terça-feira, 28 de junho de 2016

Ausência

Com este longa o diretor Chico Teixeira mostra um recorte da vida do protagonista Serginho (Matheus Fagundes). Com catorze anos o personagem está em uma fase decisiva de sua vida, tanto pela formação pessoal quanto pelos caminhos que começará a traçar rumo à vida adulta.

Quando se fala em meritocracia, valorizando as conquistas individuais através de suposto esforço pessoal, poucos se lembram de olhar para as condições de vida da pessoa para analisar as dificuldades que tiveram ou não que ser superadas.

Neste ponto a vida de Serginho pode ser encarada como uma aula para quem não percebe que as condições de vida não determinam, mas influenciam muito no que aparentemente não passa de mérito pessoal.

Em uma idade em que deveria apenas estudar, Serginho já trabalha como feirante, junto com o tio. Além de fazer serviços pesados ainda convive em um ambiente de hostilidade e preconceitos, travestidos de brincadeiras que passam longe do que deveria ser a referência lúdica de um adolescente. Capilarizados nas relações sociais, o machismo e a homofobia se perpetuam no ambiente.

A figura paterna, que costuma ser exemplo para as crianças, não somente está ausente da vida do personagem como é desconstruída para o menino. Luzia (Gilda Nomacce) não poupa esforços na hora de deixar claro para o filho que o ex-marido não é uma boa pessoa, portanto o menino não deve nem perder tempo se preocupando com o pai. Não só poderíamos pensar que haveria maneiras mais sutis de tratar a ausência paterna como é inegável que a postura materna também não ajuda.

Claro que não sabemos nada sobre a história de vida de Luzia e a principal crítica acaba sendo ao personagem que não aparece. Independente do que tenha acontecido entre o casal, o pai é mais um a abandonar a família e deixar toda a responsabilidade nas mãos da mulher, que não conta sequer com um pequeno auxílio financeiro. Por mais que a situação financeira do ex-marido não seja boa, a criação dos filhos também é responsabilidade dele.

Em relação à Luzia, existe a complacência diante de uma vida notoriamente dura da migrante nordestina, criando dois filhos sozinha e com pouquíssimos recursos, entretanto é difícil não censurar algumas atitudes da mãe. Em algumas cenas os papéis são quase invertidos, com Serginho cuidando de Luzia como se fosse uma filha a quem deve dar dinheiro e remediar as ressacas.

Na busca de um amparo afetivo que deveria ser muito mais presente na vida do menino, ele vê no professor Ney (Irandhir Santos) toda a inspiração e modelo que se espera da figura paterna. A relação dos dois é complexa, pois em relação a Serginho existe a inocência de alguém que somente busca de forma extremamente intensa a atenção que não encontra em outros lugares, tentando extrair do professor mais do que ele tem ou pode oferecer.

Já por parte de Ney notamos uma preocupação plenamente justificável de impor certo limite e preservar sua intimidade. Não se trata de negligenciar as demandas do menino, mas sim de não ter a intenção de assumir uma responsabilidade que não é sua. Fica implícito em algumas cenas a hipótese do afeto que ultrapassaria a amizade e mesmo a familiaridade; em uma situação como a do filme é de se supor que o professor tenha também a preocupação de não dar margem à suspeita de pedofilia.

Aos poucos vamos vendo como um garoto de apenas catorze anos além de lidar com a solidão e a carência, acaba lidando com a rejeição por parte daqueles a quem recorre. São problemas graves até mesmo para pessoas mais velhas e experientes, que quanto podem acabam procurando até mesmo ajuda média e psiquiátrica para trabalhar os efeitos nocivos de uma vida sem laços afetivos.

Uma pessoa que mal chegou à adolescência tendo que enfrentar situações tão difíceis pode enveredar por qualquer caminho que parecer mais sedutor de forma imediata. Talvez a única esperança que o filme apresente seja o circo onde o menino tem amizades e encontra um pouco mais de atenção. É possível que seja uma solução dentro das restritas possibilidades que o jovem encontra.

Essa realidade fria e dura é extremamente comum. Bastam algumas alterações para que esse roteiro seja encontrado nas vidas seguem pelas ruas da cidade em busca de um futuro redentor. Falar em mérito diante de situações como as do filme seria um otimismo acima do aceitável.


terça-feira, 14 de junho de 2016

A terra e a sombra (La tierra y la sombra)

Uma pequena casa cercada por um imenso canavial é o cenário deste longa do diretor César Acevedo. A grave enfermidade de Gerardo (Edison Raigosa), que graças aos problemas pulmonares não pode sair de casa, é o vértice de vários outros entraves, tanto de sua família quanto da situação social, comum aos grandes polos canavieiros da América do Sul.

Colher a cana-de-açúcar é trabalho árduo. As folhas cortantes e densas são queimadas para tornar o corte viável; o que não significa que a dificuldade acabe. Além da fuligem e poluição que se espalham – que provavelmente é a causa da doença de Gerardo – os trabalhadores devem trabalhar cobertos dos pés à cabeça, sob sol intenso, realizando uma tarefa exaustiva.

Esses trabalhadores costumam receber de acordo com a quantidade de cana cortada, portanto a família toda deve trabalhar. Com Gerardo de cama, sua esposa Esperanza (Marleyda Soto) cortando cana, sua mãe Alicia (Hilda Ruiz) ajudando na colheita e o filho pequeno em casa, foi preciso que seu pai Alfonso (Haimer Leal) voltasse para casa depois de muitos anos para ajudar.

É clara a clivagem entre homens e mulheres da família. Enquanto o machismo é expresso por abandonos e imposições de vontades, sua desconstrução se dá pela evidência de que nos momentos mais difíceis são as mulheres da família que tomam a frente, sem hesitar quando precisam realizar o trabalho mais pesado e ainda lindando com irresponsabilidades masculinas.

O universo rústico que domina suas vidas quebra o estereótipo machista de mulher delicada, cuja preocupação é cuidar da aparência. Se embrenhar em um canavial durante todo o dia implica em mãos calejadas e corpo recoberto pelo suor misturado às cinzas. Neste caso a dominação masculina se dá por meio da força impositiva dos trabalhos domésticos após a jornada extrema.

No canavial impera a rotina repetida há séculos. No Brasil um dos grandes ciclos de nossa história econômica é o ciclo da cana, desde então grandes áreas rurais se concentram nas mãos de pouquíssimos proprietários, que enriquecem explorando a força de trabalho de uma legião de homens e mulheres, antes escravos, hoje mal remunerados, com péssimas condições de trabalho e, como fica claro através de Gerardo, sem nenhum tipo de assistência.

Com grande quantidade de mão-de-obra disponível, os trabalhadores nos canaviais são vistos como peças descartáveis, que caso fiquem doentes como o personagem, podem ser tranquilamente substituídos sem prejuízos ao empregador.

No setor agrário o advento da tecnologia costuma ser benéfico ao proprietário de terra. As plantações de cana podem eliminar as queimadas e substituir um exército de trabalhadores por uma colheitadeira mecânica, que não apenas colhe, mas fatia as canas e separa as folhas. Tudo ótimo, exceto para os trabalhadores dispensados, que passam a não ter mais a renda da colheita e não têm mais a terra para cultivar e prover o próprio sustento.

A realidade agrária regida por um modo de produção que visa somente o lucro de poucos proprietários implica inevitavelmente em um roteiro como o do filme. O desdobramento histórico dos países latino-americanos concentra as terras nas mãos de poucos fazendeiros, estes mantém o poder político necessário para barrar qualquer tentativa de reforma agrária e ainda conseguem explorar a mão-de-obra em um regime análogo ao da escravidão, pois pagam aos cortadores o mínimo necessário, quando tanto, para sobreviver.

Todo o sistema de monocultura, baseado em vastas propriedades, plantação de um único produto e governo omisso – dadas as intervenções de bancadas ruralistas – só traz vantagens sob uma fria óptica econômica. A ampliação do lucro e redução do preço final dos produtos tem como base um rastro de problemas socioambientais.

Aos poucos, e bem mais lentamente do que deveria, as implicações ambientais como poluição advinda da queima, contaminação por agrotóxicos e desgaste do solo vêm sendo denunciadas e combatidas.

Já os problemas sociais que atingem a base da cadeia produtiva rural pertencem àqueles que não têm voz, que, como no filme, padecem de enfermidades adquiridas por más condições de trabalho e que raramente chegam aos olhos dos que assistem deslumbrados à colheitadeira que a princípio parece trazer apenas benefícios.

Filmes como o de César Acevedo servem como alerta em relação a problemas que parecem distantes. Dificilmente um filme assim chega a ser exibido para aqueles que são retratados. Encravados em áreas rurais, distantes de cultura e entretenimento, resta aos trabalhadores personificados por Gerardo, Esperanza, Alicia, a chance remota de que as denúncias feitas pelo filme ganhem corpo. A necessidade de grandes mudanças estruturais é urgente.


terça-feira, 7 de junho de 2016

Whisky

A partir de uma pequena fábrica de meias em Montevidéu os diretores Pablo Stoll Ward e Juan Pablo Rebella desenvolvem um enredo baseado em relações de poder e aparências, sempre com fortes bases econômicas e situações inusitadas formando uma comédia discreta, que nos faz rir sem apelações, somente escancarando situações plausíveis e cômicas por si só.

A fábrica em questão é do judeu Jacobo (Andres Pazos), quase uma versão contemporânea de Tempos Modernos, ou seja, com máquinas mais compactas e produtivas do que as retratadas no longa de Charles Chaplin, mas que ainda demandam um pouco de mão-de-obra, que no caso é restrita à somente três funcionárias.

Com uma rotina extremamente repetitiva, as costureiras são praticamente uma engrenagem a mais das máquinas. Chegam sempre no mesmo horário, executam a mesma tarefa, produzem as mesmas meias. Tudo extremamente mecânico e repetitivo. Mesmo Marta (Mirella Pascual), a secretária de Jacobo, com muito mais proximidade do chefe, seguia uma rotina bastante restrita, chegando antes da fábrica ser aberta e se esforçando para fazer sempre mais do que suas tarefas.

Esta rotina que nunca forneceria elementos para um roteiro de filme é alterada quando Herman (Jorge Bolani), irmão de Jacobo, vem do Brasil para uma cerimônia judaica. Também dono de uma fábrica de meias, o irmão que deixou o país tem uma coisa a ser invejada por Jacobo; uma família. É bem provável que o protagonista não dê um valor pessoal para isso, mas uma forte pressão social faz com que ele queira que o irmão acredite que ele é casado. A forma mais rápida encontrada para resolver o impasse é propor para Marta que finja ser sua esposa, casados há um ano. 

Chama a atenção o fato do filme ter poucos diálogos. Sem dúvida o principal responsável por isso é Jacobo. Extremamente introvertido e quieto, sendo que até o rádio das funcionárias ele prefere que permaneça desligado, o personagem também não abre muito espaço para diálogo, sendo econômico em suas afirmações e mais ainda em suas respostas.

Dessa forma boa parte das ações e reações são justificadas pela suposição de quem assiste. Difícil saber se Marta realmente queria encenar o papel de esposa ou se foi coagida de forma implícita pelo patrão, ao qual acatava todas as ordens dentro da fábrica. Da mesma forma que é possível ter estendido essa autoridade para a vida pessoal, também é compreensível que a funcionária solitária e restrita às atividades repetitivas do dia-a-dia, tenha aceitado a proposta já considerando certa amizade com o misterioso patrão.

Independente do que tenha motivado Marta, a relação de dependência econômica segue latente. Ela continua exercendo o papel de secretária que deve antecipar problemas e solucioná-los, enquanto ele somente dá a palavra final. Sem uma competência própria, o único fator que o torna superior é seu próprio dinheiro.

Quando pensamos no casamento tradicional de uma sociedade machista, onde o homem dá ordens simplesmente por ser homem, vemos que essa relação de dominação costuma se estender com muita facilidade para o ambiente corporativo, onde a esposa que cuida de todos os detalhes do lar para agradar o marido é substituída pela secretária, subserviente pelo poder econômico.

O que assemelha as relações retratadas é o machismo histórico, que fica mais evidente com Jacobo tendo vivido com a mãe até a morte dela, há somente um ano. Tendo passado a vida toda sob os cuidados maternos e, ao que parece, cultivando uma longa relação empregatícia com Marta, a única esfera que lhe faltava era realmente a matrimonial.

A família de Herman não é mostrada, mas com esposa e filha, tendo saído da casa da mãe há muito tempo, é claro o desconforto que sua presença provoca no irmão. Até mesmo a personalidade mais despojada e altiva parece incomodar Jacobo, que faz de tudo para mostrar que seu sucesso pessoal é equiparado ao do irmão. 

Seria absurdo apontarmos o protagonista como vítima do machismo, afinal, como já indicado, ele passou a vida toda sob os cuidados da mãe e da secretária, porém vale a pena indicar o quanto a necessidade de exercer um papel social absurdo também traz incômodos. Na ânsia de se apresentar como um homem de sucesso, que na lógica machista deve incluir uma esposa, o desconforto é claro. Parece que esboçar uma felicidade, como o filme indica, só mesmo com whisky. 


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