quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A Balada de Narayama (Narayama Bushi-Ko)

A Balada de Narayama é um filme baseado na história de Shichiro Fukazawa. Vencedor do Festival de Cannes de 1983, o longa do diretor Shohei Imamura nos mostra o cotidiano de uma pequena vila no norte do Japão, no final do século XIX. Isolados entre as montanhas seus habitantes têm um cotidiano restrito basicamente à produção de alimentos, que mesmo com todo o esforço dos habitantes, é bem limitada.

Deparamos-nos com um modelo de sociedade cujo modo de produção difere drasticamente do que estamos acostumados e isso implica em muitas curiosidades. Nossa sociedade capitalista é baseada no consumo e acumulação, assim cada trabalhador produz muito mais do que pode consumir para que o excedente possa ser comercializado. Na pequena vila japonesa cada um produz sua própria unidade de consumo, não há trabalho alienado ou exploração do mesmo por terceiros gerando mais-valia, mas as técnicas de plantio e caça são rudimentares e o inverno rigoroso, sendo que quando a produção é baixa não há excedentes para a parcela improdutiva da população, ou seja, crianças muito pequenas para o trabalho e idosos já incapazes de produzir. A solução para este problema não é exclusiva da sociedade em questão, mas para nossos padrões é verdadeiramente inimaginável.

Não existe a possibilidade de aumento da população, portanto novas crianças só são aceitas quando há alguma morte – uma espécie de reposição, deixando densidade populacional estável. Para resolver o problema de um nascimento quando não houve nenhum óbito as meninas são vendidas, sendo levadas para longe da vila, e os meninos são mortos, enterrados ou jogados no riacho.

Não menos chocante é o destino dos idosos. Quando começam a perder os dentes (por volta dos setenta anos) devem deixar a vila, ainda que estejam lúcidos e possam contribuir com trabalho. Os dentes perdidos são uma espécie de sinal de que já não podem contribuir para o próprio sustento, logo se tornarão um peso para seus descendentes. Os idosos são levados por um membro da família até Narayama, uma montanha que abriga os restos mortais de diversas gerações de idosos, para perecer e assim deixar espaço sociedade para um novo membro. Podemos notar no filme que certas vezes este ritual (bastante mórbido para nossos padrões) é encarado com relutância pelos idosos, porém a grande tradição faz com que outros aguardem ansiosamente pela data, por vezes contribuindo para adiantar o afastamento, acreditando que esta é uma oportunidade de rever os antepassados. Todo o conhecimento e experiência de vida de um sexagenário, ainda mais valioso em uma sociedade sem tradição escrita, deve ser refutado em prol dos mais novos.

Há uma forte influência naturalista em diversas tomadas cuja sequência mostra animais e insetos alimentando-se de outros ou procriando, indicando uma semelhança entre estes e os seres humanos, cuja vida limita-se basicamente a trabalhar, colhendo alimentos para o estoque que deve durar todo o rigoroso inverno, e procurar por sexo – fato enfatizado aos homens – ainda que a procriação só seja permitida após a morte de algum integrante da sociedade. Outra aproximação mais sutil com o mundo animal é notada diante de situações conflituosas, resolvidas geralmente com brigas e agressões.

Em relação à sociedade moderna, notamos entre os japoneses uma grande preocupação com a alimentação além da versatilidade e variedade dos pratos asiáticos. Geralmente essa característica é atribuída aos períodos de guerra, que muitas vezes castigaram a população local espalhando a fome pelo oriente. Neste filme notamos mais um fator, ou seja, os períodos cujas técnicas de produção eram rudimentares ao ponto de não haver alimentação suficiente para todos. No Brasil vivemos a outra face da moeda, e o lado ruim de nossa falta de experiência com a grande escassez de alimentos é notado no paradoxo de um país que exporta comida para o mundo todo, vendo sua própria população passar fome em muitas regiões, com cerca de 30% da produção de alimentos perdida durante o transporte ineficiente da mesma.


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mutum

Transpor uma obra literária para a linguagem cinematográfica não é tarefa das mais fáceis, que dirá quando se trata de um trabalho de Guimarães Rosa. Pois o filme dirigido por Sandra Kogut é uma boa versão para a vida de Miguilim, narrada por Guimarães em Campo Geral.

Se por um lado os romances deste singular autor são permeados de reflexões interiores, com personagens imersos em pensamentos profundos mesmo quando fazem parte do universo infantil, por outro a diretora soube explorar a ideia de que uma imagem diz mais que mil palavras para dar sua versão visual à muitas partes do filme. É evidente que o livro sempre resulta em uma obra mais profunda e completa, porém este filme é um exemplo que conseguiu transpor de forma satisfatória a essência do romance.

Dois personagens centrais tiveram os nomes alterados, e o resultado não foi muito agradável. Miguilin virou Thiago (interpretado por Thiago da Silva Mariz) e seu irmão Ditinho virou Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso) com a interpretação de ambos chamando a atenção pela qualidade, que frequentemente é sofrível entre atores infantis.

Kogut soube retratar o universo infantil mostrando que para as crianças o mundo é mágico. O sentimento de encanto diante de novidades, o temor de involuntariamente cometer algum pecado e o senso do que é certo e errado – evidente quando Thiago é requisitado pelo tio Terez (Rômulo Braga) para entregar um bilhete para sua mãe – ganha um aspecto visual e mesmo a característica pensativa do garoto, que observa atentamente o mundo para aprender com o que a vida tem a lhe oferecer, é notada no longa. Apesar de muitas reflexões presentes no livro não se adequarem ao filme, as características gerais do garoto foram bem encenadas.

Felipe é o irmão mais velho que no livro serve mais de espelho ao mais novo que vê o primogênito como um exemplo a ser seguido. Na versão filmada os dois garotos mantêm a forte amizade e descobrem juntos a vida, debatem sobre o que é pecado ou permitido, dividindo as responsabilidades e brincadeiras. Tal qual no livro é extremamente angustiante acompanhar a tensão da família depois que Felipe corta o pé e sofre com uma infecção. Este pode ser o elo principal do filme com uma das possíveis críticas sociais contida na obra. A cineasta faz questão de mostrar em dois planos sequência cédulas de dinheiro, e a moeda é o Real, ou seja, apesar de ser uma história escrita no início da década de 60, ainda hoje a região pode ser retratada da mesma forma. Sem escolas para as crianças, sem assistência médica e a dificuldade de locomoção que torna Mutum uma terra distante e isolada.

No filme, como não poderia deixar de ser, aparece o médico que chega a cavalo – nada mais que o próprio Guimarães que se transformou em personagem literário para relatar suas viagens como médico pelo sertão – e descobre que Thiago é míope. Essa é uma das muitas metáforas contidas na obra do escritor, dialogando com a dúvida se Mutum é ou não um lugar bonito. Thiago só sana essa dúvida quando coloca os óculos do médico, indicando que uma das interpretações possíveis é a que Mutum sempre foi bonito, para ser melhor aos olhos de seus próprios moradores faltam alguns detalhes de fora como os óculos, ou remédios para Felipe, ou uma escola para as crianças.

Sandra Kogut fez um belo filme que merece ser visto, depois do livro que é leitura obrigatória.



segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon)

Baseado no livro homônimo, a obra retrata um pouco da vida de Jean-Dominique Bauby (representado por Mathieu Amalric). Jean-Do para os amigos, editor da revista Elle, tem um AVC que o coloca no que talvez seja a pior das prisões, a rara “síndrome locked in”. Com todo o corpo paralisado, o único movimento que lhe restou era o do olho esquerdo para o limitado campo de visão de um quarto de hospital e para toda comunicação através das piscadas.

O diretor Julian Schnabel tem o mérito de trabalhar bem com o tema, transpondo a história de forma satisfatória para a linguagem cinematográfica, sem tornar o enredo um tipo de auto-ajuda ou cair na banalidade do drama excessivo. Algumas vezes o preciosismo faz com que o trabalho beire um documentário e o ritmo fica mais lento, afinal Jean-Do não se recuperou das sequelas, mas o livro que originou o filme foi escrito por ele.

A princípio isso seria inimaginável, mas o olho esquerdo do protagonista serviu primeiramente para respostas simples, algo como piscar uma vez para dizer sim e duas vezes para dizer não. Com o tempo sua ortofonista reorganizou o alfabeto colocando as letras na ordem que elas mais aparecem na língua francesa, com isso ela repetia as letras até que uma piscadela indicava quando parar. Desta forma criaram palavras, frases e por fim um livro.

O que mais me chama a atenção nesta história tão particular é a necessidade que o protagonista teve de superar diversos sentimentos, dentre eles a ansiedade. Essa característica tão marcante do mundo ocidental, que para o editor de uma grande revista deve ser mais que constante, teve que ser drasticamente dominada. Para a maioria das pessoas cinco minutos na fila do banco irrita, dez minutos de atraso parecem eternos e podemos encontrar infinitos exemplos de como o imediatismo do mundo moderno nos influencia. De repente Jean-Do passou a viver “como um legume” de acordo com suas próprias palavras. Ir ao banheiro precisava de ajuda, a alimentação só era possível quando alguém se dispunha a checar suas vontades, mudar o canal da TV, olhar os filhos e simplesmente falar. Uma conversa cotidiana tinha que passar pelo trabalhoso, porém indispensável, método de piscar o olho na letra correta.

Isso me fez pensar em como somos cada vez mais acostumados com a ideia de desejar algo “para ontem”, de forma que esta ansiedade exacerbada passa despercebida, assim como seus efeitos. Fica a dúvida se não deveríamos buscar algumas referências no ritmo de vida das pequenas cidades, ou mesmo nas milenares sociedades orientais, onde a paciência não é menos importante, mas existe a consciência de que algumas vezes o que nos resta é esperar. Nossa impotência diante de determinados fatos pode ser desesperadora e é inquietante o fato de não haver nada a fazer. Pois então, esperemos.

Jean-Do morreu em 1997, dez dias após o lançamento do livro, em decorrência de uma pneumonia. Não pode ver o filme lançado em 2007. Ambas as obras são indispensáveis, das quais podemos extrair grandes lições sem a banalidade do senso comum.


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Do começo ao fim


Dia 27 de novembro estreia o polêmico “Do começo ao fim”, escrito e dirigido por Aluizio Abranches. Qualquer filme que aborde o tabu do incesto chama a atenção e desperta curiosidade de alguns para saber qual o desfecho da história, e a indignação de outros por colocar a hipótese da viabilidade a um assunto “proibido”. Da mesma forma a homossexualidade (pasmem) ainda desperta a mesma curiosidade de uns e indignação de outros, como se ainda estivéssemos no tempo da caça às bruxas. Abranches é ousado ao unir as duas polêmicas através de dois meio irmãos, de mesma mãe, que quando adultos acabam sexualizando a intensa relação que sempre cultivaram.

O enredo do filme é bastante linear. Um tema tão controverso é aceito pacificamente pela família de classe alta e acaba perdendo a oportunidade de desconstruir preconceitos ainda presentes na sociedade. Apesar disso inova tanto na temática que faz com que possamos sair do cinema sem a sensação de ter visto mais um filme de amor.

Coincidentemente a estreia acontece pouco tempo após a morte de Claude Lévi-Strauss. O antropólogo que aparentemente não tem nenhuma relação com o longa explorou em muitos estudos o tabu do incesto, assim como tantos outros que abordaram a temática pelo viés cultural. Resumindo ao extremo o tabu do incesto permeia todas as sociedades, sendo que para Lévi-Strauss é a base do que separa os humanos dos outros animais. As regras do incesto são variáveis, uma vez que certas sociedades permitem relações que em outras seriam passiveis até de punições severas. Entretanto sempre há restrições que fazem com que certas mulheres sejam inacessíveis aos homens de sua família, o que obriga os homens a procurarem mulheres fora de seu círculo social, ampliando as relações da tribo.

Outro viés do estudo se dá no plano econômico. Mantêm muitos conceitos expostos anteriormente, mas é possível notar que em determinadas sociedades as leis sociais do incesto agem em benefício da propriedade familiar, impedindo que esta seja dividida ou estimulando que terras sejam agregadas em prol de determinadas famílias – estimulando o casamento entre primos, por exemplo.

O filme de Abranches traz um ponto pouquíssimo explorado, pois apesar dos estudos sobre o incesto estimularem críticas feministas por colocarem o homem como indivíduo que escolhe a mulher, com posicionamento dominante, a mulher tem sempre papel fundamental no tabu do incesto. Trabalhando o tema com dois homens (João Gabriel Vasconcellos como Francisco e Rafael Cardoso como Thomás) o enredo descontroi vários pontos das teorias sobre o incesto e inclui novas problematizações.

Antes mesmo de estrear a obra sofre críticas de estímulo à homossexualidade, como se estas fossem cabíveis, e diversas outras acusações retrógradas e naturais aos temas mais polêmicos. O interessante é olhar para o espírito inovador, com tema e cenas ousadas. Há ausência de conflitos, mas sobram pontos a serem desenvolvidos em obras posteriores, como em todo trabalho pioneiro. Cabe agora aos espectadores romperem a barreira das críticas moralistas e pensarem o cinema como uma forma de questionamento e inovação.


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Entre os muros da escola (Entre les murs)

Entre os Muros da Escola, do diretor Laurent Cantet, baseia-se no livro homônimo de François Bégaudeau, que atua no filme como professor Marin para mostrar algumas de suas experiências como educador. Longe de ser um documentário sobre o sistema de ensino francês (como Pro dia nascer feliz, de João Jardim, que trabalha com escolas brasileiras como pode ser conferido no texto deste mesmo site) o longa nos permite identificar algumas características relevantes sobre problemas e virtudes do sistema educacional, através de algumas representações de personagens.

Estruturalmente a escola não tem grandes problemas, diferente do que podemos notar em alguns registros de João Jardim. As instalações são suficientes para uma aula que conta com um número não muito grande de alunos e um professor que demonstra competência. Com o diálogo de desabafo de um professor entre seus colegas Cantet indica que a bagunça dos estudantes impede que a aula seja ministrada, levando o professor ao extremo de dizer que seus alunos não merecem um futuro melhor; apesar disso este problema recorrente em escolas é pouco explorado, pois não há construções de imagens que ilustrem a ideia. As cenas que demonstram bagunça sugerem apenas conversas presentes em qualquer grupo de pessoas – principalmente adolescentes que aguardam o início da aula.

O que provavelmente chama mais a atenção dos brasileiros que dos franceses é a forma que o professor de francês conduz sua aula. Em uma classe da periferia de Paris, que reúne alunos imigrantes de diversos países formando um caldeirão cultural com valores e pontos de vista muito diferentes entre si, o professor dá voz a todos, que podem expressar suas ideias em um espaço coletivo. Esta quebra de um sistema bastante recorrente do professor que fala para os alunos que absorvem o conteúdo sem questionar reflete valores iluministas construídos há séculos na França.

Porém o modelo de aula de Marin também deve lidar com muitas dificuldades. A desmotivação de estudantes, os problemas familiares que influenciam do aprendizado, a tendência natural dos adolescentes de testar as autoridades presentes, as divergências originadas pelas múltiplas descendências, etc. Para lidar com todos esses conflitos há o professor que tenta mediar debates e apaziguar discussões, mantendo a ordem e cumprindo o currículo escolar.

O desenrolar da obra indica o desgaste provocado pela perenidade dos problemas. Apesar de profissional, o educador é um ser humano que está sujeito a eventualmente tomar uma atitude impensada diante de situações que o levam ao seu limite. Quando este limite é ultrapassado e as emoções extravasadas os estudantes assumem a postura de vítimas e a construção de um espaço coletivo dá espaço ao embate entre alunos reivindicando respeito aos seus pontos de vista e professor tentando manter a autoridade necessária ao cargo.

Entra em cena então o delicado equilíbrio que um professor deve encontrar. Um limite tênue entre impor sem abusos sua autoridade e respeito perante os alunos, ganhando a confiança dos mesmos para conseguir construir uma aula educativa e estimulante, e lidar com casos extremos em que nem tudo flui pacificamente, tendo que por vezes assumir erros e recuar em palavras e atitudes – deixando transparecer insegurança diante dos estudantes.

A obra aborda um professor atuando em uma única sala de aula, mas trata de problemas recorrentes em escolas, pois é um grande desafio formar cidadãos conciliando contradições sociais, rebeldia da adolescência e tantos outros fatores. Construir o trabalho coletivamente, como podemos ver no filme, é um bom começo, mas deve ser muito bem conduzido para que não fuja do controle do professor, cuja autoridade não deve ser exacerbada, porém deve estar sempre presente, já que do outro lado da moeda temos adolescentes com regras sociais ainda em formação.


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Quanto dura o amor?

O título do novo trabalho de Roberto Moreira pode até lembrar algum filme hollywoodiano fadado a ser taxado de filme de Sessão da Tarde, e essa suspeita fica até mais forte ao vermos Paulo Vilhena no elenco. Entretanto a suspeita não se confirma diante de alguns temas polêmicos e cenas picantes, muito bem dirigidas.

Apesar de ter como eixo central uma história de amor, que se cruza com mais dois relacionamentos, todos conturbados e insólitos, não vi o amor como tema do trabalho, pois o que me chamou a atenção foi o conflito entre modernidade e tradicionalismo que uma grande metrópole pode proporcionar.

O cruzamento que mexe com o coração de todos é deslocado da Ipiranga com a São João para a Avenida Paulista com a Rua da Consolação, mais precisamente no edifício Anchieta onde a jovem atriz Marina (Silvia Lourenço) chega do interior para alugar um quarto no apartamento da advogada Suzana (Maria Clara Spinelli). Demora um pouco para entendermos como as duas personagens que estereotipam a jovem descompromissada e a mulher madura e centrada não entram em conflito, nem após Marina dormir com Justine (Danni Carlos) logo após chegar na cidade.

Logo em seu primeiro dia em São Paulo, Marina conhece Jay, que apresenta a cidade para a moça. Ele é um tímido escritor que ao contrário de um relacionamento com Marina como poderíamos imaginar, investe em seu amor por Michelle (Leilah Moreno), uma prostituta que vê no romântico incorrigível apenas mais um cliente.

No bar em que Jay a levou, Marina vê Justine cantando. Após conhecer pessoalmente a cantora conhece também Nuno (Paulo Vilhena) e os três proporcionam os temas mais liberais do filme, como a proposta de um ménage à trois, relacionamento aberto, etc.

Por fim Suzana, que aluga um quarto de seu apartamento para Marina, começa um relacionamento com Gil (Gustavo Machado) no machista ambiente do Fórum. Nada de incomum, não fosse o grande segredo guardado por Suzana, como indica o trailer.

Conforme citado, não são poucas as cenas em que a tradição barra as atitudes liberais. Se por um lado Nuno aceita ver Justine com outra, demonstra ciúmes quando o relacionamento das duas demonstra seriedade; machismo ao agredir Justine em virtude do mesmo ciúme; e tradicionalismo ao tentar impor regras na vida da cantora.

Jay aceita propor um relacionamento estável com uma prostituta (ao menos enquanto o amor é platônico), mas por trás disso há o romantismo exacerbado e a ideia de transformá-la no grande amor de sua vida, querendo agradá-la com presentes inesquecíveis e construir sentimentos nos quais a sociedade se baseia há séculos, mas que a modernidade refuta com veemência.

Não darei detalhes sobre a história de Suzana e Gil, pois me atenho aos segredos indicados pelo trailer, mas o conflito entre o tradicional e o moderno aparece. Para saber se o tradicionalismo predominará ou se dará lugar a uma visão mais liberal, é necessário ver o filme.

Roberto Moreira é ousado ao trazer para as telas temas que apesar de cotidianos ainda sofrem grande preconceito. Cenas de amor entre duas atrizes são pouco exploradas em qualquer cinema do mundo, mas o diretor as expõe de forma competente, deixando o trabalho bastante natural. Encontramos também a situação bastante comum no cotidiano das pessoas, que se sentem (parafraseando Simmel) solitários e perdidos na multidão metropolitana.

Um bom filme que terá que enfrentar a falta de dinheiro e o preconceito da sociedade para mostrar seu valor!


sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Salve Geral

Com o longa Salve Geral, que estreia dia 02 de Outubro com possibilidade de representar o país no Oscar, Sérgio Rezende nos remete a maio de 2006, quando o PCC – Primeiro Comando da Capital – surpreendentemente conseguiu parar a maior cidade do país.

Através da vida de Lucia (Andréa Beltrão) e seu filho Rafa (Lee Thalor), que em pouco tempo passam de uma família de classe média para envolvidos com o Partido que comanda informalmente o sistema carcerário do estado, o diretor trabalha com diversos pontos sob a perspectiva das partes envolvidas, ou seja, personagens envolvidos diretamente com as atividades carcerárias; a classe média, distante do sistema prisional; políticos atuando em decisões; e delegados incumbidos de resolver diversos problemas. Como já era de se esperar devido à temática o filme já causa grande polêmica antes mesmo da estreia, principalmente pelo diretor não trabalhar com uma visão extremamente moralista.

A guinada na vida de Lucia começa com o declínio econômico após a morte do marido. A advogada que nunca exerceu a profissão tenta agora manter a vida dando aulas de piano e o instrumento no filme é um elo entre o passado de classe média alta e o presente cada vez mais caótico. Rafa recusa-se a aceitar a nova realidade de sua vida e em uma situação circunstancial de irresponsabilidade da juventude (semelhante às comentadas no artigo sobre o filme “Cama de Gato”) assassina uma jovem e é condenado. Este é o eixo do filme, que nos permite notar a mudança de atitudes de Lucia. A princípio o que restava era orientar o filho a ficar longe de qualquer confusão para que o réu primário cumprisse um sexto da pena e pudesse gozar dos benefícios concedidos aos detentos com bom comportamento, entretanto nem tudo é tão simples dentro da cela, e fora da cadeia a protagonista percebe aos poucos que pode se reaproximar de sua antiga vida de classe média alta e cuidar de seu filho, dando-lhe um pouco de conforto e segurança, de forma rápida, ainda que ilícita e, para seus antigos padrões burgueses, imoral.

A recente amizade com Ruiva (Denise Weinberg), advogada ligada ao Partido, aproxima Lucia da facção que provou, através dos ataques de 2006, dominar o sistema carcerário paulista. É interessante a abordagem do diretor, que dialoga muito com a obra 1984 de George Orwell. Em um universo bem menor que o abordado no livro, temos aqui a presença do Partido, que a princípio sabe de tudo, coordena ações, dá ordens e nunca falha – como quando um de seus integrantes justifica um erro gramatical do manifesto, alegando que quando tomarem o poder a gramática será adequada ao que o Partido impor. Um dos líderes, o Professor (Bruno Perillo), explica a origem do movimento como uma intenção de ordenar um sistema prisional que beira a falência, evitando estupros, roubos, etc. Sem querer defender a existência de um poder paralelo para tomar atitudes que cabem ao estado, ressalto que a solução destes problemas é evidentemente necessária, e não há indícios de quando algum governo tomará tais atitudes. É impossível negar que os detentos não esperarão por medidas institucionais e tentarão resolver problemas latentes por suas próprias vias.

O outro extremo abordado é a classe média, alienada do sistema carcerário, que em prol da própria segurança adota a cômoda postura individualista. No filme a representante desta classe é Ângela (Chris Couto), irmã de Lucia. Ambas promovem um marcante diálogo maniqueísta no qual uma defende ações mais severas da polícia de forma a anular a expressividade dos detentos e a outra argumenta que a irmã, ao falar sobre o que não conhece, generaliza e simplifica demais o problema em questão. Aqui entra a principal crítica que o filme tem recebido, pois é cada vez maior o senso comum de que detentos devem ser tratados da pior forma possível. Diante de um filme com esta temática não demora a aparecerem defensores da pena de morte e nas entrelinhas Rezende provoca, mostrando que o Partido adota a pena de morte, ou seja, neste sentido os adeptos à extrema punição igualam-se aos que são alvos de suas indignações.

Coordenando formalmente os presídios, incumbido de prevenir e posteriormente resolver o caos, temos o delegado que além de lidar com facções criminais sofre pressões de políticos para resolver os problemas de qualquer forma, desde que discreta para não alarmar a população influenciando nas eleições. O papel dos políticos envolvidos é bem sintetizado pela frase do filme: “polícia eficiente mais bandido morto é igual a voto.” Assim o esquema velado de propinas e tráfico de influências do presídio não é coibido, desde que não vire um escândalo que choque eleitores. O desenvolvimento do esquema de corrupção resulta no poder do Partido, que consegue parar São Paulo em represália as medidas do delegado. Mais uma vez uma instituição chega ao ponto de ter que remediar, ao invés de prevenir.

Longe de ser uma apologia ao crime o trabalho de Rezende mostra que a população carcerária é formada por pessoas – ainda que tenham cometido crimes, portanto passíveis de punição. Aos que ainda acreditam que detentos devem ser tratados pior que animais, vale lembrar que apesar de muitos não terem tido acesso à escola, são pessoas que diferente de animais maltratados, reagirão racionalmente com o intuito de melhorar suas condições. É constrangedor notar que um pensamento medieval, de que a punição através dos maus tratos é a solução para crimes, ainda vigora. Obras como Salve Geral dão um alento no sentido de modernizar essa ideia cruel.



segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pro dia nascer feliz


Após uma deliciosa viagem pelo Brasil que toca sanfona com o documentário “O Milagre de Santa Luzia”, de Sergio Roizenblit, refaço a viagem, mas desta vez de forma menos prazerosa com o longa de João Jardim.

Distante do sentimento descrito por Cazuza na música homônima, em que notamos o relato da vida prazerosa e descompromissada que a juventude pode oferecer, Jardim parte de Manari, em Pernambuco, cidade com o menor IDH do país, para o Rio de Janeiro e termina sua viagem em São Paulo. No caminho o diretor faz escalas por diversas escolas, através das quais podemos notar algumas semelhanças e diferenças que nos permitem tirar algumas conclusões sobre o sistema de ensino do Brasil.

Alguns problemas relatados, como a falta de estrutura, a violência, o consumo de drogas, etc. não podem passar desapercebidos, entretanto muitos destes problemas são bem conhecidos, de forma que o filme apenas os deixa mais concretos. Jardim nos dá maior precisão ao indicar que 13700 escolas brasileiras não têm banheiro; 1900 sequer têm água; a metade dos alunos que concluem o ensino médio não sabe ler ou escrever; e a conhecida violência ganha uma nova dimensão com o impressionante relato de uma estudante que assassinou, dentro da escola, a garota que barrou sua entrada em uma festa, alegando que matar sendo “de menor” (sic) não tem problema, pois três anos passam rápido.

Apesar destes dados desconfortantes e do abismo entre escolas públicas e o Colégio Santa Cruz (da elite paulistana), é interessante notarmos certas nuances do filme. Não é um trabalho com rigor científico e a montagem muitas vezes influencia em nossas percepções, não obstante é perceptível uma grande distância entre os estudantes e a instituição de ensino. Na escola particular essa distância é reduzida, porém notável, já na escola pública os estudantes não reconhecem a instituição como um apoio que pode auxiliá-los. Em geral notamos uma grande luta contra o que parece ser um entrave na vida dos jovens.

Os casos isolados explorados no documentário, de estudantes que superam as adversidades de um sistema de ensino deficitário e conseguem resultados acima do que seriam esperados, desaparecem quando as câmeras do diretor estão ausentes e voltam para a massa de alunos cujas individualidades não são potencializadas. A maneira pragmática que as aulas são ministradas é repetida em todas as seis escolas do documentário, ou seja, ainda que a escola particular e mesmo algumas escolas públicas tenham algumas atividades que quebrem com a rotina de diversos alunos voltados para um professor que transmite a matéria, essa é a forma predominante de ensino, havendo poucas formas de interação entre os estudantes e ainda menos entre estes e seus professores.

De uma forma geral os adolescentes não encaram a escola como um local para trabalhar em conjunto, buscando o apoio de professores para investir no próprio futuro. No setor público este sentimento é evidentemente mais forte por uma série de fatores envolvendo estudantes desmotivados, professores com baixíssimas condições de trabalho, falta de um plano de educação em longo prazo, etc. Todos esses fatores resultam na falta de perspectiva geral, pois em um plano mais abrangente não podemos negar que a educação voltada para os interesses do capital expande as diferenças de classe. Logo seria ilusório convencer um estudante de classe social mais baixa que seu esforço pessoal resultará em ascensão social. Sem querer afirmar que a falta de estudos terá o mesmo efeito que o empenho nos mesmos, é difícil argumentar com estudantes que relatam seus assaltos quando eles afirmam que “até os políticos ricos roubam também, com eles não acontece nada e roubam mais”.

Um ponto positivo mostrado no documentário são algumas atividades, além das salas de aula, oferecidas pela escola. Aceitando que o sistema de ensino do país beira a falência e a solução em curto prazo é impossível, o pouco que pode ser feito de forma imediata é trabalhar com alguns problemas específicos. Juntando dois trechos distintos do filme – que poderiam ter sido explorados pelo diretor – vemos uma aluna do Colégio Santa Cruz falando que faz yoga, natação e outras atividades fora da escola; e em uma escola do Rio de Janeiro os estudantes participam de um projeto de música dentro da própria escola. Ou seja, todo adolescente precisa de atividades que lhe ofereçam bem estar, sendo que estudantes de classes mais altas podem pagar pelo que preferirem. A escola pública das periferias tem espaço e potencial para oferecerem aos seus alunos atividades lúdicas que os aproximarão da escola fazendo com que a imagem desta seja diferente de um obstáculo em suas vidas.

Um dos alunos que participa de um grupo musical da escola do Rio afirma que já empunhou armas e que isso impressionava as garotas, mas agora essa notoriedade se dá através da música. Este fato é um tanto evidente, ou seja, a escola de ensino médio trabalha com adolescentes que inevitavelmente buscarão notoriedade diante dos amigos. Ao invés da escola massificar os estudantes, poderia, através de projetos paralelos aos estudos, oferecer aos jovens uma possibilidade de trabalharem pontos que cada um acredita ser importante. Voltando na música de Cazuza encontramos o verso “essa é a vida que eu quis”. Um grande desafio para a escola moderna – independente da classe social de seus alunos – é auxiliar a descoberta de qual é a vida pretendida, e de como atingir tais metas.

Ao abordarmos a educação no Brasil encaramos um problema extremamente complexo. Nem o trabalho de João Jardim, nem este pequeno texto têm a pretensão de esgotar as possibilidades do tema. Mas trazem algumas ideias inquietantes sobre um ponto decisivo para qualquer país que tenha a pretensão de crescimento.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Milagre de Sta Luzia


O dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos, é 13 de dezembro e o milagre ao qual o título do filme faz referência ocorreu no ano de 1912, ou seja, o nascimento de Luiz Gonzaga em Exu, Pernambuco. O brilhante artista que ganhou o nome em homenagem à Santa é um grande responsável pela difusão do instrumento que marca tantas culturas no interior do Brasil: a sanfona. Entretanto o documentário de Sérgio Roizemblit aborda muito mais do que o instrumento, pois guiado pelo carismático Dominguinhos o filme viaja por várias regiões do Brasil mostrando diversas particularidades culturais embalado por boas músicas, lindas paisagens e músicos que muitas vezes são injustamente desconhecidos.

As filmagens duraram ao todo mais de dez anos, o que proporcionou ao trabalho final imagens de verdadeiras lendas da nossa cultura que já faleceram, como Sivuca, Mário Zan (inexplicavelmente desconhecido após bater recordes de vendas) e Patativa do Assaré. É com este último que começamos a viagem pelo Brasil. No nordeste, poucos meses antes de falecer, o poeta nos presenteia declamando seu poema em homenagem ao amigo Luiz Gonzaga. Tão grande quanto a emoção desta cena é a decepção pelo seu centenário (agora em 2009) ser tão negligenciado e esquecido.

Seguindo pelo nordeste vemos alguns encontros de grandes sanfoneiros fazendo forró de raiz; o encontro improvisado de repentistas na beira da estrada, acompanhados pelo acordeom de Dominguinhos; Arlindo dos 8 baixos, que não largou os oito baixos nem depois de perder a visão; Camarão, que já não pode tocar em pé devido à problemas na coluna, mas comanda os forrós tocando sentado; e os diversos “causos” entre os quais ganha destaque Pinto do Acordeom, que conta como teve que tocar “New York, New York” para salvar a própria vida - nesta cena é necessário ressaltar o bom trabalho de Roizemblit que, diferente do que é mostrado no vídeo abaixo, não limitou-se a mostrar o sanfoneiro improvisando a letra e Dominguinhos se divertindo. Quem ver o filme entenderá do que estou falando!

Rumo ao sul Dominguinhos dirige sua caminhonete até o pantanal matogrossense. Começamos a notar diferenças sutis no ritmo das musicas e grande mudança de cenário entre o cerrado e o pantanal. A criação de gados está presente nos dois ambientes, mas é manejada seguindo costumes locais, pois no nordeste os vaqueiros lidam muitas vezes com a caatinga e cavalgam em meio aos espinhos das árvores, enquanto as planícies do centro-oeste alteram o modo de conduzir o gado. É impossível deixar de destacar o voo de um casal de araras azuis flagrado por Roizemblit, de causar inveja em qualquer documentário da Nacional Geographic.

Ampliando a diversidade cultural o documentário nos leva ao sul do país. Lá o som da gaita tem influencias diferentes do nordeste, vindas da Itália e mesmo do tango argentino. Ainda que os acordes sejam os mesmos, a música não tem tanto gingado quanto o forró nordestino. É interessante notar também a postura dos músicos que, diferente dos nordestinos, preferem tocar a gaita sozinhos a fazerem encontros para duetos. Um dos ritmos tipicamente gaúcho é o “bugio” e o filme mostra como sua origem é mesmo a espécie de macacos. Com o baixo da gaita o músico imita o som do primata para fazer a base e a dança imita os movimentos do bugio.

Novamente rumo ao norte o filme deixa pela primeira vez o interior e chega à maior cidade do país. São Paulo, por receber imigrantes de todo o Brasil, sintetiza muito bem a diversidade cultural de norte a sul e coloca na sanfona inúmeros elementos. O instrumento é utilizado no jazz, hip hop, música árabe, japonesa, etc. Além disso, anima as festas fundamentais aos imigrantes nordestinos que têm grande peso na história da cidade. Finalmente a história de Dominguinhos, que até então acompanhava as entrevistas, ganha o merecido destaque, pois em certo sentido simboliza muito bem os imigrantes nordestinos.

O músico de simpatia inigualável saiu do nordeste ainda criança, como tantos outros, e enfrentou onze dias em um “pau de arara” para chegar ao sudeste. Tocava pandeiro com os irmãos para conseguir dinheiro e ajudar a mãe a fazer a feira, mas o que mudou sua vida foi conhecer o gênio Luiz Gonzaga, que lhe deu um acordeom e foi seu padrinho na música. Dominguinhos se emociona – e nos emociona – ao lembrar-se de tantos nordestinos que deixam a terra que amam para tentar uma vida melhor e muitas vezes não têm a chance de voltar para casa, assim como os pais do músico.

Para terminar a viagem o longa nos leva de volta ao nordeste com a entrevista do mestre Sivuca. Talvez seja o último registro do músico que morreu em 2006, cujos dedos passeiam pelas teclas da sanfona em um dueto inenarrável com Dominguinhos, que apesar de mais novo, inspira o mestre – segundo palavras do próprio Sivuca. A obra termina com um grupo de irmãos que toca para Santa Luzia, o que prende todos no cinema até o fim dos créditos.

Muitas vezes ao longo do trabalho sentimos vontade de aplaudir o que é exposto, como se estivéssemos vendo as apresentações ao vivo e, apesar da intenção do filme não ser esta, saí da sala com vontade de colocar uma mochila nas costas e refazer a viagem pelo Brasil que toca sanfona! Para quem não gosta de documentários, essa é uma ótima dica para uma revisão de conceitos.





Geralmente eu só coloco o trailer, mas diante do Milagre, não colocar esse vídeo seria um pecado =)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Tempos de Paz

A II Guerra já havia terminado na Europa, mas no Brasil o clima tenso e a grande precaução em relação aos imigrantes continuavam. Funcionários do governo, responsáveis pela emissão dos vistos, aguardavam por “novas diretrizes em tempos de paz”. Este é o tema e o título da peça de Bosco Brasil que deu origem ao longa “Tempos de Paz”. O filme dirigido por Daniel Filho (que também encena o Dr. Penna, personagem apenas citado na peça e mais enfatizado no filme) tem forte presença de elementos do teatro. O roteiro sofreu poucas alterações em relação à peça e a maior parte do trabalho é focado no diálogo de Segismundo (Tony Ramos) e Clausewitz (Dan Stulbach).

Clausewitz é o polonês que, como tantos outros, chegou ao Brasil depois da guerra com a imagem de um país perfeito, alegre, pacífico e livre dos horrores desumanos que ele presenciou na Polônia. Aprender o português foi uma forma de ocupar a mente e esquecer o passado recente, pois agora sua vida seria como agricultor no país que “precisa de braços para a lavoura”.

Segismundo é o chefe da imigração na Alfândega do Rio de Janeiro. Um ex- torturador que cumpre qualquer ordem que os superiores determinarem sem nenhum questionamento ou reflexão quanto à viabilidade das mesmas. A fase de transição pela qual o país passava atingia em cheio o oficial, pois o presidente Getúlio Vargas havia anistiado os presos políticos e Segismundo temia vinganças. Ao mesmo tempo ainda não tinha recebido novas instruções devido ao fim da guerra e ainda aplicava as mesmas regras aos imigrantes recém chegados.

Neste cenário ocorre o encontro dos dois personagens e fica evidente o abismo que existe entre um homem culto, que aprendeu muito através do sofrimento pelo qual passou e outro que cresceu em um orfanato, sem contato com a família, cujo único preparo foi para obedecer ao que lhe era ordenado. Segismundo mostrou a Clausewitz que nosso país não estava sequer próximo do que era idealizado pelo polonês e que infelizmente os horrores de uma guerra não estavam restritos aos países diretamente envolvidos no conflito. A única autonomia que Segismundo demonstra é quando sugere que se Clausewitz conseguir fazê-lo chorar em dez minutos conseguirá o tão sonhado visto. Para saber se o ex-torturador que sempre demonstra extrema frieza chorou é necessário assistir ao filme, mas no cinema não faltaram lágrimas aos que assistiam. O curioso é como cenas tensas e emotivas são quebradas com repentino humor muito bem dosado, que mostra a versatilidade dos atores.

Além de uma parte importante da história do Brasil e do valor dos imigrantes parcialmente retratados no filme, é curioso pensarmos a submissão dos oficiais diante de qualquer ordem emitida. Tempos de guerra mostram o extremo de um comportamento cotidiano em que não importa o horror da ordem emitida, suas consequências ou seu contexto, sempre haverá um ser humano capaz de executá-la. Em certa parte do filme, após um imigrante questionar a forma como estavam sendo tratados a resposta obtida vinha no sentido de que o tratamento poderia ser muito pior, como se este argumento justificasse os maus tratos.

Em um contexto radicalmente diferente, com implicações bem distintas, mas com a mesma postura dos que cumprem as ordens, lembrei de um evento ocorrido há poucos meses, ainda este ano. Em uma manifestação de estudantes dentro da universidade, lutando pela qualidade da mesma, estudantes foram atacados com bombas, gás de pimenta, cassetetes e tudo mais. Quando uma manifestante gritou que aquilo era uma ditadura o comandante da ação respondeu que os estudantes têm sorte, pois na ditadura eles resolveriam na bala.

Dois exemplos que, apesar de magnitudes bem distintas, mostram a mesma submissão de oficiais em um intervalo de mais de sessenta anos nos fazem pensar no treinamento despendido aos que supostamente deveriam garantir a ordem de uma sociedade. A submissão irracional é mesmo o melhor comportamento, ou o senso crítico capaz de julgar se a ordem é viável diante de determinada situação produziria melhores resultados? Clausewitz questiona a utilidade do teatro depois de todos os horrores presenciados na guerra. Esta utilidade é dada por cada um que assiste ao filme, mas fiquei pensando se a cultura de uma forma geral não seria capaz de impedir que um ser humano seja capaz de declarar guerra ou torturar um desconhecido.


domingo, 5 de julho de 2009

Serras da Desordem

Serra da Desordem é um documentário que mostra a versão do diretor Andrea Tonacci (foto) para a história real ocorrida no Brasil entre as décadas de 70 e 80. O filme ganha legitimidade por ser encenado pelas próprias pessoas que viveram a história, salvo algumas cenas que precisaram ser recriadas.

O fio condutor do longa experimental é a vida do índio Carapirú (foto), da tribo Guajá. Massacrados pelos brancos que cobiçavam suas terras e a riqueza nelas contidas em 1978, os índios desta tribo se dispersaram pela mata e Carapirú vagou perdido pela mata. Até aqui o que chama nossa atenção é o massacre de índios, secular, mas o protagonista vagou sozinho por dez anos do Maranhão – local de origem da tribo – até a Bahia, onde retomou o contato com outras pessoas.

O filme não é comercial e volta-se para o trabalho etnológico. Com poucos diálogos o longo trabalho de 135 minutos mostra as etapas da vida do índio como sua vida com a tribo antes do ataque; as dificuldades da vida isolada em terras já colonizadas, ou seja, com pouca caça ou água potável, obrigando o nativo a caçar porcos, cavalos e recolher o que encontrava pelo caminho; sua vida após o contato com os brancos, com a difícil adaptação ao modo de vida tão diferente; e finalmente o retorno à tribo, com o reencontro de parentes e amigos.

Um lado abordado, mas de forma muito superficial, é o contexto histórico e o conflito de classes que cerca a história. O ataque que resultou nos dez anos de isolamento de Carapirú tem origem no período de expansão econômica, a custa de exploração indiscriminada de terras indígenas e de comunidades locais. O exemplo mostrado é o de Serra Pelada, com o famoso “formigueiro humano” para extrair o ouro que financiou as obras faraônicas do governo militar. Além impacto social e ambiental o falso milagre econômico teve como consequência a dívida externa galopante do período.

Mais presente no filme são os impactos da cultura capitalista exploratória para as comunidades locais. Enquanto empresas, políticos e empresários enriqueceram muito com a exploração dos recursos naturais e da mão-de-obra local, as pessoas que ficaram nas serras – bem retratadas por Andrea – vivem uma realidade bastante diferente. As riquezas das grandes obras da década de 70 continuam extremamente distantes e o ouro, a madeira e todos os recursos retirados daquelas terras não foram transformados em infra-estrutura necessária para sanar necessidades básicas. A escola é precária – sequer tem um teto – as casas não oferecem conforto e a sensação é de que todo o duro trabalho daquelas pessoas na era de extração do ouro foi inútil.

Vi o filme duas vezes e em ambas ouvi críticas em relação ao tamanho e ao ritmo do trabalho. Entretanto o que torna Serra da Desordem difícil é a triste constatação de como a ordem de nossa sociedade traz um progresso para poucos, extremamente restrito e inacessível para muitos do que trabalharam duro, sem receber nada de bom em troca.


O Contador de Histórias


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O Contador de Histórias estreia em agosto, levando para as telas um pouco da vida de um dos 10 melhores contadores de histórias do mundo. Roberto Carlos Ramos (representado no filme por Daniel Henrique, Paulinho Mendes e Cleiton Santos, em diferentes idades) saiu da condição de “irrecuperável”, dada por funcionários da Febem aos treze anos, para se formar em pedagogia e ter sua vida retratada no cinema. Com produção de Denise Fraga e direção de Luiz Villaça, após ver o filme temos a impressão de que o roteiro já estava pronto com a vida do protagonista, bastou organizar os fatos e filmar, pois a vida de Roberto Carlos realmente parece uma ficção escrita por roteiristas.

Até os treze anos o contador de histórias seguia o que parecia ser seu destino. Aos seis anos foi levado pela mãe para a Febem, com o sonho de ver o filho formado; em meio as constantes fugas o menino aprendeu a roubar, usar drogas e a definir um futuro tristemente constante. A grande mudança na vida de Roberto foi a pedagoga francesa Margherit (Maria de Medeiros) que enxergou o óbvio: um ser humano de apenas treze anos não pode ser irrecuperável, salvo se ninguém fizer nada para mudar essa classificação.

Margherit era uma profissional, mas nem por isso deixou de passar grandes dificuldades no processo de recuperação de Roberto, que passou por etapas importantes desde o simples ato de olhar para frente – coibido em instituições para menores, onde estes são obrigados a olhar para baixo na presença de um agente – até a alfabetização e o ensino da língua francesa.

A história é muito bem contada no filme, de forma que seus detalhes devem ser conferidos na telona. Cabe neste espaço pensar que ela é uma exceção extrema no Brasil. Em meio a tantos internos que a Febem ou instituições semelhantes recebem, o número de “robertos” auxiliados por “margherites” tendem a zero. Isso não seria preocupante, pois a tutela dos menores deveria ficar a cargo das instituições, entretanto, não bastasse o fato desta tutela não proporcionar um futuro digno, ainda tem o efeito contrário, ou seja, em meio a surras e maus tratos os menores aprendem a não confiar nas pessoas e a viverem em um mundo onde o mais bem adaptado sobrevive, às margens da sociedade. Esta adaptação costuma vir em forma de roubos e uma série de outros delitos.

No filme, após uma série de atitudes condenáveis e propositais para provocar Margherit, o menino fecha os olhos e espera por um tapa – que não vem. Essa simples cena pode retratar nosso país e seus menores abandonados. Após atitudes evidentemente condenáveis como instituições falidas que anulam o futuro de tantos jovens, o estado fecha os olhos por indiferença, mas aqui o tapa vem. Seja pela violência direta de quem aprende cedo que a violência é o único caminho (pois ainda que não seja eles não têm exemplos contrários); seja por histórias como a de Roberto, que nos acerta com a prova de que com atenção e cuidados todos podem explorar seus potenciais ao invés de serem condenados à marginalidade.

Essa história emocionante, que pode servir de exemplo sob vários aspectos, pode também ser uma ótima provocação aos que acreditam que certas atitudes ou condições sociais são inevitáveis e até mesmo responsabilidade dos que estão excluídos da sociedade. Sem querer defender, aceitar ou tolerar a violência, insisto aqui que a vida de Roberto Carlos Ramos mostra muito bem dois extremos. Na Febem, imerso na violência física e psicológica, o menino tinha um comportamento de acordo com a forma que era tratado. Com o apoio de Margherit o árduo trabalho de ambos deu frutos, e um desses frutos é a evidência de que as pessoas – independente de origem, classe ou qualquer outro fator – podem chegar a uma vida digna em sociedade.


quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mulher Invisível

Estreia em junho o longa “Mulher Invisível” de Claudio Torres. Vi a pré estreia essa semana e o roteiro não me surpreendeu. Como podemos perceber pelo trailer, o filme não traz grandes questionamentos ou temas profundos, mas cumpre muito bem seu objetivo, que é arrancar boas risadas da plateia. A surpresa fica por conta da qualidade do trabalho final com a trilha sonora muito bem encaixada; a ótima direção de fotografia, que faz alguns cenários praticamente falarem com o público; e o estereótipo muito bem representado de certos personagens, nos passando a essência da classe retratada – como a vizinha que escuta os segredos do apartamento ao lado, a irmã conselheira, etc.
O filme mostra o potencial do cinema brasileiro, cujos profissionais dotados de competência precisam apenas de condições para realizar e divulgar seus trabalhos para que estes não fiquem devendo em nada às produções estrangeiras. Claro que respeitando os padrões orçamentários de uma economia bem diferente das grandes potências mundiais, os filmes nacionais contam com talento de seus profissionais para mostrar seu valor com os recursos disponíveis.
Em relação ao talento cabe atenção especial à atuação de Selton Melo, que faz o protagonista Pedro Albuquerque, controlador de transito que após o súbito abandono pela esposa passa por uma fase conturbada, até encontrar Amanda (Luana Piovani) a mulher perfeita, não fosse o fato dela só existir em seu pensamento. As cenas em que Selton atua sozinho, como se houvesse de fato uma pessoa real em sua frente, mostra que seu trabalho está a altura de Jim Carrey em “Eu, eu mesmo e Irene”. Estas cenas, juntamente com as que o personagem mostra-se extremamente confuso com a situação inacreditável pela qual passa, fazem a diversão do público que conta com uma comédia simples e muito bem produzida.
Com um público alvo bem abrangente por não focar nenhum grupo específico – basta que a pessoa goste de comédias sem grandes pretensões – o filme tem tudo para ganhar destaque no cenário nacional. A abordagem caricata de cenas do cotidiano agrada pela verossimilhança, pois excetuando a mulher imaginária, o enredo traz, de forma hiperbólica, situações como a separação conjugal, a adaptação da vida após o abandono, tentativas de conquistas amorosas e a relação entre desconhecidos que pode acontecer desde a forma mais tranquila e pacífica, até a mais complexa e conflituosa.
Fica implícito no filme que ao nos reconhecermos em certas cenas corroboramos a forte influência da cultura romântica na vida moderna. Ao encararmos o enredo como situações cotidianas de forma caricatural assumimos que necessitamos de um relacionamento, quase tanto quanto Pedro Albuquerque ou sua vizinha Vitória (Maria Manoella); e em certas horas nos bate o medo de que uma vida descompromissada resulte em uma velhice solitária, tal qual o medo de Carlos (Vladmir Brichta), ainda que a maioria de nós negue esse sentimento com veemência.
Fica aqui esta dica de boa diversão para o próximo fim de semana no cinema!


quarta-feira, 13 de maio de 2009

Simonal – ninguém sabe o duro que dei



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Chega às telas de cinema o filme “Simonal – ninguém sabe o duro que dei”, sobre um dos maiores cantores que nosso país já revelou e que protagoniza uma das histórias mais curiosas envolvendo a ditadura militar.

De origem muito humilde, filho de empregada doméstica, Simonal era dono de uma voz que bastaria para lhe dar projeção nacional após ter cumprido o serviço militar obrigatório. Mas, além disso, o carisma inigualável com que contava para manter toda a plateia em suas mãos fez de Simonal um ídolo nacional, tendo feito diversas apresentações no exterior nas décadas de 60 e 70. Em seus shows regia o público tal qual um maestro frente a uma orquestra chegando a ter, em show no Maracanãzinho, mais notoriedade que Sergio Mendes, logo após este ganhar o Grammy.

Ao contrário das expectativas criadas para quem atinge tamanho sucesso, Simonal morreu aos 62 anos de cirrose hepática, pobre, esquecido pela mídia e por boa parte dos amigos. O dono da bela voz não chega a ser um caso único neste sentido, afinal não faltam exemplos de artistas ou esportistas consagrados que encerram a vida no anonimato, muitas vezes passando necessidades. Aqui cabe uma das conclusões notáveis que podemos tirar pensando no enredo, juntamente com a história do Brasil.

Em um país que não prioriza a educação de seu povo, são frequentes os casos de pessoas que, famosas ou não, encontram dificuldades para administrar a carreira e muitas vezes passam de uma condição de vida confortável para sérias dificuldades, não ganhando o suficiente para sanar as necessidades mais básicas. Essa é uma das faces de um sistema educacional que, para dizer o mínimo, beira a falência.

Outro ponto bastante comum nas carreiras de grande sucesso, talvez com predominância entre artistas com formação precária, são os conflitos com empresários. Geralmente artistas alegam exploração por parte de empresários, que por sua vez alegam terem sido demitidos injustamente após colocarem os artistas no topo. No caso de Simonal todos esses elementos estavam presentes, portanto até aqui sua história tem poucos elementos novos.

A particularidade do caso começa ao cruzar o caminho da ditadura militar que utilizava um falso escudo de progresso econômico – no qual não podemos acreditar, pois pagaremos as dívidas econômicas da ditadura eternamente – para perseguir politicamente cidadãos que muitas vezes sequer tinham vínculo com a política. Fatos ocorridos durante a ditadura militar costumam ser obscuros, com várias versões e pouca documentação e a história de Simonal não é diferente, de modo que no documentário vemos diversas versões divergentes, diante das quais não é possível chegar a uma conclusão exata de quem está com a razão ou qual versão é falsa. O que podemos concluir é que após ter sido acusado de ordenar a tortura de seu ex-empresário, Simonal foi acusado, injustamente durante seu depoimento, de ser alcaguete a serviço dos militares.

No auge da luta pela democracia, na qual a classe artística teve grande destaque, Simonal foi visto como traidor e essa ideia foi estranhamente comprada por toda a mídia, cuja construção de notícias vem de longa data. A partir disso sua carreira entrou em declínio, perdeu contratos e sofreu boicote das casas de shows e veículos de comunicação como um todo. Até a sua morte sua carreira nunca mais foi reconhecida como no passado, mesmo após reunir documentos oficiais isentando a participação em órgãos militares. O cantor passou a enfrentar problemas com a depressão e alcoolismo que o levou a morte no ano 2000. Antes de cairmos na tentação de julgar os que se entregam à bebida, devemos pensar nas condições pelas quais muitas dessas pessoas passam; no caso específico o declínio da carreira, o abandono de pessoas próximas e a súbita mudança no estilo de vida.

Simonal entra para a história como mais um exemplo de um cidadão que fez de tudo para driblar as dificuldades impostas pelo sistema de seu próprio país, e ao chegar no auge de sua carreira foi derrubado por esse mesmo sistema por um conjunto de fatores como a falta de instrução, o preconceito, as armadilhas políticas, etc. A vida de quem, para Luis Carlos Miéle, é o maior cantor da história do Brasil merece nossa atenção, não só como um caso particular, mas também por nos mostrar o quanto nosso país pode ser cruel com seus cidadãos.


quinta-feira, 7 de maio de 2009

FilmeFobia


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FilmeFobia, de Kiko Goifman, estreou em São Paulo em apenas uma sala após receber o prêmio de melhor filme no 41º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Mais uma vez temos pouca atenção voltada a um trabalho nacional que não é uma obra prima do cinema brasileiro, mas chama a atenção pela inovação e questões um tanto polêmicas. Apesar das dificuldades habituais de levar um filme às salas de cinema e atrair o público, devemos ressaltar o bom trabalho de divulgação que estimulou o público a interagir, mandando fotos pessoais com os flyers do filme e instigando a curiosidade de todos.

Trata-se de um documentário fictício que mescla representações e filmagens de cenas reais mostrando pessoas diante de suas fobias. A ideia do diretor é exatamente causar desconforto em quem assiste e para isso a montagem das cenas é estruturada de forma a sugerir que se trata do making off de um documentário. O diretor fictício é Jean-Claude Bernadet, que faz papel homônimo mostrando debates por trás de um documentário real. São abordadas questões de ética – afinal colocar pessoas diante de seus maiores medos, ainda que com consentimento das mesmas, é sempre polêmico –, dúvidas em relação às filmagens que de fato aparecem no trabalho, sobre o impacto das imagens, a veracidade das reações, a melhor forma de apresentar as filmagens ao público, etc.

Goifman, o diretor real, já esperava pela repercussão do trabalho com diversas interpretações questionáveis. A princípio as duras críticas frustraram o diretor, antes da consagração do Festival de Brasília. Nos EUA muitos deixaram o cinema durante o filme, suas cenas foram vaiadas e acusadas de tortura. Sem querer misturar a opinião da população com uma postura do antigo governo, após as práticas norte-americanas em Guantánamo ao longo do governo de George Bush é curioso esta indignação deles com um filme.

De fato algumas cenas são bastante fortes, pois primeiramente o filme não trata de medo, mas de fobia, um receio mórbido, persistente e incontrolável. Além disso, os fóbicos não são simplesmente expostos ao seu temor, mas amarrados para não poderem fugir e, portanto, forçados a encarar o que abominam. Até aqui o termo tortura parece pertinente, só não podemos esquecer de que todos concordaram em participar, sabiam que seriam amarrados e levados a condições extremas. O próprio diretor participa das filmagens e desmaia algumas vezes ao enfrentar sua fobia de sangue.

Com todas as dificuldades expostas surgem as questões: qual o interesse de filmar alguém nessas condições e, talvez mais intrigante, o que leva alguém a sujeitar-se a isso?

Pois bem, segundo o diretor "a única imagem verdadeira é a de um fóbico diante de sua fobia" e essa ideia é seguida ao longo do filme – que por mesclar realidade com ficção, torna difícil distinguir o que é encenado e o que é real. A afirmação é questionável uma vez que a reação pode sim ser representada por bons atores, principalmente com algumas técnicas teatrais de Stanislaviski, e isso chega a ser admitido ao longo da obra, mas vemos também que quando a fonte de fobia é apresentada ao fóbico, ainda que este tente manter o controle, isso não é feito por muito tempo e logo a pessoa reagirá da forma mais espontânea possível – seja desmaiando, entrando em um estado de histeria ou simplesmente travando, tal qual uma presa diante de um predador. Neste ponto o longa é bem interessante por mostrar as diversas reações, ainda que algumas possam ser encenadas.

E para quem sofre com a fobia podemos supor – e o filme nos ajuda a isso – que há uma explicação plausível a essa exposição ao seu ponto mais fraco. O medo é completamente normal e necessário para qualquer pessoa, mas, como já citado, a abordagem não é o medo, mas a fobia que pode colocar qualquer um em uma situação constrangedora por não ter controle sobre as próprias reações. Vários exemplos são citados na obra desde os mais comuns como cobras, altura e sangue até os mais inusitados como ralos e botões, cuja exibição inevitavelmente gera certo humor àqueles que não têm problemas em abotoar as camisas.

Podemos concluir que certas fobias são facilmente contornáveis e basta que o fóbico mantenha sua distância, mas muitas vezes o pavor diante de situações cotidianas não pode ser simplesmente evitado ou ignorado. Enfrentar o objeto que causa tanta repulsa pode ser uma tentativa de superar traumas que causam limitações, constrangimento e vários outros problemas. Fica aqui a principal crítica ao filme que é a falta de respostas diante das experiências. Não há entrevistas posteriores nem algum outro tipo de exibição do resultado do enfrentamento da fobia pelo fóbico, portanto não sabemos se houve resultado positivo ou se algumas cenas aumentaram a necessidade de terapia.


terça-feira, 5 de maio de 2009

Camelos Também Choram


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O longo texto sobre esse filme é um resumo de um trabalho que fiz para a faculdade. O texto todo tem 12 páginas e tive que fazer vários cortes para não ficar tão grande aqui. Quem tiver interesse no texto completo entre em contato comigo pelo e-mail alexeap@india.com.

O filme Camelos Também Choram é o trabalho de conclusão do curso de cinema do diretor mongol Byambasuren Davaa e do italiano Luigi Falorni. O filme mostra as quatro gerações de uma família de nômades que habitam o deserto de Gobi, na Mongólia, e vivem da criação de camelos e cabras.

A primeira cena do filme mostra Janchiv, patriarca da família, contando uma lenda, segundo a qual os camelos possuíam chifres que lhes foram dados por Deus em recompensa pela sua bondade. Um dia um veado pediu os chifres emprestados para uma celebração o ocidente, entretanto nunca os devolveu e desde então os camelos olham para o horizonte a espera da devolução dos chifres. Esta lenda dá uma ideia de metáfora para o que é desenvolvido ao longo do filme que, além do fio condutor que é o filhote branco rejeitado pela mãe, mostra rituais e costumes dos nômades mongóis; um pouco de seu estilo de vida; e um conflito entre o tradicional e o moderno.

A principal forma utilizada ao longo do filme para evidenciar o conflito é utilizando as crianças que formam a quarta geração da família para questionar certos costumes e mostrar o desejo de novidades. Até a metade do filme todas as cenas são feitas nos arredores da tenda da família e os únicos elementos que mostram influência da modernidade sobre os nômades são um pequeno rádio de pilha, um binóculo e um gorro com o logotipo da marca Adidas utilizado por Ugna. Portanto a primeira metade do filme é focada em evidenciar o estilo de vida da família, mostrar alguns rituais e marcar essa separação entre gerações.

Vemos também na primeira parte do filme o motivo que leva os dois jovens nômades até a cidade, onde têm contato com produtos de um estilo de vida bastante diferente com o qual estão acostumados. É época de nascimento dos filhotes de camelo, percebemos como o conhecimento é passado dos mais velhos para os mais novos em situações cotidianas nas quais pequenos problemas são resolvidos em conjunto pela família e servem como uma forma de instrução dos mais novos pelos mais velhos. O primeiro camelo a nascer demanda, como manda as tradições locais, um ritual especial. Os homens mais velhos cortam um pouco do pelo de um animal adulto e essa lã é trançada em forma de corda por uma das mulheres, o recém nascido é adornado com algumas cordas coloridas e um pouco de leite é sacrificado para que o animal cresça forte e saudável. Esse é um dos rituais da tribo exibido no filme. Além de situações que são solucionadas em conjunto, passando conhecimento aos mais novos, é possível notar como é forte o valor das histórias utilizadas para transmitir a cultura dos nômades às novas gerações. Em determinado ponto Janchiv começa a contar mais uma lenda sobre camelos, associando o animal ao horóscopo, mas é interrompido pelo jovem Ugna que diz já saber a história e pede por alguma novidade.

Diferente do primeiro camelo que nasceu, o último parto do ano ocorreu em meio a complicações. Era a primeira gestação do animal que teve um parto longo e difícil, precisando da ajuda dos humanos para que a fêmea desse a luz a um grande filhote branco. Após o parto o filhote foi rejeitado pela mãe e não faltam motivos para tentarmos compreender o porquê da rejeição. O camelo que nasceu era branco; foi a primeira cria daquela fêmea; e por fim, o filme indica por meio de diálogos que provavelmente a rejeição se deu devido ao o parto ter sido extremamente trabalhoso, sendo que Janchiv teve que intervir até para que o recém nascido começasse a respirar.

No filme o que fica mais evidente no contexto é a aversão ao diferente, ao que é novo e foge do padrão, assim como a relutância por parte dos mais velhos em aceitar uma televisão desejada por Ugna. O aparelho não é visto com bons olhos pelos mais velhos, sobre o qual atribuem a ideia de um demônio e dizem que não é bom passar o tempo todo vendo imagens no vidro.

A família faz grande esforço para tentar aproximar a mãe de sua cria, mas as tentativas são frustradas. O contexto do filme e o modo como as cenas são dispostas nos faz ter realmente a sensação de que o pequeno camelo branco chora diante da rejeição.

Após uma tempestade de areia, em uma sequência que valoriza a fotografia e mostra um pouco dos percalços do local, é mostrado mais um ritual do qual participam todos os membros da família e outros nômades vindos para a realização do rito. Uma das falas indica uma ideia de causa e consequência entre a recente tempestade e o ritual, pois as orações são feitas aos espíritos que deveriam livrar o mundo das doenças e do mau tempo. O ritual é uma espécie de profilaxia contra futuras intempéries. Para o ritual todos utilizam vestimentas típicas.

Além de mostrar uma tradição do povo que vive no deserto mongol, existe na cena uma crítica à sociedade ocidental feita por meio das falas exibidas. O homem que conduz o ritual lembra que “a humanidade saqueia a terra e seus recursos” e que “devemos nos lembrar que não somos a última geração na terra”. Neste documentário a crítica insere-se na clivagem entre ocidente e oriente como mais um fator a ser repudiado e mais um motivo para que os nômades sejam avessos à uma maior aproximação com o ocidente.

Após a tempestade vemos uma cena que une muito bem a tentativa de transmitir hábitos do povo mongol com a história do camelo rejeitado que guia o documentário. Em uma conversa, Janchiv e Amgaa concluem que a única maneira de fazer com que a mãe aceite o filhote é através de um ritual Hoos. Para esse ritual era necessário um bom violinista e não havia nenhum nas proximidades, portanto seria necessário entrar em contato com algum na cidade.

Não há nenhum tipo de comunicação entre a família e outras localidades, desta forma a única maneira de contatar alguém de fora da aldeia é pessoalmente. Para isso a família resolve enviar Dude ao Aimak Center, que parece ser um centro comercial, com lojas, feiras e uma escola de artes. De acordo com a vontade das gerações mais velhas da família Dude deveria seguir sozinho, mas Ugna faz questão de ir junto.

A viagem das crianças dá início a segunda parte do filme, quando os meninos têm contato com novos elementos da civilização que trazem encantamento e surpresa. Na primeira parada, em uma tenda de outra família de nômades, os dois deparam-se com um aparelho de televisão e Ugna parece hipnotizado pelos desenhos animados. Entre as crianças presentes na tenda é possível notar que uma menina veste uma blusa com o logotipo da Nike, uma forma simples e bem direta de mostrar a presença ocidental.

Ao seguir viagem Dude tenta convencer o irmão de que é difícil adquirir uma televisão, já que o aparelho é caro e para funcionar precisa de energia elétrica. No final do filme podemos perceber que esse problema é sanado com placas de energia solar, ou seja, é cada vez mais próxima a presença da modernidade na vida dos nômades. Isso, de acordo com o ponto de vista dos mais velhos, é uma ameaça relativamente perigosa se associarmos com a lenda contada na abertura do filme. Na lenda o veado empresta os chifres, que haviam sido dados ao camelo como prêmio pela sua bondade, para uma celebração no ocidente, ou seja, essa representação da bondade foi usurpada do animal, que funciona como símbolo do deserto, após a presença do ocidente.

O contato com novos elementos continua de forma mais intensa quanto os meninos chegam ao Aimak Center. O vilarejo não chega a ser muito desenvolvido para os padrões de uma cidade grande, mas os jovens nômades que estão habituados com a vida simples, no meio do deserto, deparam-se com motocicletas e aparelhos eletrônicos que são bem diferentes do seu cotidiano. Para o verdadeiro intuito da viagem os jovens recebem ajuda de uma amiga de Janchiv. Ela leva os garotos ao violinista, que dá aulas de música em uma escola e lá o encantamento de Ugna volta a ficar evidente em meio às aulas de dança e de música presenciados pelos garotos. É interessante como ao longo do filme esse é o primeiro momento que percebemos a presença de uma música, não como trilha sonora para uma cena, mas como parte da história.

Além de entrar em contato com o músico os dois irmãos andaram pelo vilarejo, compraram sorvete e as pilhas para o rádio. Isso ganha importância quando, de volta à tenda da família, as crianças brincam simulando o comércio em uma feira. Ao longo do filme as brincadeiras e atividades lúdicas são raras e o cotidiano dos membros da família restringe-se mesmo ao trabalho de cuidar do rebanho e dos rituais. Como podemos ver, são atividades tradicionais e após o regresso da viagem dos meninos a brincadeira mostra a influência ocidental, a presença do comércio e o desejo das crianças de incluir esses hábitos em suas vidas.

Após a viagem o filme volta à sua guia, o filhote de camelo rejeitado após o parto. Na presença do músico a família parte para o ritual Hoos. A cena é longa e mostra toda a preparação do músico que utiliza um instrumento chamado morin khuur, uma rabeca de duas cordas. Notamos elementos característicos de rituais tribais, o instrumento é preparado sendo colocado em contato com o animal para que depois o músico comece seu trabalho; a princípio a fêmea fica agitada e relutante, mas a presença de Odgoo iniciando o canto de uma melodia que acompanha o som da rabeca parece acalmar o animal, que aos poucos se mostra mais manso.

Ao longo do ritual vemos o resultado esperado, aos poucos a fêmea cede à aproximação de seu filhote e durante o som da rabeca acompanhado pelo cantarolar de Odgoo o pequeno camelo consegue finalmente mamar sem ser rejeitado pela mãe. O desfecho é apresentado de forma bastante emotiva. A lágrima que escorre do olho da fêmea quando o filhote começa a mamar nos dá a nítida impressão de que ela está chorando e é inevitável projetarmos nos animais nossos conceitos de família e de afeto entre mães e filhos.

Para as duas histórias que seguem concomitantes ao longo do documentário temos dois finais separados. Temos o desfecho do camelo rejeitado, pois após finalizado o ritual todos fazem uma reunião com uma refeição e cantam enquanto o músico toca a rabeca.

O filme poderia ter seu final desta forma, mas os diretores dão seu desfecho para o conflito exposto e explorado ao longo do documentário do tradicional em contraste com o moderno. Embora a história dos dois camelos e a tentativa de aproximá-los seja o fio condutor de todo o filme, é fascinante o vislumbre da cultura nômade, seu estilo de vida estritamente simples e desprendido, a integração e adaptação ao meio em que vivem, com a religiosidade misturada ao respeito à natureza; e é curiosa a discordância entre os mais velhos e os mais novos. A cena final limita-se a mostrar Dude e Ugna instalando uma antena parabólica. De uma maneira simples somos levados de volta à primeira cena, quando Janchiv conta a lenda do camelo. Assim como o bondoso animal teve seu adorno roubado pelo veado para uma celebração no ocidente, os jovens podem ter sua inocência levada pelo mesmo ocidente através da influência cultural, simbolizada principalmente pelo aparelho considerado como uma coisa do demônio pelos mais velhos.


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