quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Como esquecer

Com um tema comum a todos a diretora Malu Martino exibe sua versão cinematográfica para do livro homônimo, mostrando o período de transição entre dois ciclos da vida da protagonista Júlia (Ana Paula Arósio). Dão suporte à narrativa os amigos Hugo (Murilo Rosa) e Lisa (Natália Lage), ambos também em transição por desilusões amorosas, porém essas desilusões têm nuances relevantes. Júlia vive uma separação, Hugo ficou viúvo e Lisa se depara com uma gravidez indesejada, que abre espaço para uma leve pincelada na recente polêmica aberta pela campanha presidencial. Os desafetos são apenas citados, nunca mostrados. Não há rostos, já que estes poderiam ter qualquer forma, sem alterar a estrutura dos sentimentos envolvidos.

A república montada pelos três amigos foi uma ótima metáfora para retratar as personagens, principalmente Júlia. A casa tem uma linda arquitetura, porém está maltratada pelo tempo e precisa de reformas, já sua moradora não exibe a exuberância característica da atriz, ao contrário, tem a expressão de quem está cansada de sofrer e por mais que tente manter as aparências, não consegue iniciar a reforma que sua vida precisa.

Para além das aparências físicas, a república fica no Rio de Janeiro, só que distante do centro, em Pedra de Guaratiba – pequena, tranquila, até isolada –, com cenas entrecortadas com a universidade em que Júlia dá aulas de literatura inglesa, como um pólo oposto da casa a beira mar. Entre esses dois extremos a professora revela através de suas atitudes o orgulho ferido, que dispara contra todos na tentativa de se isolar e buscar a tão sonhada quanto inexistente tranquilidade. Por outro lado, nas horas mais difíceis prevalece, ainda que involuntariamente, a necessidade do conforto dos que estão próximos e que chega pela vida social intensa que uma metrópole pode proporcionar por sua diversidade.

É claro que os conflitos e incoerências da vida de Júlia podem ser encontrados na vida de qualquer pessoa. Traumas como o fim de um relacionamento, independente de como isso aconteça, só realçam determinados sentimentos que a vida moderna, bem ou mal, nos impõe. Ao mesmo tempo que temos o individualismo exacerbado como comportamento quase imposto pela sociedade moderna, convivemos ainda com valores tradicionalistas extremamente consolidados por séculos; nas cidades vemos ainda a infinidade de possibilidades que a vida urbana nos proporciona caminhar lado a lado com a solidão urbana das grandes metrópoles.

Passando pelos obstáculos cotidianos cabe a cada um aprender a lidar com estas incoerências de sentimentos conflituosos. No filme o roteiro flerta muitas vezes com o senso comum, porém cada personagem segue seu rumo da maneira que considera mais conveniente para encerrar um ciclo doloroso e dar continuidade às atividades cotidianas. A expectativa maior naturalmente volta-se para Júlia e suas possibilidades. Mulher madura e culta, pode encontrar a síntese entre o individualismo e o aconchego de outras pessoas de diversas formas, e independente de qual seja (deixando em aberto para não estragar o final) a atitude tomada inevitavelmente diz muito sobre o aprendizado que cada um extrai de suas experiências pessoais.

Voltando ao início, não há grandes referências sobre os amores passados, mas a pessoa por quem Júlia sofre chama-se Antônia. O fato da protagonista ser homossexual, assim como seu amigo Hugo, é tratado com a naturalidade necessária para deixar claro que independente de orientações sexuais, os sentimentos que permeiam os seres humanos são os mesmos. Em tempos em que a sexualidade do indivíduo é alvo de disputas entre políticos, religiosos, cientistas, etc., vemos sob o olhar bastante sensível de Malu Martino e através da atuação impecável dos atores que a sexualidade não é um diferencial na personalidade. Havendo respeito ao outro cada um solucionará as dificuldades que a vida naturalmente impõe da maneira que for mais conveniente, como entre os três amigos retratados.

 

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Eu matei minha mãe (J'ai tué ma mère)

Viver costuma ser difícil. Quando nos livramos do engodo da felicidade e lançamos um olhar crítico, sem saudosismo, para nosso passado e presente vemos quantos percalços cercam os bons momentos e quantas lutas temos que enfrentar para chegar a alguns momentos de satisfação. Quando crianças, enfrentamos medos que pelo ponto de vista adulto são bobagens passageiras, mas para quem tem pouquíssima experiência de vida as reações podem ser equivalentes às de um executivo a beira da falência. Depois que nos tornamos adultos intensificam-se os deveres, as responsabilidades e a necessidade de sermos soberanos em nossas decisões, ou seja, fica cada vez menor a possibilidade de recorrer à ajuda dos pais. Entre essas duas fases distintas está Hubert (Xavier Dolan, que escreveu o roteiro e atua como protagonista do filme, baseado em sua própria história).

O fato de um filme sobre um adolescente ter sido escrito por quem viveu há pouco as experiências relatadas ressaltam pontos pouco explorados pelo senso comum ao falar desta delicada etapa da vida. Longe de atingir a emancipação da vida adulta e com medos infantis remanescentes, a adolescência é a fase em que vivemos intensamente os problemas dos dois períodos e quando exteriorizamos as consequências deste bombardeio de dúvidas, angustias e medos, o diagnóstico mais comum dado pelas pessoas próximas vem carregado de culpa, que só piora a confusão habitual.

Essa transição fica bastante clara nos cortes abruptos de comportamento de Hubert, que passa de agressões severas e requisição de liberdade para cobrança de atenção e amparo. Qual reivindicação é sincera? Ambas. O que torna a postura dos pais igualmente difícil.

No filme Chantale (Anne Dorval) é a mãe de Hubert e tem atitudes que beiram o ridículo – com uma construção de personagem evidentemente parcial, dado que o autor do filme é o filho –, mas absurdos e exageros a parte, as ações e reações do filme são plausíveis. Igualmente incoerente, o comportamento dos pais transita pelo desejo de emancipação dos filhos, para que estes cresçam e sejam independentes, e o desejo de laços eternos impostos pela vontade de ter a cria sempre por perto. Como se não bastasse, boa parte dos pais (inclusive Chantale e o pai de Hubert, que o vê duas vezes por ano) não se contentam com a felicidade do filho, pois estes devem ser felizes da maneira que os pais esperam. Desta forma, não basta que o filho trabalhe, pois deve seguir o ramo que os pais escolhem; a faculdade deve ser a escolhida pelos pais antes mesmo da criança nascer; o relacionamento deve passar pelo crivo dos pais e começar quando estes acharem prudente, etc.

Dizer que tanto o papel dos pais quanto o dos filhos é difícil também é uma fuga cômoda das responsabilidades de cada um. É relevante pensarmos que nessa relação os adolescentes têm menos vivência e por mais que tenham comportamento conflituoso e incoerente, suas personalidades refletem muito dos laços familiares ao longo da vida – ou mesmo a ausência destes laços. Por outro lado, os pais que reclamam tanto dos “aborrescentes” tiveram mais de uma década para uma socialização da criança, baseada na educação mútua – afinal ter um filho também é uma novidade na vida de qualquer um – e o desenvolvimento de uma relação que não desemboque em explosões de fúria e cobrança de afeto como vemos no filme de Xavier Dolan.

Em suma, após vários anos em frente à TV enquanto os filhos crescem sozinhos, dá muito mais conforto aos pais empurrar a culpa do comportamento rebelde de um adolescente aos amigos, escola, relacionamentos, drogas e tantos outros supostos males que rondam os filhos, sempre fora da alçada dos pais, para que estes possam adotar a postura de competentes dentro do que lhes cabia.

Vi diversas críticas indicando o filme para quem vive a mesma situação relatada, com as mesmas relações conflituosas. É de fato válido, porém acredito que seja ainda mais indicado para os pais que ainda não chegaram nesse extremo, já que muitos problemas podem ser evitados, ao invés de combatidos.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Pantaleão e as visitadoras (Pantaleón y las visitadoras)

Em seu romance Mario Vargas Llosa utiliza de muito humor para, através de um serviço bastante inusitado dentro do exercito peruano, criticar a instituição e aspectos sociais. A primeira transposição da obra para o cinema foi feita pelo próprio autor em 1975, mas o próprio Llosa admitiu a inexperiência e o resultado insatisfatório da obra. Em 1999 Francisco Lombardi apresenta a competente adaptação, que mantém os aspectos centrais do livro mesmo sem contar com os recursos de linguagem adotados pelo escritor. Talvez a única grande mudança seja a omissão do enredo paralelo sobre os irmãos da arca, através do qual o autor mostra a síntese de rituais tribais e elementos católicos.

A maior parte do livro é narrada através de cartas, documentos oficiais do exército, reportagens e narrativas que descrevem detalhadamente, com evidente parcialidade por parte do personagem autor, que dá veracidade ao relato. Complementando os documentos Llosa nos apresenta diálogos intercalados, dando um ritmo diferente, dinâmico e real para a narrativa.

O tom de humor, mais intenso no livro que no filme pelas descrições mais detalhadas, fica por conta do inusitado, já que para conter a onda de estupros na cidade de Iquitos por parte dos soldados o exército escolhe o mais que metódico capitão Pantaleão Pantoja (Salvador del Solar) para coordenar um serviço de visitadoras para os soldados, eufemismo para as prostitutas contratadas pelo exército para sanar as necessidades dos militares. Assim esses dois estereótipos aparentemente tão distintos se aproximam, porém mantendo as respectivas características principais.

O capitão Pantoja tem o comportamento exemplar e passa a imagem que o exército cria sobre a instituição para a sociedade, ou seja, disciplinado, obstinado e sem vícios. Tudo que o militar sabia fazer era obedecer a ordens, de forma brilhante e com dedicação total, que a princípio deixa qualquer superior do exército satisfeito. Talvez o problema do capitão fosse sua falta de senso crítico – que em certo nível é indispensável aos militares – a ponto de não diferenciar a essência da aparência, ou seja, de não perceber que por trás da aparente seriedade e responsabilidade militar há a necessidade de agir sorrateiramente, seja para manter um serviço de visitadoras, como satirizado por Llosa, seja para tomar o poder o estado, como a América Latina viu na segunda metade do século XX e, por incrível que pareça, já presenciou por três vezes em apenas dez anos deste século, com a tentativa frustrada na Venezuela em 2002, a mais eficaz em Honduras sete anos mais tarde e a atual ofensiva no Equador, que ainda é cedo para sabermos as consequências.

Os dois pontos mais marcantes da obra ficam por conta da crítica à instituição militar, incapaz de solucionar problemas cujos interesses não sejam os do próprio exército, sem medir esforços ou considerar consequências de seus atos; e o machismo latente da sociedade, expresso também pelos civis, que por um lado se apóiam no moralismo para criticar o serviço de visitadoras e por outro reivindicam o mesmo serviço, na qualidade de reservistas do contingente militar.

A síntese desses dois pontos fica por conta da relação entre Pantoja e Colombiana (Angie Cepeda), que no livro era conhecida como Brasileira, por ter vivido em Manaus. Por mais formal que o militar possa ser ele deve lidar com os próprios sentimentos, e o faz de forma bastante curiosa. Faz uso de sua patente e tenta manter qualquer tipo de atitude contrária às regras em segredo, por outro lado é extremamente penoso lidar com sentimentos de posse e ciúme.

Um ponto em que o filme se destaca em relação ao livro é a cena em que visitadoras são violentadas. Sob o discurso de proteção às mulheres da cidade, pouco importa o que aconteça nos quarteis, desde que as aparências sejam mantidas e que os escândalos sejam encobertos de forma eficiente, sem abalar a estrutura machista e conservadora, como já nos indicava Chico Buarque em 1979 com “Geni e o Zepelin”, que pelo conteúdo poderia tranquilamente servir de trilha sonora para a referida cena.

Já se passaram quase quarenta anos desde o lançamento do livro, trinta desde a polêmica música de Chico e dez desde o lançamento da adaptação do livro para o cinema. Muitas mudanças em relação ao machismo e a postura muitas vezes patética das forças militares?

 
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