terça-feira, 23 de agosto de 2011

Diário de uma busca

O cinema latino está repleto de filmes que abordam as ditaduras militares que assolaram o continente na segunda metade do séc. XX. O tema é bastante compreensível, dado a forma com que estes governos assolaram os países, e muito importante para que as gerações seguintes às ditaduras tenham clareza sobre como a população era (mal)tratada, independente de indicadores econômicos. O diferencial do documentário de Flavia Castro é que a diretora não aborda uma grande personalidade ou um grande fato da história do Brasil, mas a história do militante Celso Afonso Gay de Castro, para ela o mais importante. Seu próprio pai.

Dentro desta proposta dificilmente o filme deixaria de ser intimista e a diretora explorou muito bem o recurso de contar a história da própria família. Todo narrado em primeira pessoa, o documentário ganha mesmo traços de um diário, que começa na década de 1960 e percorre os caminhos que o pai, militante de esquerda, foi obrigado a percorrer para fugir da perseguição política do regime opressor contra o qual lutava, até sua morte que, como tantas outras deste período, foi cercada de mistérios e contradições.

O resultado final mostra a trajetória de sua vida entrecortada com o final trágico e misterioso, sendo que um ponto marcante é que não se trata apenas da diretora contando a história de vida de Celso Castro, mas a construção de sua trajetória a partir de lembranças, documentos e entrevistas. Assim o filme não mostra como Flavia Castro se lembra dos fatos narrados, mas como a menina, filha de um casal de militantes, que vivia em reuniões políticas e frequentemente era obrigada a mudar de país, interpretava aquela situação bastante caótica até mesmo para um adulto.

Em meio a tanto material que nos fornece uma visão geral sobre a ditadura militar, encontramos no “Diário de uma busca” uma fonte bastante particular e pessoal, através da qual podemos fazer comparação com o todo e tirar conclusões específicas, não apenas dos efeitos gerais da repressão militar e supressão de direitos do cidadão, mas também as consequências desta situação de extrema tensão, tanto sobre quem dedicou a própria vida por uma causa, quanto para seus familiares e pessoas ao redor, como Sandra Castro e seu irmão Joca, que também participa do filme.

É de uma forma bastante imparcial que a diretora mostra a menina repreendida por chamar o pai pelo nome verdadeiro, ao invés do nome de guerra (seja lá o que isso signifique para uma criança), a ainda menina que acaba exigindo o direito de ao menos compartilhar um segredo com a melhor amiga, a jovem já bastante politizada depois de tantas reuniões partidárias, a moça que chegou a dividir suas angústias com o pai – que por um lado presenciou o fim da ditadura, mas por outro fez parte de uma geração que teve que lidar com uma grande frustração política – até chegarmos ao trabalho da cineasta, que de forma corajosa exibe, sem aparente rancor, o conteúdo de cartas e depoimentos de familiares, para tentar juntar, em uma espécie de quebra-cabeças, com o conteúdo de documentos oficiais e depoimentos de profissionais e quem sabe esclarecer um pouco a morte do pai – cabe chamar a atenção para a entrevista com o filósofo Daniel Bensaïd, pouco antes de sua morte.

É antiga a tentativa dos homens de reconstituir acontecimentos a partir de pequenos indícios encontrados em um local, sobretudo quando há um crime a ser desvendado. Se com o tempo a tecnologia interveio com ferramentas para facilitar o trabalho de peritos, fornecendo bases mais sólidas que as mágicas divagações de personagens literários como Aguste Dupin ou Sherlock Holmes, a força política interveio com a parcialidade e os interesses particulares sobrepostos aos públicos. Não são poucos os casos mal explicados ocorridos durante a ditadura militar, sendo que a insistente manutenção de documentos secretos dificulta, intencionalmente, ainda mais a investigação sobre o que realmente acontecia nos bastidores do poder naquela época.

O caso de Celso Castro é mais um em que as peças não se encaixam nem grosseiramente, pois os testemunhos são por vezes omissos, os laudos contradizem a versão oficial e os depoimentos de familiares e amigos, ainda que não tenham muito valor jurídico, não explicam porque Celso estaria envolvido no suposto assalto que culminou em sua morte. Para tornar o fato ainda mais misterioso, o apartamento no qual se desenvolveu a ação era de um ex-oficial nazista.

É impossível chegar a uma conclusão definitiva sobre um fato ocorrido há tanto tempo, porém com tantos interesses e tantos grupos políticos envolvidos, ou seja, militares, nazistas, militantes e todos interagindo em uma sociedade cujo cenário político era bastante tumultuado e transitório, não seria nenhum absurdo que a corda tenha arrebentado para o lado mais fraco.

O filme lança luz sobre a vida de um militante da época da ditadura, que individualmente pode não ser um ícone da política brasileira, mas assistir ao "Diário de uma busca" suscita algumas reflexões. Além do trabalho de Celso e tantos outros ser heroico, dado a discrepância de forças entre militares e civis, é prudente lembrarmos que os mesmos militares que (des)governaram o país ainda têm muita força política. É uma tarefa histórica e importante do cinema retratar certos períodos, de uma forma que pode se tornar didática aos que não viveram tal período.


quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Os famosos e os duendes da morte

My weariness amazes me, I'm branded on my feet,
I have no one to meet
And the ancient empty street's too dead for dreaming.
(Bob Dylan)


Depois de fazer sucesso na internet com o curta “Tapa na Pantera”, o diretor Esmir Filho lançou seu primeiro longa metragem, baseado no livro homônimo, de Ismael Caneppele, que no filme interpreta o misterioso Julian.

Vemos na tela elementos contemporâneos com os personagens que se comunicam pelo MSN e colocam vídeos no Youtube. O protagonista é um jovem conhecido pelo nickname Mr. Tambourine Man (Henrique Larré), que vive em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul e parece não caber dentro dos limites da cidade, ansiando ampliar seus horizontes e ao menos viajar para ver o show de Bob Dylan, famoso autor da música utilizada pelo jovem como nickname.

A internet e as músicas dão um verniz moderno para um tema antigo. Ao menos desde o romantismo vemos jovens lidando com existências aparentemente vazias, não condizendo com a realidade da maioria que os cerca. Características marcantes no período romântico, o suicídio e a morte permeiam o filme do começo ao fim. Para abordar o controverso e refutado tema da morte, tão marcante no romantismo, o diretor optou por uma estética simbolista, com fotografias claras e planos oscilando rapidamente entre sonho e realidade o diretor exibe sequências que dizem muito com poucos diálogos, apenas com imagens que a princípio confundem, mas aos poucos esclarecem tanto a história quanto o emaranhado de sentimentos do protagonista. Há também a metáfora – restrita a o título – utilizando a emblemática figura mitológica dos duendes, que não trabalham para o Papai Noel ou na história da Branca de Neve, mas para a morte, seduzindo e atraindo para ela.

Apesar da melancolia vivida pelo protagonista ser notada há séculos na sociedade, a história do filme traz duas particularidades decorrentes da pequena cidade em que se desenvolve. Primeiro que o suicídio não é um caso pontual e isolado na cidade, mas um problema aparentemente recorrente, já que por motivos diversos alguns moradores decidem saltar de uma ponte rumo ao suposto fim redentor. Além disso, o restante da população é composto por um povo alegre e coeso pelas tradições da colonização alemã, sendo que mesmo os jovens – geralmente contestadores e inovadores – se satisfazem com a rotina quebrada pela tradicional festa junina, mantida mesmo após um suicídio, mostrando o quanto o ato é banalizado no município e o quanto as tradições são mantidas e respeitadas. Ainda que essa alegria seja aparente e oculte angústias e tristezas pessoais, é suficiente para que os indivíduos se sintam incluídos em um grupo social.

A importância de sentir-se incluso em um grupo é claramente exposta por Émile Durkheim, no livro “O suicídio”, onde indica a existência do suicídio egoísta, caracterizado muito bem pelos elementos trabalhados no filme, ou seja, um indivíduo, ou um pequeno grupo deles, não se encaixa no ambiente onde vive, sente deslocado e incompreendido. A partir disso a conclusão que cada um tira da própria existência é variável, podendo perfeitamente caminhar para o sentimento de inutilidade, ou seja, dado à falta de relações que o prendam à sociedade, provocar a própria morte não apenas acabará com o sofrimento pessoal, mas ainda trará pouco impacto entre os demais – raciocínio que de certa forma é até corroborado pela banalidade com que os moradores encaram o fato.

Evidentemente o filme toca a cada um que assiste de forma diferente, ainda que alguns refutem o tema central e tentem reduzi-lo a uma bobagem tétrica, é inevitável a identificação pessoal em ao menos algumas cenas, sendo que muitos devem encontrar grande identificação com o personagem Mr. Tambourine Man. Importante ressaltar que a angústia do jovem, que vive sua vida virtual embalada ao som de Bob Dylan, também tem aspectos positivos, tais quais os poetas românticos que, se por um lado morriam cedo em virtude do spleen que os cercava, por outro deixavam obras admiráveis, extraídas da existência por vezes classificada de vazia, porém cheia o suficiente para gerar bons frutos. A morte prematura é trágica e lamentável, mas a vida morosa, imersa numa predestinação de felicidade sem motivo não é uma opção das mais atraentes.

No filme o protagonista conhece Julian, personagem obscuro e marginalizado, em parte pelo preconceito diante do que é desconhecido, mas talvez haja entre os dois uma cumplicidade de sentimentos suficiente para instigar maior contato, não necessariamente benéfico, porém diante de opções não muito atraentes para a vida, não há escolhas fáceis de serem tomadas, tão pouco caminhos agradáveis de serem seguidos. Provavelmente essa dificuldade é o que torna o filme tão atraente para alguns e entediante para outros – aqueles acostumados a fechar os olhos e aceitar o que for mais fácil.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Solidão e Fé

Mais que um documentário sobre rodeios, o que a diretora Tatiana Lohmann nos apresenta é um olhar feminino sobre um universo predominantemente masculino. Não se trata das mega produções milionárias em que se transformaram as festas de rodeio – ainda que inevitavelmente este seja o cenário de algumas partes do filme –, mas sim da visão bastante particular de uma cineasta que até então não conhecia os bastidores de uma arena e o quanto estes bastidores ainda mantêm da tradição que deu origem aos espetáculos atuais.

A ideia de domar um animal selvagem acompanha a história da humanidade desde seus primórdios e foi esse desejo, ou mesmo necessidade, que aliado à diversão nas horas vagas daqueles que conduziam o gado em longas jornadas, deu origem à festa realizada no meio rural. Aos poucos o entretenimento passou a ser lucrativo, portanto moldado para atrair cada vez mais público – e mais dinheiro. Em meio à modernização, a profissionalização e mesmo a transformação da festa em esporte, perdura a figura do peão de boiadeiro, visto muitas vezes como guerreiro, herói ou mesmo um mito, que enfrenta sua sina em uma arena repleta de espectadores.

Neste universo situado entre a modernidade e o tradicional Tatiana Lohmann opta por narrar seu trabalho em primeira pessoa, expondo claramente suas intenções e o caminho percorrido ao longo das gravações. O resultado desta escolha é extremamente positivo, pois a diretora expõe também os preconceitos que tinha antes de iniciar o trabalho – sem dúvida presentes em muitos que olham a sinopse do filme – e desconstrói pouco a pouco as barreiras que existiam entre a cineasta e o tema retratado. Assim como ela foi seduzida pelos bastidores do rodeio e seus personagens, sua forma de apresentar o trabalho também seduz a quem assiste e desfaz muitos preconceitos.

O primeiro ponto a ser desconstruído é a imagem de maus tratos aos animais, que recentemente passou a ser a grande polêmica em torno dos rodeios. O filme deixa claro que nenhuma injúria aos animais foi presenciada e que a fiscalização sobre o tratamento dos touros é rígida. É claro que as críticas em relação ao evento são muitas e existem diversos argumentos contra sua realização, mas uma das funções de um documentário é exatamente esclarecer alguns pontos relevantes sobre o tema analisado, sendo que nesta obra em particular é coerente a argumentação de que um touro de rodeio é um animal bastante valorizado neste meio, valendo uma pequena fortuna a seu proprietário, de forma que não seria muito inteligente maltratá-lo. Além disso, como já foi mencionado, o sistema capitalista lapidou os rodeios ao seu interesse, de forma que maus tratos significariam lucros menores.

Voltando o foco do documentário sobre a figura do peão de boiadeiro, Tatiana Lohmann torna marcante sua visão feminina sobre os homens que dedicam suas vidas às montarias. O olhar delicado, complementado pela narrativa suave da voz feminina, contrasta com a imagem do homem rústico, quebrando até mesmo a rigidez de cenas repletas de adrenalina, como o peão se preparando sobre o touro antes de entrar na arena. Até mesmo no machismo histórico, enraizado na figura do peão, a diretora encontra brechas como a forte ligação de um dos peões com sua mãe e a devoção de todos à figura feminina da Virgem Maria.

Fica claro com o desenrolar do filme como o estereótipo do indivíduo que ganha a vida de rodeio em rodeio é construído socialmente e é cercado por uma aura que encanta os que se aproximam. No depoimento dos homens mais velhos notamos um machismo latente, que hoje poderia beirar o cômico, não fossem as consequências trágicas que essa forma de preconceito pode acarretar; e é nesse meio bastante fechado e rígido que os peões nascem e crescem, desenvolvendo a personalidade com base nos discursos que acompanham desde pequenos. Aos poucos esse estereótipo vem mudando e os homens mais novos já não são tão radicais em suas falas, ainda que os resquícios do machismo ainda estejam presentes. Esta mudança também remete ao espetáculo que rompeu as fronteiras da área rural e agora deve servir às grandes massas. Aquela figura retratada pelos velhos homens de rodeio já não venderia tanto.

Aos poucos a figura do peão adaptou-se, mas não perdeu o encanto sobre o rodeio. É este encanto que aos poucos deixa a diretora do filme cada vez mais compenetrada em seu trabalho, trazendo consigo quem assiste ao filme e passa a compreender um pouco mais aqueles homens solitários – tanto na vida errante quanto nos segundos de eternidade sobre o touro –, devotos e que inconscientemente resgatam a figura do herói. Apesar do filme não ter a intenção de abordar aspectos econômicos dos rodeios, é evidente a disparidade da distribuição do lucro dos eventos, já que as arenas lotadas, que ostentam dezenas de logotipos e investem alto na caracterização do espetáculo contrastam com as casas simples daqueles que arriscam suas vidas – com total consciência e desejo – para levar entretenimento ao público. Ganhar um carro ou uma moto pode ser muito para os rapazes de vida simples que chegam ao estrelato relâmpago, mas não chega a fazer grande diferença no lucro que os rodeios promovem às empresas. Parece que o que move os peões é muito mais a paixão que o dinheiro.

Uma frase muito marcante de Tatiana Lohmann estampa os cartazes do filme: “Tem aspectos num homem que uma mulher não entende, só contempla.” A recíproca é verdadeira, pois a delicadeza extraída de um universo tradicionalmente rústico tem a marca feminina que ultrapassa nosso entendimento. Melhor mesmo é contemplar.

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