quarta-feira, 31 de maio de 2017

A culpa do cordeiro (La culpa del cordero)

Depois de 35 anos de casados, Jorge (Ricardo Couto) e Elena (Susana Groisman) convidam os filhos para um almoço de domingo. Uma bela peça de cordeiro é temperada com antecedência, todos os detalhes são organizados e em um belo dia ensolarado todos os convidados – quase intimados – chegam para a reunião em família, que prometia uma grande revelação por parte dos pais.

Dois filhos e duas filhas harmonizavam até as nuances genéticas de uma família equilibrada, feliz e perfeita. Por um convívio mais intenso Elena faz questão de recolher todos os celulares e acompanha de perto aqueles que se afastam por muito tempo.

O rigor dos pais parece extremamente compreensível. Recém aposentado, Jorge tem todo o direito de ditar as regras de seu churrasco e Elena parece fazer jus à ideia de que para a mãe os filhos serão sempre crianças. Mas é quebrando esse estereótipo de família perfeita que o diretor Gabriel Drak constrói sua comédia com fatos cotidianos, estereotipados, mas bastante plausíveis.

É claro que aquela família estilo comercial de margarina não existe na vida real. Porém pequenos entraves, naturais e inevitáveis, não desconstruiriam os planos do casal de ter uma aposentadoria tranquila e ver a vida dos filhos bem encaminhada.

Apesar disso, aos poucos, vemos que a aposentadoria tranquila está ameaçada por vidas não tão bem encaminhadas. Aparentemente o excesso de zelo materno formou adultos individualistas, desde que não seja rompido o apoio, sobretudo financeiro, dos pais.

Ao longo do filme o conflito de interesses passa a ser mais forte do que qualquer laço familiar e quando o caos se mostra irreversível só resta a cada um tentar minimizar as perdas. É muito cômodo, em uma situação onde todos têm comportamentos criticáveis, agirmos individualmente. Nos afastamos um pouco do problema e com uma visão minimamente privilegiada fica fácil apontar os defeitos.

O que vai ficando cada vez mais claro é que a aparência de uma vida perfeita sempre foi mais valorizada que a conduta moral da família. Em nenhum momento os filhos, já adultos, se portam como responsáveis pelos seus atos. A preocupação é sempre de esconder determinadas ações, para fugir da bronca dos pais.

Curioso que mesmo sendo quatro irmãos com idades próximas, a cumplicidade esperada entre irmãos se manifesta, mas também o egoísmo de quem está habituado a encarar o mundo como um privilegiado. É uma atitude condizente com o comportamento de Elena.

Não que Jorge esteja isento de críticas e possa ser visto como uma vítima, afinal são 35 anos de casamento, ao longo dos quais a vida do casal poderia ter tido mais empatia, mas a matriarca se refere à família sempre no coletivo, inclui o marido e os filhos em sua imagem de vida ideal, sem nunca questionar se esses valores são realmente compartilhados ou desejados por todos.

A relação de falsa independência, que quer expor os próprios ideais, porém sustentados por outra pessoa, é evidente em Elena. Idealizar o futuro dos seus sonhos e envolver várias pessoas para que sua realização particular seja completa é tão natural para a personagem, que ela sequer percebe que eventualmente as pessoas podem ter outros planos, sem sentir segurança para frustrar as suas expectativas.

Talvez pouco pudesse ser feito para que o domingo de farsa não descambasse para a tragédia. Os nervos foram levados ao limite, naquele ponto em que extravasar é indispensável e o caminho não tem mais volta. Entretanto é possível pensar que se Jorge tivesse sido um pouco mais incisivo em suas insatisfações ao longo do casamento e se Elena não sacrificasse a realidade em prol de suas idealizações de vida perfeita, uma dialética poderia ter sido construída de forma mais sólida.

Em tantos anos de casamento é inevitável que apareçam frustrações dos dois lados. Ao longo da vida costumamos desenvolver maturidade para adaptar as expectativas à realidade. Nosso ideal de vida nunca será alcançado, pois é um mundo onírico e perfeito que nunca será plenamente materializado.

Admitir que nossas expectativas devem ser moldadas à realidade – o que não significa abrir mão completamente do que queremos – é uma forma de respeito com as pessoas com quem interagimos e que também têm suas expectativas alteradas de acordo com nossas ações. Negar as próprias responsabilidades costuma ser cômodo, mas não adianta por a culpa no cordeiro do almoço, que reuniu a família.


terça-feira, 23 de maio de 2017

A que distância (Qué tan lejos)

Este filme nos proporciona um resumo de viagem entre Quito, a capital equatoriana, e a cidade de Cuenca, ao sul do país. Cada personagem tem seu motivo particular para cruzar o país. Mais do que os cerca de 500 km de distância, o que separa as cidades naquele dia é uma paralisação nacional dos trabalhadores.

A diretora Tania Hermida diversifica as personagens, todas carregadas de simbolismo, trazendo vários elementos à trama, que aparenta ter mais intenção de despertar questionamentos do que oferecer um resultado pontual.

Na trama a espanhola Esperanza (Tania Martinez) visita o país sul-americano com o peso de ter nascido na metrópole. É evidente que nenhum espanhol ou português de hoje tem responsabilidade direta sobre o que seus antepassados fizeram ao longo de séculos de exploração na América Latina, porém é igualmente inevitável ver tantos problemas sociais com raízes na colonização.

Em contraponto à Esperanza vemos a protagonista que se apresenta como Tristeza (Cecilia Vallejo). A jovem, idealista e passional, não hesita em cruzar o país para impedir o casamento daquele que acredita ser o amor de sua vida. A princípio não é com bons olhos que ela vê a estabanada turista espanhola, que parece ser bem pouco politizada para seus padrões.

No caminho de ambas está a greve geral, sem prazo para acabar, que poderia adiar a viagem. Esperanza poderia não conhecer o país e Tristeza chegaria tarde demais para tentar evitar o casamento. A diferença, mais do que a meta da viagem, está na reação de ambas.

Esperanza não compreende muito bem a motivação dos indígenas responsáveis pela paralização. Ainda que não existam imagens das manifestações, a indicação de que ela é coordenada por indígenas deixa claro que o movimento é articulado nas forças sindicais de base. Ainda que os espanhóis não tenham posto em prática uma política de extermínio indígena, até hoje os descendentes diretos dos incas formam a camada mais pobre da região andina.

Já Tristeza tem uma consciência política muito mais ligada ao movimento grevista e as dificuldades que a greve impõe não são empecilhos suficientes para que a jovem deixe de apoiar a causa. Determinada e irredutível em seu objetivo, ela resolve fazer a viagem, mesmo que para isso tenha que pedir carona e levar, à revelia, Esperanza.

O trajeto serve para algumas conversas esclarecedoras entre duas personagens que passam a desfazer preconceitos criados pelas respectivas primeiras impressões. Além disso, a diretora aproveita para exibir algumas características do país. Tanto as qualidades quanto os defeitos. Infelizmente parece que as belezas naturais concentram as qualidades que o país tem a oferecer, enquanto a insegurança e os problemas sociais diversificam os pontos negativos.

Até mesmo uma simples carona, que pode facilitar a vida de viajantes em muitos lugares, no Equador e na maior parte da América Latina é algo a ser feito com muito cuidado e atenção redobrada no caso de duas mulheres.

Entre tropeços e avanços, no caminho a dupla conhece Jesus (Pancho Aguirre). Enigmático e profundo, o personagem uma síntese entre o lado politizado de Tristeza e a maturidade de Esperanza para as questões emocionais.

O ator errante que cruza o país com as cinzas da avó em uma urna acaba sendo a metáfora de guia, que mostra às novas amigas tanto o caminho físico até Cuenca quanto um caminho emocional, através do desapego material e da sabedoria prática de lidar com situações adversas da vida.

É possível encontrar no filme uma tendência de dividir o sentimento passional. Uma parte é mais egoísta e expressa pelo desejo de Tristeza de reatar seu relacionamento. Neste sentido a imaturidade da menina é logo compreendida por seus dois amigos mais experientes, que notam o equívoco ao mesmo tempo em que se compadecem com o sentimento da jovem.

Além disso, existe uma passionalidade que visa algo maior que o indivíduo, que também tem Tristeza como ponto central, pois mesmo tendo sua viagem extremamente dificultada pela greve geral do país, ela não somente apoia o movimento como é bastante didática ao explicar para Esperanza que a causa era justa.

Tanto no cinema quanto na vida, são frequentes as histórias de amigos que partem para uma viagem trabalhosa, que acaba abalando a estrutura das amizades. Isso deixa ainda mais interessante o sentido inverso, quando uma viagem inusitada e não programada acaba unido personalidades aparentemente divergentes.


quarta-feira, 10 de maio de 2017

A despedida

A visão de mundo que temos, além de muito particular, oscila ao longo da vida. Por vezes de forma tão gradual que sequer percebemos. Da adolescência em que doze horas de sono não são nenhum absurdo, passando pela maturidade em que a necessidade de estabilização pessoal e profissional traz inseguranças, atravessamos nuances comportamentais até que alguns chegam em uma fase presumivelmente final.

De repente o corpo mirrado passa a pedir uma fralda geriátrica para estancar a falta de controle dos esfíncteres, sair sozinho da cama demanda um esforço que questiona se aquilo é mesmo pertinente, o banho matinal deve ser sentado e com toda a atenção para que um mero deslize não resulte em uma queda fatal, a barba insiste em crescer ignorando a falta de firmeza das mãos que mal dão conta de empunhar a lâmina de barbear. Neste cenário a bênção da consciência intacta é amaldiçoada pela percepção das habilidades perdidas.

Contrariando o provável pouco tempo restante de vida, o corpo exige paciência monástica para sustentar um resquício de orgulho e se vestir sozinho. Essa é a tarefa repetida diariamente ao longo de noventa e dois anos e que agora reduz as expectativas do velho Almirante (Nelson Xavier).

Sair sozinho para tomar café na rua. Difícil imaginar o que passa pela cabeça de alguém que ao anunciar algo que qualquer criança pode fazer, desperta no filho – com razão – temor e receio. O que o personagem ilustra é algo muito comum em pessoas cuja idade compromete severamente as habilidades físicas.

Aquele antigo almirante, de passado incógnito, mas que inevitavelmente prezava pelo físico militar, mal tem condições de caminhar pelas calçadas e ruas esburacadas. Caminhar sozinho é uma opção. O filho poderia acompanhá-lo, mas a necessidade é de provar a si mesmo que ainda pode ser independente. Como convencer um almirante de que agora nem à padaria ele pode ir sozinho?

Driblar os buracos no caminho, em uma cidade excludente para quem tem alguma dificuldade de locomoção, mostra quanto o descaso do poder público pode tornar ainda mais difícil a vida daqueles que merecem atenção direta e indireta do Estado. Seja através de serviços e benefícios, seja através de uma cidade estruturada, a atenção aos idosos é uma mínima retribuição aos serviços prestados ao longo da vida.

Diante da presunção de um fim próximo algumas necessidades podem ganhar peso, visando não deixar pendências. O antigo desafeto deve ser procurado, não para realçar os desaforos, mas para admitir os erros, pedir perdão e selar a paz com um abraço fraterno. Pouco importa o que houve no passado, talvez até mesmo o erro tenha sido bilateral, mas pode ser assumido sozinho, desde que isso sirva para tirar dos ombros debilitados o peso simbólico de uma culpa.

A despedida não estaria completa sem a presença de um amor. A relação com a amante, a enigmática Fátima (Juliana Paes), poderia render várias análises, explorando a questão patriarcal e os problemas envolvendo um relacionamento com idades tão díspares. Porém esse não é o objetivo do diretor Marcelo Galvão. 

Fátima não demonstra apenas carinho, afeto e respeito em relação ao amante, mas também respeito à sua condição física e consideração com seu esforço pela independência. Diferente dos familiares, ela não o trata como um objeto de cristal fino, mas como um homem debilitado pelos mesmos anos que proporcionaram conteúdo intelectual.

O impacto das situações extremas do filme, que é baseado em uma história real, pode despertar reflexões sobre temas recorrentes no contato entre idosos e pessoas mais jovens. É formado um conflito de interesses quando um lado quer preservar a integridade física de quem já está debilitado e outro quer lutar contra os efeitos adversos da idade.

Mais do que bater de frente com quem supostamente é teimoso e inconsequente, o filme mostra ser válida a tentativa de se colocar no lugar do outro, valorizando suas pequenas conquistas. Ao Almirante, e a tantos idosos em situação semelhante, o corpo já impõe regras suficientes.

Recusar um cuidado paternal que, invertendo a lógica, passa a vir dos filhos, não é teimosia nem falta de reconhecimento, mas sim uma tentativa de resistir e preservar a dignidade do que resta a ser vivido. Quando só a consciência está intacta e isso é encarado como algo ruim, ninguém tem o direito de privar o indivíduo até mesmo de suas próprias decisões.


* Eu estava na metade deste texto quando soube da morte do ator Nelson Xavier. Fica minha singela lembrança.


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