quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Um dia, um gato (Až přijde kocour)

Este filme foi produzido na Tchecoslováquia em 1963. Escrito e dirigido por Vojtěch Jasný, seu enredo simples me lembrou algumas histórias de Saramago por pegar uma ideia inusitada e desenvolvê-la com muita competência para imaginar como as pessoas se portariam caso tal fato realmente acontecesse.

Aqui o inusitado é um gato que usa óculos escuros, pois quando sua visão está livre as pessoas mudam de cor de acordo com seus atos e sentimentos. Assim os apaixonados ficam vermelhos, os desleais amarelos, as pessoas mentirosas e hipócritas tornam-se roxas, etc. A ideia de expor de alguma forma o que as pessoas escondem, muitas vezes até delas mesmas, não é tão nova e já foi explorada de várias formas no cinema e na literatura, mas é com simplicidade e misturando elementos do universo das crianças que o diretor dá destaque à sua obra.

No início do filme o personagem Oliva (Jan Werich) resume com sua primeira frase o roteiro: “Vou contar uma estória com mais verdade que fantasia.” e segue observando do alto de uma torre os habitantes da pequena cidade. Vemos que cada um tem um ponto a ser criticado, portanto, ainda que a acusação não seja grave, Oliva indiretamente desconstrói a dicotomia de bons e maus, mostrando a diversidade que mesmo sendo tão óbvia, costuma passar desapercebida, e as pessoas que buscam a imagem de um comportamento exemplar também têm seus defeitos.

A fantasia, que segundo o personagem é menor que a verdade, é o inusitado, o impensável que costuma ficar no mundo dos sonhos, trazido à tona com a figura do gato que faz com que as pessoas mudem de cor. A verdade pode ser encarada como o desdobramento da história, ou seja, a hipótese de como as pessoas reagiriam se aquilo realmente acontecesse.

Na pequena cidade vimos que ao serem reveladas as cores das pessoas de acordo com seus atos, os apaixonados ficaram envergonhados, por vezes surpresos com a própria cor vermelha ou ao verem a pessoa ao lado em escarlate. Até aqui tudo seria divertido após o impacto inicial; uma forma de lidar com a atração de forma lúdica – como deveria ser cotidianamente. Mas o mágico felino não revelava apenas a paixão e muitos ficaram amarelos, cinzas, roxos, por vezes a mesma pessoa mudava de cor, mostrando a heterogeneidade dos sentimentos, o que certamente causaria problemas para muita gente.

Haveria uma solução simples para alguns casos, afinal um mentiroso poderia simplesmente mudar sua conduta para livrar-se da cor que o acusa, porém os poderosos que de repente se viram em cores relacionadas a atos constrangedores tentaram o caminho mais comum ao longo da história: matar o gato. O pobre animal aqui é a pequena parte da fantasia ao qual Oliva se referiu, mas podemos pensar na forte censura do regime autoritário vigente no leste europeu durante o pós guerra, sendo o elemento denunciador qualquer um que tentasse desmascarar alguma falcatrua do governo, feito um gato mágico que pudesse indicar os mentirosos, corruptos, torturadores, etc.

Curioso é pensar que em uma sociedade extremamente dinâmica, com desenvolvimento tecnológico galopante e constantes quebras de barreiras – como a que isolava a antiga Tchecoslováquia – um filme com quase meio século não se torna anacrônico. Por mais que a censura não atue de forma tão direta e agressiva na maioria dos estados como já vimos no passado, caso apareça um gato mágico moderno capaz de denunciar o que foi jogado para baixo do tapete, através de um site que revela a ligação de governantes com tortura, crimes de guerra, preconceito, etc, a reação não será a mudança de conduta para agir de acordo com as expectativas da população, mas sim matar o gato, prender o administrador do site, ou o que quer que seja preciso para poder agir irresponsavelmente.
 
 

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cão sem dono

A ideia de um cão sem dono remete de imediato a duas possibilidades, uma é a liberdade proporcionada pela ausência de alguém que, por ter posse, têm também direitos sobre sua propriedade; a outra é a falta dos cuidados que um dono pode proporcionar, implicando em sentimentos de solidão e desamparo.

Através do personagem Ciro (Júlio Andrade) os diretores Beto Brant e Renato Ciasca conseguem mostrar esses dois caminhos. Focado em um protagonista bastante intimista e fechado em si mesmo, aos poucos o longa nos proporciona romper as barreiras que o personagem ergue em torno de si, para que possamos mergulhar em seus sentimentos. A princípio não é fácil, mas entre os comportamentos extremos de Ciro é possível encontrar conflitos muito comuns, gerados pela projeção do amor entre pais e filhos na vida adulta.

O personagem leva uma vida espartana em um apartamento pequeno e quase sem mobília. O espaço é dividido com o vira-lata sem nome, afinal só os donos podem escolher nomes e Ciro vê o cão como um amigo. Se por um lado a profissão de tradutor (de russo) não lhe possibilita muito mais conforto que a vida atual, forçando o rapaz a depender da ajuda financeira dos pais, por outro Ciro não se incomoda com a simplicidade material que o cerca e não hesita em recusar um emprego que não corresponde às suas expectativas.

É com a presença de Marcela (Tainá Müller) que a segurança de Ciro será colocada em xeque, pois a princípio ele não demonstra grande afeto pela moça, como era de se esperar pelos poucos elementos que temos sobre sua vida, e a relação parece ser sustentada pela sonhadora modelo, ratificando o estereótipo reducionista de que a mulher valoriza mais os sentimentos.

Os percalços que afastam o casal podem ser encarados como desejados por Ciro, mas é diante da perda que os sentimentos, antes blindados pelo personagem introspectivo, vêm à tona. Consequentemente só então ele sente o peso do isolamento, tendo que buscar conforto com o porteiro Elomar (Luiz Carlos Vasconcellos Coelho), cuja experiência de vida poderia ajudar muito, mas certas coisas só aprendemos vivenciando.

A trama do protagonista é muito bem fechada quando os diretores mostram mais detalhes sobre sua família. A partir daí fica mais fácil compreender o isolamento de Ciro, como uma forma de negar a atenção exacerbada dos pais e buscar a individualidade. A aparente confusão do personagem, que primeiro demonstra frieza para depois desabar diante da ausência de Marcela, segue a mesma linha, pois a atenção que a moça dava ao cão sem dono o remetia aos mimos maternos. É de se esperar que se Ciro se afastou dos pais para buscar a individualidade a distância de Marcela também lhe agradará, mas há dois pontos relevantes: o primeiro é a dificuldade de nos livrarmos de fato da forma com que fomos criados, principalmente quando essa criação está baseada no conforto que a proteção familiar pode oferecer; o segundo é que ao optar por viver sozinho Ciro mantinha o controle da situação, ao passo que a separação da namorada fugia de seu arbítrio, gerando toda a angústia que explodiu em crise.

É interessante comparar esse filme com o trabalho seguinte de Beto Brant, “O Amor Segundo B. Schianberg”, pois ainda que não tenha tido essa intenção é possível olhar para o casal retratado (encenado por Marina Previato e Gustavo Machado) como uma alternativa para o relacionamento de Ciro e Marcela, pois, com estereótipos semelhantes, o casal do segundo filme mostra mais maturidade para encarar as dificuldades do relacionamento, de forma que conflitos são resolvidos em conjunto, ao invés de algumas atitudes isoladas que tentam prever sentimentos.

São duas obras bem intimistas e reflexivas, que nos mostram aspectos interessantes do comportamento complexo, e muitas vezes incoerente, das pessoas – dificultado pela necessidade de interagir com outras pessoas igualmente complexas.


segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O abraço corporativo

O documentário dirigido pelo jornalista Ricardo Kauffman começa com a apresentação de Ary Itnem, a princípio mais um consultor de RH que vai da psicologia à auto-ajuda através do “abraço corporativo”. Supostamente a técnica consiste em eliminar o afastamento dos companheiros de trabalho, proporcionado pela tecnologia excessiva, através de abraços entre funcionários.

Em meio a tantos consultores de RH que investem em técnicas alternativas para melhorarem os resultados de empresas o Sr. Ary Itnem conseguiu seu espaço e foi alvo de grandes veículos de comunicação, concedeu entrevistas para revistas, rádios e expôs sua técnica em programas de TV. Tudo plausível, não fosse pelo fato de Ary Itnem não ser nada mais que o bom e velho picareta! Encenado pelo ator Leonardo Camillo, o consultor foi uma invenção de Kauffman que nos mostra por um lado a fragilidade das pautas da imprensa – já que muitas vezes os repórteres vão às ruas apenas para ratificar o que já foi concluído na redação – e por outro o poder de convencimento da mídia.

O longa não aborda nenhuma forma de controle dos veículos de comunicação, mas com o crescimento do discurso dos que valorizam o controle social da mídia, é possível que o trabalho de Kauffman abra discussões interessantes neste sentido. A liberdade de imprensa é indiscutivelmente fundamental e este argumento é a base dos que bradam contra qualquer tipo de controle, porém podemos associar este fato com uma das frases criadas pelo personagem Ary Itnem: “tudo não é verdade”. Ou seja, a liberdade de imprensa deve ser ilimitada, mas o que acontece quando essa liberdade proporciona a ampla divulgação de uma mentira?

O objetivo do documentário não é difamar os veículos ou os profissionais que deram atenção ao consultor inventado, essa é apenas uma invenção que ganhou certa projeção nacional sem grandes consequências, e qualquer trabalho mais dedicado revelaria a fraude, que chegou a ser registrada em cartório por Kauffman. O problema é que com a mesma facilidade com que Ary Itnem foi apresentado equivocadamente como profissional, qualquer mentiyra pode ser trabalhada intencionalmente pelos detentores dos meios de comunicação para ludibriar a população.

É claro que difundir um boato como verdade não é fácil e costuma prevalecer a velha máxima de que a mentira tem perna curta, mas imaginemos que para aquecer a economia um estado estabeleça entre a população o medo de ser atacado por armas químicas, justificando assim um ataque militar ao detentor de tais armas. Quando a farsa for revelada é possível que o estrago já esteja feito.

Não precisamos chegar a um exemplo tão extremo, basta pensarmos que em uma disputa presidencial a mídia talvez tenha o poder de implicitamente guiar as campanhas presidenciais ressaltando temas pessoais, como religiosidade, ao invés de propostas de governo que de fato terão influência sobre a população.

Como dito acima, o filme não tem esse viés e seu foco concentra-se na crítica à forma como os editoriais buscam as matérias, pressionados por uma série de fatores que somados levam à falta de rigor na análise dos fatos. A necessidade de produzir conteúdo é cada vez maior e se intensificou muito após a popularização dos portais de notícias virtuais, além da pressão exercida pela concorrência, pois se um grande veículo apresenta um furo de reportagem os demais buscarão suas fontes, nem sempre fidedignas, para apresentar sua versão dos fatos o quanto antes.

A associação com o controle social da mídia, que já existe em diversos países democráticos, é um desdobramento possível do que Ricardo Kauffman apresenta, pois é um tema relativamente obscuro que a mídia – não por acaso – não faz a menor questão de esclarecer, optando geralmente por fazer a falsa associação do controle social à censura de conteúdo, que é evidentemente inaceitável – tão inaceitável quanto esconder-se atrás do discurso em prol da liberdade para divulgar matérias no mínimo capciosas.


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