4 de junho de 2013

Elena Undone

Neste longa a diretora Nicole Conn mostra passo a passo o surgimento de uma paixão. Talvez o desenvolvimento do sentimento no filme fosse lento, não fosse a necessidade de desconstruir certas premissas antes de chegar ao ápice do enredo.

Primeiro somos apresentados à Elena (Necar Zadegan) e todo o conservadorismo que a cerca. Vinda de uma tradicional família indiana, a protagonista se casou para tentar fugir do conservadorismo e chega aos quinze anos de casada, com um pastor como marido e um filho adolescente, frequentando cultos que falam sobre encontrar o amor perfeito o mais cedo possível.

Seguindo o caminho desta vida morna, Elena conhece Peyton (Traci Dinwiddie). A afinidade entre as duas proporcionou o início de uma forte amizade, que não alterou nada na vida de Elena, apenas trouxe a tona pontos que ela ou desconhecia ou se esforçava em esconder. Passado o impacto ao descobrir que Peyton é lésbica, a protagonista passou a encarar o assunto com a naturalidade que só o preconceito impede.

É bastante previsível logo no início do filme que as duas irão se apaixonar, o fato é que se Elena tivesse encontrado outro homem e sentisse uma atração forte o bastante para abalar seu frágil relacionamento, todo o envolvimento poderia se desenvolver em uma ou duas cenas, para que a protagonista superasse as dúvidas e hesitações naturais e tomasse coragem para mergulhar em um novo amor.

O que chama a atenção no trabalho de Nicole Conn é a projeção de vários estereótipos nos personagens, que são desconstruídos com empatia e naturalidade. Diante da existência do preconceito, é mais viável identificar alguns padrões de comportamento, que são bem distintos entre si, do que tentar enfrentar a todos da mesma forma.

Vemos, por exemplo, que a hesitação inicial de Elena acontece pela falta de experiência. É compreensível que uma pessoa crescida em meio a valores extremamente tradicionais e casada com um homem machista e preconceituoso não se sinta a vontade diante de uma situação que sempre foi indicada como errada. Apesar disso a personagem não se mostra intolerante em nenhum momento.

É bem diferente de seu marido, o pastor Barry (Gary Weeks), que simbolizando todo o conservadorismo prega aos seus fiéis o tradicional discurso sem conteúdo sobre a tradição da família, ignorando, por exemplo, o fato de a própria igreja protestante ter surgido graças às divergências com dogmas católicos, que entre outras coisas proíbem o casamento dos sacerdotes.

A princípio Peyton é extremamente racional e centrada. Experiente, não quer se entregar a um sentimento que parece ter tudo para dar errado. De fato, se a mudança de comportamento de ambas fosse abrupta, seria um sentimento forçado e não seria tão bem aceito por quem assiste.

A naturalidade com que Elena passa a encarar a possibilidade de um relacionamento esbarra nas dificuldades evidentes de ter por outro lado uma família estruturada, a pressão social em relação ao impacto que uma separação gera nos filhos – independente da idade –, a tensão de informar ao marido que o casamento já não existe, etc.

E por parte de Barry, a reação foi a mais evidente, ainda que ridícula, ou seja, tentar encobrir as próprias falhas culpando as supostas más influências sofridas pela esposa, no caso por parte de Peyton. Muitas vezes a insegurança diante das próprias atitudes é defendida, mesmo que inconscientemente, através da desconstrução do outro. Desta forma, pelos outros estarem errados, a pessoa justifica (erroneamente) os próprios atos, que nem chegam a ser reconhecidos como preconceito.

A forma mais natural que o cinema tem para indicar que não há nada de errado com o enredo do filme, e seu caráter inusitado se dá pelo preconceito histórico, não por interdições biológicas, é evidenciar os percalços das duas personagens, que são rigorosamente os mesmos que seriam enfrentados caso no lugar de Peyton, Elena tivesse conhecido um homem. É evidente que existem nuances comportamentais que diferenciam as personagens, mas em essência, o filme consegue deixar claro que o estranhamento em relação ao casal se dá pelo preconceito, não pela relação ser homo afetiva.

Para um público específico, que já tenha superado preconceitos de gênero e sabe encarar com naturalidade situações que não demandam nenhuma reação adversa, o filme é um romance interessante, bem filmado, cujo enredo não traz grandes revelações, mas é no aspecto didático que Elena Undone ganha destaque, por cativar aqueles que assistem, desfazendo aos poucos o estranhamento, que pode dar lugar a uma visão de mundo menos preconceituosa.


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