terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A memória que me contam

Um grupo de amigos se reúne na sala de espera de um hospital, a espera de notícias de uma paciente, membro do grupo. A particularidade é que a união desses amigos aconteceu algumas décadas atrás, quando todos combatiam a ditadura militar. 

Quem está internada é Ana, personagem inspirada na guerrilheira Vera Sílvia Magalhães, que aparece no filme somente na memória dos personagens representada por Simone Spoladore, ou seja, ainda jovem.

A diretora Lucia Murat foi muito precisa na escolha do título do filme. Quando um grupo de pessoas se reúne e começa a lembrar algum fato vivido o resultado é uma versão formada dialeticamente por fragmentos fornecidos por cada um. Por mais que tenhamos certeza de fatos passados, nossa lembrança é inevitavelmente impregnada por sentimentos que moldam nuances dos acontecimentos.

Essas divergências criam vários conflitos entre os amigos, que ao discutirem acabam abordando questões da ditadura que não devem ser esquecidas, e a reação de boa parte da população ao recente relatório elaborado pela Comissão da Verdade – criada para investigar crimes cometidos durante a ditadura – mostra o quando é importante contar essas memórias a partir do ponto de vista de que foi oprimido.

Os personagens demonstram, cada um a sua maneira, que as consequências do período militar ainda estão presentes em suas vidas, o que é bastante plausível, pois mesmo que já tenha passado quase trinta anos do fim da ditadura, as cicatrizes psicológicas deixadas nos combatentes são profundas e reavivadas por uma visão preconceituosa contra aqueles que lutaram pela liberdade.

Difícil de acreditar, mas ainda hoje há quem aceite que vivemos o risco de um golpe que instale uma ditadura chamada de comunista e ainda hoje há quem defenda um golpe militar que instale uma ditadura contra essa ameaça. É esse argumento pífio que é utilizado até hoje para justificar os crimes cometidos pelos militares ao longo de 21 anos de nossa história.

Trinta anos depois da reabertura política, não podemos dizer que vivemos um período político tranquilo. Um detalhe extremamente relevante é que nunca houve uma tranquildade consistente em nossa política. Se pensarmos na política como um retrato da sociedade que ela representa, a disparidade social gritante que marca a história do Brasil impossibilita uma política minimamente satisfatória, já que a despeito da sociedade pluralizada, os políticos são formados quase exclusivamente pelas classes mais altas.

Com a mídia assumindo papel de principal formadora de opinião da sociedade, ela molda a história de acordo com seus interesses. Apoiou a ditadura quando considerou necessário, retirou o apoio quando já não era preciso e agora auxilia na criminalização de movimentos de esquerda, associando militantes a criminosos.

Essa visão enviesada é um dos alvos dos diálogos do filme. Com uma direita mais coesa e homogênea, unida para a defesa de seus próprios interesses, a esquerda juntava forças esparsas e difusas para lutar por liberdade e justiça social. Multifacetados, os militantes políticos lidavam com as divergências internas com longos debates e deliberações, diferente do autoritarismo do governo vigente.

A partir do momento em que o governo democrático brasileiro foi derrubado e o poder foi tomado de forma ilegítima, ações civis começaram a ser coordenadas como resistência, daí surgem assaltos a bancos para financiar a guerrilha, além do famoso sequestro do embaixador norte-americano, do qual participou Vera Sílvia Magalhães. Hoje é cômodo e conveniente aos militares alegarem que a ditadura apenas combatia esses militantes ditos ‘criminosos’, porém tais delitos só existiam em represália ao governo sem legitimidade política.

Beneficiados pela insana lei da anistia, militares alegam que os revolucionários também não foram punidos por seus atos, omitindo pertinentemente as sessões de tortura física e psicológica pelas quais os opositores do regime foram submetidos. O filme retrata as torturas de forma tímida. Podemos ver alguns personagens que apresentam sintomas, desde os mais leves até a loucura em nível mais crítico, porém uma barbárie tão cruel talvez merecesse mais destaque.

Escondendo-se por trás da censura e toda rigidez que protegia o governo da época, os militares de hoje exaltam o crescimento econômico da ditadura e indicam os escândalos de corrupção atuais para forjar uma defesa ética. A imprensa, que hoje conta com a liberdade impensável no auge da ditadura, poderia ao menos esclarecer para a população como a dívida externa do país disparou para sustentar o aparente crescimento e como a corrupção era incalculável e omitida através de censura rígida.

A memória que o filme conta é bem distinta da estória que os militares contam. Independente de qualquer visão política é uma memória que deve ser revisitada com frequência, contada por pessoas que merecem antes de tudo muito respeito, não apenas pela obstinação com que lutaram, mas também pelos castigos físicos e psicológicos que tiveram que passar para que o país pudesse se livrar de um período tão sombrio.


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Boyhood - Da Infância à Juventude

Não é raro que devido a dificuldades financeiras um projeto cinematográfico se estenda por vários anos até sua versão final, porém não é esse o motivo que levou o diretor Richard Linklater a demorar doze anos para a conclusão de sua obra.

Ao invés de utilizar vários atores para retratar a vida do protagonista Mason (Ellar Coltrane), todo o elenco foi reunido uma vez por ano para filmar uma sequência, finalizadas em um corte de quase três horas, acompanhando não apenas Mason, mas também seus parentes próximos ao longo de mais de uma década.

É possível imaginar algumas dificuldades para a realização de um projeto tão inusitado e peculiar. Sem dúvida o roteiro teve que passar por adaptações e o enredo não conta com nenhum grande tema. Uma narrativa bem linear mostra de forma bastante clara as dificuldades que encontramos da infância à juventude e como o contato com uma série de pessoas ao longo dos anos influencia nos moldes de nossa personalidade.

Mason e sua irmã Samantha (Lorelei Linklater) não foram planejados, o jovem casal formado pelos pais logo se separou e a guarda das crianças tendo ficado com a mãe acaba dando ênfase na vida de Olivia (Patricia Arquette). Criar filhos não é fácil, sobretudo quando essa tarefa cai no colo de uma pessoa que acaba de deixar a adolescência, com a expectativa de viver a vida sem as amarras familiares da juventude.

Olivia se desdobra para ser a melhor mãe possível, cuidar da própria carreira e conciliar tudo com sua vida pessoal. Gravado no extremamente conservador estado do Texas, a imagem que o filme nos passa do pai das crianças não poderia ser outra. Mason Sr. (Ethan Hawke) não chega a ser um pai ruim, porém passa tão pouco tempo com os filhos que dependeria de um grande esforço para utilizar alguns poucos fins de semana para além da ausência ainda tomar atitudes ruins.

É evidente que ser um pai ausente deixando nas mãos da mãe praticamente todo o trabalho pesado já faz com que Mason Sr. não seja um exemplo. Apesar disso, é possível encontrar em meio a esse machismo alguns diálogos bem produtivos entre pai e filho, com conselhos preciosos e, com a falta de jeito natural diante de algumas situações, as devidas instruções que nem sempre são feitas por pais fisicamente presentes em tempo integral.

Como não acompanhamos a vida de Mason Sr. fora do contato com as crianças, não existe a certeza dos percalços em seu caminho, mas sem dúvida a distância das crianças dá a possibilidade de uma margem de erro muito maior. Olivia tem todo o direito de seguir sua vida, a diferença é que novos relacionamentos, conturbados e complexos para qualquer pessoa, ganham um peso maior quando crianças estão envolvidas.

Neste ponto o machismo texano é gritante. É possível que a dificuldade de relacionamento com os filhos seja superada pela dificuldade de relacionamento com os enteados, o que não alivia a tentativa quase infantil de padrastos querendo se impor de forma desnecessária e excessiva. A tentativa mais que compreensível de Olivia de proteger os filhos esbarra inevitavelmente no desgaste de relações entre todos os envolvidos, inclusive dela com as crianças, cuja visão de mundo muito mais objetiva e prática dificilmente compreende certas complexidades desnecessárias dos adultos.

Entre idas e vindas os personagens crescem, os adultos amadurecem e o ciclo mais comum da vida em sociedade vai aos poucos sendo completado. Em alguns pontos é possível notar as cenas um pouco desconexas, até pelas características da filmagem, sem que isso influencie na qualidade da obra.

Em um filme tão longo, nem sempre é o protagonista Mason que está em evidência, há espaço para os que o cercam, ainda assim acompanhamos os processos mais importantes do menino que passa pelas dificuldades de cada fase até chegar à universidade. Ao contrário das expectativas que se cria ao redor de um protagonista, ainda que a vida de Mason guie o filme, são as entrelinhas de sua vivência que dão vivacidade às tramas.

A vida de Mason poderia ser mostrada de uma forma mais simples e resumida, utilizando vários atores para que as filmagens não demorassem tanto, porém as relações sociais que permeiam o protagonista perderiam força. O acaso que nos faz encontrar com pessoas desconhecidas, com o poder desconhecido de mudar nossas vidas em poucas palavras é construído ao longo do crescimento de Mason nestes doze anos.

Essa característica de ter uma história sustentada por frágeis detalhes está presente em todos nós, mas poucas vezes paramos para pensar no que nos estrutura. Por mais que tenhamos sonhos e idealizemos nossos passos, fechar os olhos para os imprevistos seguindo a risca cada meta pode ser mais prejudicial que benéfico.

Neste sentido Olivia ganha destaque no filme. Depois de um início fundamental a mãe passa a ter participações discretas, ainda que importantes, mas quando vemos a trajetória dos filhos, da qual ela não só faz parte como também tem participação ativa, é possível notar como ela superou os imprevistos da vida sem muita noção de como agir, mas com a determinação de quem não quer abrir mão de poder olhar para trás e notar que fez seu melhor.

Particularmente me decepcionei com seu último diálogo com Mason – sem detalhar o conteúdo para não dar spoiler – ainda assim, nada que comprometa a produção inusitada de uma filmagem de doze anos, rica em relações complexas, que expõe qualidades e defeitos de pessoas que vivem a vida em um constante improviso.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom)

Com este filme o diretor Kim Ki-duk nos apresenta uma alternativa à cultura ocidental que prevalece nos longas que estamos habituados a assistir. O drama conta com partes de humor que quebram a tensão e não impedem nossa reflexão sobre alguns pontos.

A base do enredo é uma cabana isolada entre as montanhas, no centro de um lago, onde vivem um velho monge (Yeong-su Oh) e seu aprendiz (Ki-duk Kim). O cenário deslumbrante, característica marcante de vários filmes orientais, ganha destaque com a pouca, porém destacada, intervenção do homem na natureza.

Muitos elementos da cultura e religião local permeiam a vida dos dois monges, cujos hábitos os mantêm em grande harmonia com a natureza. Mesmo sem ter grande familiaridade com os costumes, vemos que o culto à divindade não é parte das atividades diárias, mas uma prática constante e indissociável do cotidiano, marcando presença de forma contínua na vida de ambos, desde a infância até a velhice.

Como elo entre as fases da vida, unindo homem e natureza, temos as estações do ano, bem distintas naquela região. Associando as características das estações com as fases da vida – sobretudo do jovem monge – o diretor consegue deixar bem clara a ideia de ciclos que se alternam, dos quais fazemos parte.

Na primavera, como sinônimo de florescência, vemos a infância do jovem monge, brincando e descobrindo detalhes da vida como qualquer criança, mas distante de qualquer contato com a sociedade. Sua única referência é o velho sábio, que passa conhecimento de forma prática e por vezes bastante dura.

Corroborando a ideia do verão como ápice da vida, uma fase posterior às flores desabrochadas, na qual o calor aquece e também estimula, é de se esperar que a vida do monge ganhe elementos que traduzam esse esplendor associado ao verão. Isso é expresso através de uma mãe que, devido à sabedoria do velho monge, traz sua filha (Yeo-jin Há) para ser curada de uma apatia que nossa cultura nos induz a diagnosticar como depressão.

O roteiro se desenvolve de forma previsível. É evidente que haverá algum tipo de atração entre os dois jovens. O monge e a nova hóspede têm mais ou menos a mesma idade e apesar de não sabermos nada sobre a vida dela, em relação ao jovem é provável que tenha sido seu primeiro contato com o sexo oposto.

Essa previsibilidade prática não impede a riqueza das metáforas e de análises possíveis. O velho sábio tem seus hábitos bastante rígidos; é curiosa a presença de portas, cuja passagem é respeitada mesmo com a ausência de paredes, que do ponto de vista prático inutiliza a existência. A presença da moça é o que desestabiliza o dia-a-dia dos monges, fazendo com que pela primeira vez o mais novo passe a questionar e desrespeitar as tradições que ele nunca havia pensado em mudar, desequilibrando assim a relação com o tradicionalismo de seu mestre.

Entre as poucas falas do filme, destaca-se uma afirmação do velho monge: "A luxúria desperta o desejo de possuir. E isso desperta a vontade de matar." Pensando no estilo de vida que temos não nos resta alternativa senão acreditar que há formas distintas de lidar com a posse e com as vontades, embora não faltem exemplos que corroborem a afirmação.

As ações do filme se restringem à cabana isolada, com a interação de poucos personagens, ou seja, é provável que o jovem monge tenha recebido ensinamentos valiosos de sem mestre, mas não foi socializado. Alguns de nossos valores e sentimentos são tão enraizados que não percebemos tê-los devido à proximidade com a vida em sociedade, da qual absorvemos características.

Geralmente nos deparamos com uma interpretação romantizada de um velho sábio que vive à margem da sociedade, mas com muita sutileza o filme nos mostra que esse isolamento exacerbado pode ser trágico quando de alguma forma esse contato social precisa existir. Na melhor das hipóteses o jovem monge ainda não atingiu um estágio suficiente de maturidade para lidar com os fatos inusitados provenientes de contatos insólitos.

O simples fato de viver em sociedade não implica em desenvolver certas habilidades, afinal a relação entre luxúria, posse e morte é muito mais frequente do que deveria em qualquer cidade, mas tentar resolver esse determinismo trágico simplesmente se afastando do contato social não parece ser de fato uma solução, mas uma frágil aparência de paz interior.

Mais eficiente seria tirar proveito do conhecimento do velho sábio, aplicando seus ensinamentos para suavizar certos sentimentos e tornar a vida em sociedade menos hostil ao invés de exacerbar a hostilidade por conta do estranhamento que a distância proporciona.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Baraka

Este é um documentário que explora muito bem o recurso da imagem no cinema. O que poderia ser um recurso evidente e até elementar das telas, por vezes acaba sendo negligenciado com uma supervalorização da palavra. Aqui o diretor Ron Fricke trabalha com o extremo oposto ao fazer um filme sem diálogos, transmitindo tudo através de imagens bem articuladas e trilha sonora impecável.

Sem dúvida essa técnica torna a obra muito mais abstrata, com sentido amplo a ser definido por cada pessoa que a assiste. Isso não chega a ser um problema, afinal é um filme que ao longo de toda sua extensão provoca reflexões e lança questionamentos implícitos em suas sequências.

Uma das leituras possíveis do conteúdo é a apresentação de uma ‘breve história do tempo’, bem menos exata que a obra do físico Stephen Hawking. Das imagens iniciais, mesclando locais paradisíacos com a calma proporcionada por locais sagrados, somos apresentados a várias religiões.

Não é por acaso que as principais religiões do mundo são milenares. Uma de suas funções é exatamente o conhecimento, uma tentativa de explicar as dúvidas existenciais que acompanham os homens. De um simples relâmpago à origem da vida, tudo é atribuído a uma divindade, antes do desenvolvimento de conhecimentos mais científicos.

Intercalando planos, Ron Fricke nos mostra grandes cidades, sempre caóticas, poços de petróleo queimando e as religiões de uma forma bem mais contemporânea, com menos tranquilidade e mais caos. O caminho entre esses dois extremos não é curto, envolve séculos, milênios e coloca-lo no espaço de um longa metragem sem diálogos deve ser uma tarefa baseada em escolher o que não colocar.

Além da religião, ou mesmo junto com ela, a arte marca presença ao longo de nossa história. Desde as pinturas rupestres mais rudimentares, da arte de pintar o rosto dos indígenas e aborígenes, até as formas atuais, expressas também como arquitetura, música e tudo mais.

Talvez a síntese dos conteúdos dispersos exibidos sejam as grandes cidades. Natureza, arte, religião, exploração de recursos, exploração de pessoas. Assim como cada um de seus habitantes, as cidades despertam, cumprem suas jornadas – muitas vezes tão duras – e dormem. Têm sido assim há séculos e é pouco provável que grandes mudanças ocorram em pouco tempo.

O passo seguinte das sequências não é exatamente animador. Em contraposição a tantas belezas e imagens tranquilizadoras, as cidades também concentram ruínas, fome, destruição e o acúmulo de uma história rica em arte, mas também em guerras. O povo sofrido, por vezes esquálido, pouco tem em comum com exuberância dos ‘selvagens’ em harmonia com a natureza que os cerca.

Se pensarmos que um documentário como este tem material para manter a linha de belezas e logros, poderíamos concluir que há um pessimismo ao indicar o declínio a partir das grandes cidades, porém infelizmente há um desfecho coerente ao escancarar a desigualdade e a má distribuição de qualquer tipo de recurso, do mais simples e básico ao mais sofisticado e dispensável.

Recentemente uma pesquisa deu corpo a essa desigualdade. Foi divulgado que as 85 maiores fortunas mundiais equivalem à renda da metade da população. Em um mundo em que a desigualdade se esconde sob a égide da meritocracia, vemos que o conteúdo apresentado no filme está restrito nas mãos de pouquíssimas pessoas, cuja fortuna não pode ser sustentada sem que muitos passem fome.

Há quem defenda este absurdo alegando o investimento e geração de emprego por parte de quem tem recursos para investir, entretanto é essa ilusão que mantem um sistema tão frágil. Assim como a renda é desproporcional, o consumo dos indivíduos é igualmente concentrado, fazendo com que a pequena parcela mais rica também demande recursos que não são compatíveis com a oferta do planeta.

Mais do que um desequilíbrio econômico, que já não é pouca coisa, o documentário nos mostra um desequilíbrio ambiental insustentável. As mazelas das cidades não ficam restritas ao seu perímetro urbano, mas espalham-se extraindo riquezas em suas mais diversas formas.

O que fazer com uma sociedade que a partir de pequenas tribos dominou o planeta a ponto de coloca-lo em estado de alerta é uma questão difícil de ser respondida, sobretudo em apenas um filme. Porém a história não nos mostra apenas o passado, ela nos ensina, nos alerta e pode oferecer respostas. Livre de uma proposta conclusiva, Baraka propõe reflexão. Será que o habitual é mesmo o melhor ou único caminho?


terça-feira, 18 de novembro de 2014

O lobo atrás da porta

Ao longo do século XX as relações sociais tiveram algumas mudanças consideráveis, muitas delas devido ao crescimento do movimento feminista, que passou a combater as desigualdades de gênero e a lutar por direitos básicos que as mulheres, até então, não tinham.

Hoje é evidente que as mudanças em fluxo, que dão notoriedade para as vontades femininas, muito maiores que a simples vida para a satisfação de um homem, são extremamente benéficas, porém valores retrógrados ainda são fortes e têm o poder de implicar em verdadeiras tragédias.

Essa transição fica nas entrelinhas do longa do diretor Fernando Coimbra. A relação extraconjugal que forma o triângulo amoroso entre os protagonistas é apenas um verniz sobre o ideal de família perfeita e sobre o machismo que dá ao homem privilégios de gênero.

As traições devem ser tão antigas quando a ideia de monogamia. O escândalo de uma relação entre amantes marcam a história quando, frequentemente, os casos de infidelidade são protagonizados por pessoas famosas, ou cujas consequências extrapolam os limites familiares, tendo efeito sobre um grupo maior de pessoas.

O que marca a diferença do que vivemos hoje é que há um século as traições masculinas eram mais frequentes e mais aceitas pela sociedade, enquanto a mulher que protagonizasse uma traição seria socialmente censurada, com sua pena moral extremamente agravada se o relacionamento culminasse em uma gravidez indesejada.

Estamos longe de uma igualdade plena de direitos. Ainda existe certa complacência com a infidelidade masculina e o peso da gravidez indesejada recai quase que totalmente sobre a mulher, porém é inegável que vários fatores, como a inserção da mulher no mercado de trabalho e maior escolaridade das mesmas, aproximaram os gêneros e uma mãe solteira hoje não carrega um peso moral tão grande quanto no início do século passado.

É nessa realidade que se encaixa a personagem Rosa (Leandra Leal). Ela não se importa em manter uma relação com Bernardo (Milhem Cortaz) mesmo depois de descobrir que ele é casado e tem uma filha pequena. Por outro lado mantem o ideal de um relacionamento romântico, sonhando com o dia em que o amante irá abandonar a família para ficar somente com ela.

Bernardo tem o comportamento padrão dessas relações, ou seja, utiliza os benefícios que os valores machistas ainda vigentes proporcionam para manter os dois relacionamentos, inventando todas as desculpas necessárias enquanto pode.

Ainda que este cenário seja cada vez mais comum, o desenrolar dessas histórias sempre rendem conclusões problemáticas, quando não trágicas. Valores conflitantes fazem com que boa parte da sociedade ainda considere obrigatório o conceito de casamento eterno, fiel e preponderante para a família padrão, composta por um casal fiel e seus filhos.

Mesmo que haja uma tolerância muito maior aos filhos anteriores ao matrimônio, é gritante o despreparo de casais e antigos casais para lidar com uma nova realidade familiar. Poderíamos esperar que com a assimilação de novos valores e até mesmo de desenvolvimentos morais, as pessoas demonstrassem maturidade diante de impasses.

Já não toleramos – felizmente – que os pais negociem o casamento dos filhos visando aglomerações econômicas, tão pouco que casais continuem juntos mesmo sem afinidade afetiva para manter a tradição de um casamento eterno. Mas ainda não é tão chocante o jogo psicológico que utiliza crianças como reféns.

Se tivermos a pretensão de melhorarmos socialmente deveríamos notar que tão inconcebível quanto um casamento escolhido pelos pais é o fato de tentar manipular os filhos ou enteados de alguma forma para atingir os adultos envolvidos.

Assistindo ao filme, na qualidade de expectadores oniscientes, a interação dos protagonistas pode parecer insana, o problema é que com pequenas nuances de comportamento e com desfecho distinto o enredo do filme é muito mais comum do que deveria.

Não se trata de tolerar qualquer comportamento de forma impassível e isenta de sentimentos, mas sim de compreender quando os sonhos antes compartilhados já não seguem por caminhos paralelos, sabendo respeitar o momento de se afastar.

O filme coloca a cartada final – e insana – nas mãos de Rosa, mas cabe ressaltar que é o tipo de história em que a responsabilidade não pode ser carregada por somente uma das partes. Bernardo, a exemplo de tantos personagens semelhantes na vida real, passa todo o tempo agindo de forma egoísta e irresponsável. Isso não justifica nem autoriza o comportamento irresponsável das demais pessoas envolvidas, mas instiga reações desproporcionais.

Ainda que tenhamos melhorado ao longo do último século, ainda temos muito que aprender em termos de relacionamentos que começam e terminam.


terça-feira, 11 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite (Tusen Ganger God Natt)

Encontrar bons filmes não chega a ser uma tarefa difícil, sobretudo entre os estrelados por Juliette Binoche. O mérito deste longa do diretor Erik Poppe é unir em uma história simples uma série de problemas que nos proporcionam um turbilhão de sentimentos.

Por um lado a protagonista Rebecca (Juliette Binoche) poderia ser o exemplo máximo de mulher bem sucedida. Com uma boa situação econômica, uma vida confortável na Irlanda e uma família que poderia estrelar um comercial de margarina. Por outro lado Rebecca trabalha como fotógrafa em zonas de conflito e parece que a tensão e instabilidade dessas zonas atingem em cheio os pilares de sua vida.

Ao mesmo tempo em que o diretor nos deixa extasiados com a fotografia impecável do filme, chocados com a preparação de um atentado a bomba logo no início e emocionados com a dedicação de Rebecca, que arrisca a própria vida por ver em seu trabalho uma ferramenta de denúncia, ainda tempos que lidar com conflitos familiares egoístas e até certo ponto imaturos.

É compreensível que seu marido, Marcus (Nikolaj Coster-Waldau), preocupe-se com a segurança e as filhas sintam medo com as viagens da mãe, principalmente a mais velha, entretanto a reação de Marcus é sempre conservadora, provinciana e incompatível com a personalidade corajosa de Rebecca.

Em nosso cotidiano é muito mais comum encontrar pessoas que se assemelham a Marcus, ou seja, sabemos ao menos superficialmente das mazelas e tragédias que assolam certas partes do mundo – não necessariamente na África ou Oriente Médio, pode ser no bairro ao lado, dependendo da cidade –, porém dificilmente estamos dispostos a dar um passo além da indignação tímida e passiva.

Os temores da família em relação à vida da fotógrafa são toleráveis. Diante de uma situação de risco o medo é natural e benéfico, pois impõe limites que podem nos salvar. O problema é que o mesmo medo que nos salva, muitas vezes nos castra, nos coíbe e nos empareda em um cotidiano minúsculo, onde permanecemos trancafiados, habituados com um horizonte limitado e pobre.

Rebecca é o exemplo extremo que ilustra essa ideia. Por que uma pessoa com tantas possibilidades de conforto e tranquilidade enfrenta a objeção das pessoas que ela mais ama para se embrenhar em situações perigosas na tentativa, sem nenhuma garantia de sucesso, de salvar pessoas que ela nem conhece?

Não fosse nosso egoísmo e individualismo exacerbados a questão mais pertinente seria o que faz alguém se acomodar ao olhar pela janela e ver tantos absurdos. Na Irlanda ainda é possível que a sociedade seja mais homogênea e os choques de realidade não sejam tão explícitos, fazendo com que Rebecca buscasse nos conflitos da África e Oriente o material de suas inquietações. Já nas grandes cidades brasileiras a fotógrafa poderia cruzar poucos quarteirões para sair de sua confortável e luxuosa casa e chegar em algum lugar marcado por conflitos, que clama por serviços e poderia fornecer muito material de denúncia.

Independente do país em que morasse, o fator comum seria a reação de surpresa da maioria das pessoas, esperando que ela utilizasse seu talento como fotógrafa para temas considerados mais seguros. Colocam os locais de conflito como perigosos – e muitos de fato são – mas não consideram a hipótese do abandono por parte do restante da sociedade como um agravante para a violência e para a baixa qualidade de vida local.

Diante do abismo social entre as classes distintas, é muito conveniente que as classes mais altas se eximam da culpa, que de fato não é individual mas coletiva. Claro, não é a proposta do filme estimular que todos peguem uma máquina fotográfica e corram para zonas de conflito, ele apenas escancara uma clivagem desnecessária que se estabelece na sociedade por parte daqueles que não somente se contentam em reduzir sua existência a um local confortável, como ainda querem coibir a ação dos que estão dispostos a correr riscos por uma mudança indispensável.

Fechamos os olhos para a existência de oprimidos, alimentamos medos que muitas vezes são desnecessários ou exagerados e com isso nos fechamos em um mundo pequeno, o menor possível, esquecendo que fronteiras não existem naturalmente. A manutenção desta realidade é bem pior para aqueles que sofrem com a violência diária, porém cabe destacar que os adeptos da postura conservadora de Marcus também são atingidos.

Seria exagero dizer que essas pessoas são vítimas, mas o preço que pagam é ter uma vida limitada pelo medo, pela alienação que absorvem de geração em geração, fazendo o possível para coibir quem tenta fugir pelo menos um pouco da desigualdade insana que nos cerca.


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Preso na Escuridão (Abre Los Ojos)

O diretor Alejandro Amenábar não chegou a brilhar diretamente com seu longa metragem, mas a obra deu origem à refilmagem “Vanilla Sky”, dirigido por Cameron Crowe. Sem querer diminuir a obra de Crowe, seu trabalho foi muito mais fácil; pegar uma boa trama, analisar os pontos falhos, reencenar com grandes astros como Tom Cruise e Cameron dias, além de Penélope Cruz, presente em ambos, e tudo isso amparado por um orçamento milionário.

Amenábar tem o mérito de lançar a obra original em um país com muito menos tradição que a badalada Hollywood e encantar por brincar com a ideia de espaço e de tempo através de uma aparentemente simples história de amor.

A princípio o enredo é o mesmo de qualquer novela da Globo. O galã César (Eduardo Noriega), rico e bem sucedido, se encanta pela bela Sofia (Penélope Cruz). Ao aceitar uma carona de Nuria (Najwa Nimri), a quem até então estava tentando se desvencilhar, César se envolve em um acidente, no qual a moça morre e ele tem seu rosto completamente desfigurado.

Poderíamos imaginar que a história se desenvolveria com a dificuldade de um personagem como César lidar com uma condição inusitada, em que seu dinheiro não pode resolver um problema. De um lado o narcisismo arrogante de quem sempre teve tudo e está habituado a se tomar como modelo a ser seguido, de outro o discurso vazio e pouco eficaz que tentaria diminuir a importância das cicatrizes, valorizando o conteúdo.

Diante de uma situação semelhante o que resta às pessoas próximas é realmente tentar dissociar a pessoa de sua aparência. Teoricamente está correto, pois nenhum fator externo deveria ser tão preponderante diante do que somos. Já na prática esbarramos em dois problemas:

Primeiro que pelo pouco que vemos César não chega a ser um exemplo de conteúdo e mesmo sendo um exímio desenhista, se destaca principalmente pela aparência e bens materiais. Além disso, a tentativa de dissociar a essência da aparência falha por ser falsa.

Não somos indivíduos que têm uma aparência, separada do ‘eu’, como uma roupa natural que nos veste, protege e identifica. O que é aparente aos que nos veem é indissociável do que somos, desfazendo assim qualquer hierarquia do que vem a ser mais importante. Erramos ao tentar classificar pessoas que preferem cuidar do corpo e pessoas que preferem cuidar da mente – ou alma, espírito, consciência; como queiram. De uma forma ou de outra são cuidados dispendidos ao indivíduo, indissociável.

O filme dá algumas pinceladas em pessoas que optam por congelar os corpos depois de mortas, na tentativa de voltarem à vida quando houver tecnologia para ressuscitar os corpos. Walt Disney deve ser o mais famoso dos corpos nessa situação. Somos levados a pensar que o rico e indignado César vai recorrer a essa técnica para voltar à vida quando as técnicas de cirurgia plástica forem eficientes a ponto de poderem restaurar seu rosto.

Aos poucos as peças desconexas e confusas vão ganhando coerência e sentido. Sem detalhar o enredo daqui para frente – para evitar surpresas e não influenciar na impressão de cada um – o que vemos é uma realidade paralela muito intrigante e simbólica.

Até onde se sabe o desfecho é pura ficção, mas forma uma metáfora muito interessante sobre as impressões que temos sobre nossa vida e nosso passado. À certeza de que nossa memória tende a nos guiar, por vezes é atirada uma realidade conflitante com provas suficientes para nos deixar sem argumentos.

Para Walter Benjamin a memória é construída a cada vez que nos lembramos de determinado fato. Resumindo ao extremo, é como se o que chamamos de verdade fosse uma somatória de fatos que ocorreram e pequenas distorções que fazemos a cada vez que pensamos em tais fatos.

A confusão proposital da narrativa do filme, misturando sonho, realidade, presente, passado, etc., é uma forma de levar para as telas a bagunça de sentimentos e lembrança que sintetizamos em uma espécie de ‘versão oficial’, a qual chamamos de verdade.

Lidar com mudanças bruscas que nos obrigam a bater de frente com o que acreditávamos não é fácil. Quando se trata de reformular toda a vida, como é o caso de César, não basta tirar uma roupa e vestir outra mais adequada à ocasião. Conforme já citado, essa ‘roupa’ não existe separadamente, ela é parte intrínseca do indivíduo, que deve, portanto, se reconstruir por inteiro.


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Junho

Grandes manifestações políticas no Brasil são raras. As razões para isso são diversas, por exemplo, pensando em nossa história recente passamos vinte anos em um regime militar, que não só proibia manifestações como punia até com a morte aqueles que ousavam expressar descontentamento ou divergência.

O sucateamento da educação, iniciado na ditadura e mantido com muito afinco depois da redemocratização, forma gerações de cidadãos que acreditam poder restringir a democracia ao ato de votar a cada dois anos. O estranhamento à política é tão gritante que a sociedade aceita o dito popular de que “política não se discute”, mesmo sendo a política uma discussão em sua essência.

Por isso e muito mais o mês de junho de 2013 merece tanto destaque em nossa história. Não é este documentário do diretor João Wainer que esgotará o tema, muito menos este texto, porém o filme traz questões pertinentes que nos permitem algumas conclusões após mais de um ano de protestos.

Em um país tão carente em qualquer área, não faltam motivos para que a população proteste, porém o que deu início às mobilizações foi o aumento de passagens na cidade de São Paulo. Como sempre acontece depois de um aumento, o MPL (Movimento Passe Livre) começou a organizar passeatas, bem menos numerosas do que o auge dos protestos, mas representativa o suficiente para irritar boa parte da população e inflamar o discurso da mídia tradicional, que exigia um basta por parte da PM.

Até o dia 13 de junho de 2013 não havia nada de novo. Parecia que mais uma vez as manifestações iriam contar com cada vez menos participantes, até que o aumento de passagem fosse assimilado e aceito. Mas naquela quinta-feira a PM exagerou na dose do abuso de poder. Mesmo uma sociedade complacente com a violência policial cotidiana ficou indignada com tamanha desproporção de força, tomando as ruas em massa no ato seguinte.

A grande mídia não gosta de manifestações populares. São poucas as famílias que controlam os meios de comunicação no Brasil e, como todo oligopólio, há muito cuidado para que essa hegemonia não seja quebrada. Não por acaso a Rede Globo tentou noticiar o início das Diretas Já como uma festa do dia do trabalhador. Desta vez não foi diferente. De Arnaldo Jabor dizendo que errou ao desqualificar os manifestantes ao Datena tendo que mudar o discurso ao vivo, a mídia a princípio mudou a crítica e passou a dar razão à demanda popular.

Enquanto a pauta era restrita à redução das passagens, era bem mais fácil manter uma grande quantidade de pessoas unidas. Porém depois que as tarifas voltaram ao valor anterior (ainda alto) a despolitização da população tornou-se gritante. O apoio genérico às manifestações era quase unânime, mas é evidente que as demandas das classes mais altas são diferentes e por vezes diametralmente opostas às das classes mais baixas.

É evidente que o país precisa melhorar a saúde pública, melhorar a educação – pública e particular, que têm problemas distintos, mas graves – melhorar a segurança – até para que a PM pare de agir como rottweilers treinados para matar. O problema é que quando o povo toma as ruas exigindo a redução das passagens, o governo pode atender de uma hora para outra, enquanto ir para as ruas exigindo educação de qualidade não pode ser resolvido com uma canetada.

Pensando em um cenário ideal, em que toda a verba necessária para saúde ou educação fosse empregada de forma competente, sem desvios e com todo o profissionalismo, os resultados apareceriam depois de vários anos. Foi nessa brecha criada pela despolitização que a mídia voltou a ter poder sobre o povo.

Há suspeitas de policiais à paisana infiltrados em protestos e instigando ações violentas. Como nada foi provado, é prudente manter o foco no que é inegável. O mesmo Jabor que teve que engolir o orgulho e pedir desculpas por criticar os manifestantes conseguiu emplacar uma revolta contra a Pec 37, ainda que poucos soubessem a fundo seu significado e implicações.

O documentário de João Wainer não é conclusivo. Ele visa exibir os fatos entrevistando jornalistas, cientistas políticos, etc., sem entrar no campo das hipóteses de desdobramento dos atos. Apesar disso, entre tantas análises possíveis podemos pensar em alguns números posteriores aos fatos.

Até junho tanto a presidenta Dilma Rousseff quando o governador Geraldo Alckmin tinham altíssima taxa de aprovação, ambas incompatíveis com a realidade de cada governo. Hoje, a pouco mais de uma semana do segundo turno das eleições, Dilma pode até ser reeleita, mas será em uma eleição extremamente disputada, enquanto Alckmin, a quem a PM que deu início às grandes manifestações com sua onda de abuso de autoridade é subordinada, já foi reeleito com uma vantagem insana para o governo do estado.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Miss Violence

Uma das principais referências para a cultura ocidental, mesmo tendo tido seu ápice há mais de dois milênios, a Grécia nunca foi um grande polo de cinema. Ainda assim o diretor Alexandro Avranas lançou essa grande obra, com o cotidiano de uma família grega que infelizmente pode se repetir em qualquer país.

Não é um filme dos mais fáceis, tão pouco agradáveis; ainda assim é indispensável, pois o cinema não serve apenas para entreter. Uma das tantas funções de um filme é exatamente retratar fatos que a realidade costuma maquiar.

Sem nenhum spoiler por aqui, já que um grande atrativo do filme é a aura de mistério que paira sobre a família aparentemente comum, vemos no trailer a tão inquietante primeira cena. Durante a festa de aniversário de 11 anos, restrita aos avós, mãe e irmãos, Aggeliki (Chloe Bolota) mantém as feições impassíveis, esboçando um leve sorriso apenas alguns segundos antes de pular da sacada.

Crianças têm o mundo inteiro a ser descoberto, tanto de forma física quanto sensorial. Se essa exploração de tudo que as cerca, juntamente com os sentimentos que transbordam dentro de cada uma, não é feita de forma mágica, algo está errado. O desânimo prolongado na infância indica problemas. Nem a condição de vida chega a influenciar muito, pois basta prestarmos um pouco de atenção em crianças de rua – aquelas que costumamos fingir que não existem – para ver que entre tantas dificuldades elas arrumam brechas para brincar e se divertir com o cotidiano.

A naturalidade com que os familiares, inclusive as crianças, lidam com a morte da menina é evidentemente suspeita. Tão suspeita quanto a apatia das crianças durante a festa. A versão oficial dada aos assistentes sociais é a de que a queda foi acidental e que a família estava fazendo o possível para que tudo voltasse ao normal. O problema é que pelos poucos elementos que temos do passado, notamos que o dia-a-dia da família não parecia tão “normal” assim.

Para quem olha de fora não há nada de errado com a família do filme. O patriarca (Themis Panou) busca um emprego onde aparentemente ganhará pouco, mas nada que destoe dos que estão próximos, já que o país todo está em crise econômica, com altas taxas de desemprego e consequentemente baixos salários.

Dentro de uma situação econômica que por si já nivela a sociedade em um patamar insatisfatório, e mais baixo do que a média que as pessoas estavam habituadas, o tempo poderia fazer com que a nova realidade fosse assimilada, sobretudo pelas crianças, ainda sem responsabilidades econômicas diretas.

É o que ocorre no campo particular que pode agravar os problemas individuais a níveis insuportáveis, por isso são tão difíceis de serem solucionados. É fácil darmos uma volta pelo quarteirão e afirmar, como tanto vemos, sobretudo em época eleitoral, que devemos preservar a família tradicional, como se esta fosse garantia de que tudo correrá bem no plano individual.

De fato, muitas famílias tradicionais têm as relações entre seus membros desenvolvidas de forma satisfatória e, se por um lado enfrentam problemas e divergências, por outro conseguem solucionar seus impasses sem grandes traumas entre os envolvidos. O problema é que essas famílias não precisam de ajuda ou defesa externa, como prometem os que insistem em atuar como defensores da vida privada.

As intervenções que são de fato necessárias, como seriam no caso da história do filme, passam despercebidas, ocultadas pelo verniz de família ideal, que é comprado com a maior facilidade. A particularidade de um enredo cinematográfico infelizmente se repete, com variações que não chegam a aliviar o cerne do problema, em muitas famílias aparentemente felizes.

Com um pouco mais de abstração a história do filme até pode ser interpretada como uma metáfora da situação econômica da Grécia. O Estado como uma família feliz e independente, que esconde dos olhos dos vizinhos os absurdos cometidos da porta para dentro. Tudo caminha relativamente bem, até que um incidente expõe problemas e fragilidades, desestruturando a frágil aparência de felicidade.

Em comum, tanto a interpretação metafórica quanto literal podem indicar que certos problemas podem até ser resolvidos ou interrompidos com o tempo, mas os traumas individuais tolerados por um longo período deixam cicatrizes bem mais profundas do que uma aparente normalidade deixa transparecer.


terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Vestido

Para este longa o diretor Paulo Thiago partiu de uma adaptação literária um pouco inusitada, pois a obra de origem não é um romance, mas o poema ‘Caso do Vestido’, de Carlos Drummond de Andrade. É um detalhe relevante, já que os romances adaptados são inevitavelmente simplificados para serem adequados ao formato cinematográfico. Neste caso a história teve que ser desenvolvida, dando detalhes à trama e aos personagens, que estão ausentes no poema. A comparação sobre qual seria melhor é infundada, já que são linguagens muito distintas, mas o filme proporciona uma história interessante.

Frequentemente as roupas ganham um status simbólico que ultrapassam seu valor de utilidade, por isso os vestidos de noiva costumam ser guardados por toda a vida, por vezes passando de mãe para filha. Aqui o vestido em questão não é de casamento, mas também guarda lembranças de uma história.

Quando Ângela (Ana Beatriz Nogueira) ganhou o tal vestido de seu marido Ulisses (Leonardo Vieira) ela parecia viver seu conto de fadas particular. Casada e com duas filhas, dedicava a vida a cuidar do marido e da casa em uma pequena cidade do interior.

Para compreender o contexto da história e seu desenvolvimento, é necessário lembrar que essa família nuclear era praticamente uma regra social vigente no país até meados do século XX. O destaque do poema de Carlos Drummond de Andrade é exatamente evidenciar o casamento em crise, a separação e abalos na vida familiar, que hoje não chegam a ganhar tanto destaque, mas era uma novidade na sociedade, que a corrente literária modernista exteriorizava em suas obras.

No filme esse elemento inovador é a personagem Bárbara (Gabriela Duarte), que se aproxima da família de forma dúbia, pois por um lado faz amizade com a angelical Ângela, por outro questiona seus valores morais e a suposta felicidade inabalável que o modelo de esposa ideal defendia. Fica evidente desde o início que Ulisses terá uma atração pela moça que vem da capital e isso irá abalar seu casamento.

A sociedade pode ter mudado desde a época retratada, porém, como em uma fase de transição, seguimos entre uma postura mais liberal, com a mulher se distanciando da vida exclusiva de dona-de-casa, e a tradição de valores morais, que desde aquela época eram mantidos muito mais por força do que por vontade.

O problema dessa transição social – que é benéfica e necessária, por dar à mulher o direito de ter escolhas ao invés de uma vida pré-determinada – é que a nova realidade é mais complexa, escancarando problemas que sempre existiram, mas costumavam ser mais discretos e socialmente aceitos, como a infidelidade masculina. A incoerência de valorizar a família tradicional e nuclear para a mulher e tolerar a infidelidade masculina passou a ser questionada, juntamente com o aumento dos pedidos de divórcio.

Pode ser um alívio não ser mais obrigada a tolerar traições, o que não torna mais fácil ver o sonho de uma família dita perfeita desfeito. Além do trauma pessoal e do choque emocional de uma crise no relacionamento, Ângela simboliza mulheres que na época não tinham referências sociais desta situação. Ainda que o filme não retrate a mesma fase histórica em que o poema foi escrito, os cenários fazem referências ao passado ao longo de todo o filme.

Através de Ulisses podemos ver uma transição mais suave, já que em uma sociedade que permanece machista, o homem segue com certas facilidades. O caso não chega a ser uma dicotomia na qual buscamos quem está certo ou quem está errado, é apenas cômodo aos homens culpar o casamento pela frustração de uma vida que supostamente seria de grandes aventuras e usar isso como justificativa para trocar de esposa.

Com uma transição social longe de ser consolidada, ainda vemos a história do filme com influências tanto de visões mais tradicionais quanto de comportamentos modernos. Mesmo assim, é inegável que a vida de um casal é desenvolvida em conjunto, com responsabilidades de erros e acertos compartilhadas. Da mesma forma que a desculpa masculina de uma vida grandiosa frustrada pelo casamento torna-se insustentável depois do divórcio, já que a vida do marido segue entediante; a felicidade inabalável de uma família padrão também não se sustenta sozinha.

Não é a toa que Carlos Drummond de Andrade é uma referência na literatura. Encaixar os vários aspectos da vida social em versos de um poema é uma tarefa para poucos, que aqui foi transposta para as telas repaginando características que continuam influenciando em nossa sociedade.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Lilet never happened‏

O cinema de cada país costuma ter seu próprio estilo. A cultura local acaba influenciando fortemente nos temas e roteiros. Isso deixa ainda mais curioso o fato de um filme rodado do outro lado do mundo ter um enredo tão globalizado e familiar para os brasileiros. Este longa, do diretor Jacco Groen, é um ótimo exemplo.

Na periferia de Manila, capital das Filipinas, a protagonista Lilet (Sandy Talag) é uma menina de doze anos. Por vezes se apresenta como Branca de Neve e seu comportamento também alterna entre o rude e agressivo de uma realidade cruel e o sonho da criança frágil, em busca de proteção.

A situação econômica precária da família empurra as crianças para a rua, os pais, imersos em problemas, não apenas negligenciam a educação dos filhos como em casos extremos – como o de Lilet – exploram as crianças. Primeiro com a venda de produtos nos semáforos, depois, quando situação se agrava, recorrem ao mercado sexual, sustentado pelo fetiche de homens insanos o suficiente para manter a prostituição infantil.

Apesar das crianças terem um futuro quase pré-determinado por essas condições, o futuro de meninos e meninas começa a ser separado. Enquanto elas aprendem desde cedo os recursos que seus corpos têm a oferecer, eles permanecem nas ruas e logo percebem que há atividades mais rentáveis do que a venda de quinquilharias. Atividades ilegais, mas como cobrar cidadania de alguém que não tem os mínimos direitos garantidos?

Socialmente a reação diante dos problemas de uma infância destruída também é diferente. O caráter de vítima das meninas raramente é negado, porém a reação não vai muito além de uma indignação distante, sem nada de concreto. Já em relação aos meninos seduzidos pelo crime a indignação ultrapassa completamente a tentativa de compreensão.

A violência contra meninas que se prostituem é um crime inaceitável, porém tem como principal vítima as próprias meninas. É possível fechar os olhos e fingir que nada acontece, ou que são casos distantes. Já a violência sofrida pelos meninos se reflete na própria sociedade, que sentirá os efeitos diretos através dos furtos cometidos.

Diante deste cenário a reação mais comum é a fúria voltada contra os menores, incriminados por não cumprirem um dever, ignorando as condições críticas em que nasceram e cresceram.

No filme esse estereótipo é representado por Nonoy (Timothy Mabalot), que nutre uma paixão adolescente por Lilet. Isso divide o jovem entre a vida nas ruas, estimulada pela jovem, e o abrigo criado por Claire (Johanna ter Steege), visando oferecer o mínimo de cidadania que as crianças precisam.

Por mais bem intencionado que seja o trabalho de pessoas como Claire, o caminho não é nada fácil. Além de lutar contra a simbologia de uma pessoa estrangeira se aproximando das crianças locais, muitas vezes chegando de países responsáveis pela exploração que causa tantas mazelas sociais, é necessário lutar também contra a sedutora liberdade oferecida pelas ruas.

Em uma escola tradicional, estruturada, em que os alunos não precisam lidar em casa com problemas financeiros, já não é fácil convencer os estudantes de que o ensino é necessário e benéfico, sendo que muitos frequentam as aulas diariamente simplesmente por obrigação. Imaginar que a importância do estudo seja encarada como elementar pelas crianças, sobretudo em um local onde fará pouca diferença no futuro, é uma utopia.

Conforme já mencionado, esse é um filme que com poucas alterações poderia ser filmado em vários outros países, aparentemente distintos. O que acaba unindo esses países é a necessidade de manter boa parte da população marginalizada, com uma esperança que nunca será concretizada, mas costuma ser suficiente para manter a paz social, mesmo diante de um abismo econômico.

A solução para os problemas apontados no filme é complexa, pois extrapola o caso individual de Lilet. Não basta convencer uma das crianças a tentar mudar devida, até porque a mudança não tem como ser garantida. Os problemas sociais, que muitas vezes não passam de reflexos bem indiretos de uma estrutura social comprometida, devem ser combatidos em sua base.

Preocupar-se com furtos de menores infratores serve apenas para tirar o foco de verdadeiros problemas, que não são combatidos por serem de responsabilidade de pessoas com grande influência econômica e política. Enquanto houver uma concentração de renda que exija um contingente de mazelas sustentando uma pequena parcela da sociedade, o roteiro deste filme seguirá verídico e universalizado.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Pedra da Paciência (Syngué sabour)

A psicanálise, em linhas bem gerais, estimula que a pessoa analisada fale sobre sua própria vida e aos poucos pequenos detalhes encaixados acabam revelando fatos de seu inconsciente, do qual nem a própria pessoa se dava conta.

Claro que para isso o psicoterapeuta deve estar presente, ninguém consegue ‘se analisar’ sem ajuda. Apesar disso, algumas linhas psicanalíticas podem ser notada neste longa do diretor Atiq Rahimi.

Em estado vegetativo após levar um tiro na nuca, um homem afegão (Hamidreza Javdan) passa o dia sob os cuidados da esposa (Golshifteh Farahani). Como se isso não fosse uma situação complicada o suficiente, esses cuidados não são ministrados em um hospital, com profissionalismo, mas no quarto de casa, com uma mísera sonda de soro ligada à boca e um pano húmido para o banho.

Em região constantemente bombardeada e sob o fogo cruzado de milícias afegãs, a esposa vive o dilema de abandonar o marido – pelo qual no fundo não tem grande sentimento afetivo – ou arriscar a própria vida para cuidar dele.

Neste contexto entra em cena a metáfora da pedra da paciência, uma pedra mágica para os persas, que ouve os lamentos de um interlocutor, até que se rompe libertando a pessoa de seus traumas. Ao saber dessa lenda a esposa começa a se aproximar aos poucos do marido e a falar sobre sua própria vida, como se fosse ele sua pedra da paciência.

O machismo em si já é uma expressão da ignorância. Nada de bom pode surgir de um pressuposto de superioridade sem nenhum fundamento. Porém o machismo levado ao extremo, como em regimes mais conservadores que se baseiam em fundamentalismo religioso, como vemos no Afeganistão e como vimos por muito tempo no Brasil de algumas décadas atrás, proporciona algumas cenas tragicômicas, como vemos no filme.

Qualquer animal tem seus mecanismos de defesa. Os humanos também, e com a intervenção da racionalidade. Em uma sociedade em que a mulher segue sendo tratada ora como uma escrava, ora como ferramenta para o marido, é inevitável que estratégias sejam traçadas para que as punições não sejam postas em prática.

Conforme as confissões da afegã são narradas, vemos que ela não almejava nada muito grandioso. Reclamava da falta de contato com o marido, que beijava suas codornas utilizadas em rinhas, mas nunca a esposa; narrava as estratégias utilizadas contra o próprio marido, não por desejo de enganá-lo, mas por necessidade de não ser punida por uma culpa que não era sua; e uma série de eventos inimagináveis para uma sociedade com a nossa, ou seja, ainda muito machista, porém longe do extremismo afegão.

O sentimento da esposa em relação ao marido é bastante ambíguo. Chega a amaldiçoa-lo, mostrando seu ódio, mas após tanto tempo de convivência forçada, ela não abre mão da esperança de que as coisas melhorem, caso ele volte do coma.

Essa complacência pode ser encarada com certo romantismo e esperança feminina, mas há também uma motivação racional. O machismo é sempre muito bem blindado contra reações femininas. A esposa sabe que mulheres que já foram casadas são vistas como um objeto de segunda mão, com pouco ou nenhum valor de mercado. Longe de querer aceitar a vida que levava, também não é uma boa opção assumir o papel de divorciada ou mesmo de mãe de dois filhos sem um pai presente.

Além de um retrato da sociedade afegã vista de dentro, o filme mostra quem ganha com o machismo vigente, ou seja, ninguém. É evidente que as mulheres são as que mais sofrem, tanto física quanto psicologicamente, mas não dá para dizer que os problemas não atingem também os homens.

Sem querer transformar os agressores em vítimas, o homem em coma é o retrato do machista sob as consequências dos próprios atos. Frio a ponto de dispensar mais atenção a uma codorna que à própria família, enganado graças a sua imposição de regras insanas, ferido em uma discussão desnecessária.

Colocado desta forma parece uma situação distante da que vivemos por aqui. De fato superamos algumas ações do machismo, mas enquanto mulheres seguirem sendo agredidas, violentadas, por vezes assassinadas, e com direitos restritos em relação aos dos homens, não podemos nos orgulhar de termos superado o machismo. Ele existe, nos cerca, nos envergonha e se não tomarmos cuidado, nos seduz.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

Leva

O título do longa das diretoras Juliana Vicente e Luiza Marques não vem do verbo levar, mas do substantivo, “ajuntamento de pessoas; recrutamento; grupo, coletivo”, conforme indicado no início da obra. Uma leva de sem-teto que luta pelo direito constitucional à moradia.

Pessoalmente eu cresci ouvindo e acreditando que um grupo de pessoas que ocupa um prédio, ainda que abandonado, comete um crime. Deveriam ser punidos por invadir um imóvel que não lhes pertence e se querem de fato um lar, que trabalhem para compra-lo. Tento reduzir minha vergonha de ter acreditado nessas bobagens com o fato de nunca ter sido apresentado aos argumentos em prol dos movimentos sociais.

Esse é o ponto principal do filme, pois dá voz aos excluídos, àqueles que normalmente são retratados pela mídia que representa a especulação imobiliária, criando uma imagem diametralmente oposta à real atuação dos movimentos sociais que se organizam pela busca de moradia.

Ao contrário da desordem e bagunça comumente associada ao MTST e suas subdivisões, com apenas algumas entrevistas de lideranças vemos uma aula de política suficiente para envergonhar a maioria esmagadora daqueles que criticam as ações, mas restringem a própria atividade política ao voto bienal. 

Política, gostando ou não, se faz de forma cotidiana e diária. Os movimentos de ocupação que se organizam no centro de São Paulo – que é o foco do documentário – não fazem outra coisa senão lutar por direitos constitucionais dos quais todos deveríamos ser beneficiados. A diferença é que grande parte da população brasileira restringe sua indignação diante da falta de serviços estatais a comentários preconceituosos, com raízes históricas que ratificam a criminalização da pobreza e são de grande utilidade aos que estão no poder.

Em um país em que a desigualdade social é uma das maiores do mundo, a ilusão de ascendência social faz com que mesmo os que estão economicamente mais próximos dos integrantes de movimentos sociais mostrem repúdio em relação aos seus membros, tentando assim uma proximidade com as classes mais altas, compostas em parte por proprietários de imóveis desocupados, geralmente herdados há várias gerações, que permanecem aguardando uma valorização imobiliária.

“Mas eu trabalhei duro para comprar minha casa e não é justo que algumas pessoas ganhem um apartamento de graça”. O filme desconstrói essa falácia com muita competência, mostrando tanto o equívoco quanto as nuances econômicas que tornam a questão bem mais complexa do que a suposta meritocracia de pagar por um imóvel. A questão que fica implícita no filme e não caberia no documentário é como a sociedade brasileira acaba prejudicada pelo preconceito que estabelece contra os movimentos sociais.

É justo que um trabalhador consiga, depois de tanto esforço, comprar sua sonhada residência. Ainda mais justo é que todos tenham pelo menos a oportunidade de ganhar um salário descente, para sanar suas necessidades imediatas como alimentação, educação, etc., e poupar o suficiente para um dia – ainda nesta encarnação – comprar sua casa própria.

Injustos não são aquelas pessoas que ocupam um prédio abandonado há décadas, fugindo assim das ruas ou de moradias que não oferecem o menor conforto ou mesmo dignidade. Injustos são os poucos proprietários que concentram diversos imóveis, mantendo vários deles fechados por pura especulação. Sequer a famigerada meritocracia pode ser aplicada na maioria dos casos, já que uma sondagem histórica indica que a origem de tantas propriedades é fruto de várias ações, nenhuma relacionada ao trabalho, esforço ou mérito pessoal.

Enquanto a especulação imobiliária atinge negativamente a cidade, com consequências que extrapolam as fronteiras da moradia, os proprietários de imóveis vazios encontram respaldo em uma disputa social desnecessária e maléfica, que insiste em criminalizar as vítimas por um problema.

Um dos desdobramentos de uma sociedade tão heterogênea e desigual é que o discurso oficial da mídia é controlado por pouquíssimas pessoas ricas. Ainda que numericamente os movimentos sociais sejam dominantes, seu discurso não tem espaço. É mais cômodo acreditar na versão simplista de que os errados são os que ocupam uma propriedade ao invés de investigar as origens desta propriedade e os impactos sociais de mantê-la fechada.

Uma alternativa a esta tradição elitista é a produção independente de obras como Leva, para mostrar um lado cuidadosamente ocultado ao longo de todo o desenvolvimento de grandes cidades com São Paulo. Felizmente há tempos mudei meus paradigmas e assisti ao filme ciente da condição dos militantes dos movimentos sem-teto, ainda assim gostaria que de ter tido contato com alguma obra deste tipo durante a adolescência.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Uma longa viagem (The Railway Man)

A Segunda Guerra Mundial é um dos eventos históricos mais documentados em obras de arte – talvez o mais documentado. Isso não é exagero, pois tamanha barbárie deve ser constantemente lembrada, na esperança de que não volte a acontecer. A particularidade deste filme do diretor Jonathan Teplitzky é mostrar um lado pouco retratado do combate.

Longe da Europa muitos soldados viviam o inferno da guerra no front asiático. O filme em questão é baseado em uma história real, essa informação nem sempre é benéfica, já que se por um lado dá veracidade aos fatos retratados, por outro nos induz a olhar para o filme como um retrato fiel do que aconteceu – o que nem sempre é verdade.

O exército britânico, historicamente imperialista e dominador, teve parte dos seus soldados capturados pelos japoneses e utilizados na construção de uma ferrovia na região da Tailândia. No próprio filme um dos personagens ressalta a inversão de papéis que o episódio proporciona. Entre os soldados está Eric Lomax (Jeremy Irvine e posteriormente Colin Firth, protagonista).

Difícil falar em lado certo ou errado de uma guerra. Olhando de forma pontual, como no caso do filme, temos a tendência de ver Lomax e seu exército como vítimas, já que são os escravizados e torturados em questão, mas para isso temos que abstrair as barbáries cometidas pelo mesmo exército em outros fronts.

O fato é que Lomax e seus companheiros de batalha, já idosos, nunca superaram os traumas da guerra. O vislumbre de alívio na vida do protagonista aparece quando ele conhece Patricia (Nicole Kidman), que ao menos no início do relacionamento consegue desfazer um pouco da tensão do personagem.

O curioso é que Patricia define Lomax como um homem maravilhoso, mas perturbado. Ela tenta com muito empenho livrar o marido dessas perturbações, como se quisesse despi-lo dos traumas deixando apenas sua essência. O problema é que essas duas características de Lomax são indivisíveis, cada uma contribuindo um pouco para a formação do indivíduo.

Depois de tanto tempo sozinho o protagonista acaba desaprendendo a conviver e a aceitar diferenças. Isto somado ao estilo metódico dos ingleses, às vezes incompreensível e cômico aos latinos, faz com que o convívio seja difícil até mesmo com a pessoa amada.

Enquanto Patricia busca o homem por trás dos traumas, como se isso fosse dissociável, Lomax não esconde o passado da esposa, esconde de si mesmo. Sabe que sua vida no front não é nada atrativa e tem a ilusão de viver a partir de quando conhece a esposa, passando uma borracha no passado, como se isso fosse possível.

Essa atitude não é exclusiva de Lomax, tão pouco daqueles que passaram por um grande trauma como a guerra. Por vezes queremos mesmo esconder o passado até da pessoa que mais amamos, não por mal, mas por uma necessidade inconsciente de escondê-lo de nós mesmos. Não é uma postura fácil de aceitar, como no caso de Patricia, mas um pouco de compreensão é sempre bem-vinda. Os traumas pelos quais passamos, ainda que bem menores que o cotidiano de uma guerra, formam nossa personalidade. Somos o que somos graças ao que vivemos de bom e de péssimo.

Como era de se esperar, Lomax encontra Nagase (Hiroyuki Sanada), soldado que não o torturou, mas foi complacente, servindo de tradutor nos interrogatórios guiados por violência. O que fazer diante de um torturador nestas condições? Por um lado é demagogia dizer que Nagase foi apenas tradutor. Isso o tornaria ao menos complacente, que já não é pouco, mas no topo da hierarquia militar estão os que, entre tantas barbáries, conseguem motivar seus soldados aos atos mais vis, fazendo-os acreditar que a crueldade é necessária.

Não por acaso o filme nos leva a tomar o partido de Lomax. Mesmo suavizando as cenas de tortura, o protagonista é construído com base na gentileza, lealdade e várias virtudes que nossa sociedade valoriza, enquanto o exército japonês, incluindo Nagase, é apresentado como vilão da história.

Voltando ao início, olhando para esse episódio isoladamente essa distinção entre bem e mal pode ser tolerada, mas não devem faltar exemplos de papéis invertidos, com soldados britânicos aterrorizando prisioneiros de exércitos inimigos. Crimes de guerra que não chegam a ser culpa dos soldados, mas de patentes e cargos bem mais elevados.

Diante do terror multifacetado da guerra, o fim do filme (sem detalhes por aqui) pode nos emocionar e, sobretudo ensinar várias lições, basta abstrairmos os limites da guerra e ampliarmos a ideia para temas cotidianos.


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