terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Natimorto

O diretor Paulo Machline trouxe para as telas todo o ambiente opressivo e misterioso do livro homônimo de Lourenço Mutarelli. Com muitas metáforas e algumas alegorias acompanhamos a obra que conta, na maior parte do tempo, com apenas duas personagens – o que deixa os diálogos densos e fundamentais.

É impossível dissociar a imagem de Lourenço Mutarelli da obra. Além de escrever o livro ele também encena o protagonista sem nome, agente que descobre um grande talento da música, a cantora lírica, também sem nome, interpretada por Simone Spoladore.

A partir desse encontro a relação de ambos passa a ser extremamente intensa e confusa. O agente tem hábitos bastante peculiares, como tentar prever o futuro utilizando imagens de maços de cigarro, tal qual um baralho de tarô. Há quem diga que essa é uma ideia tão insana quanto qualquer outra tentativa de olhar para o futuro.

Entre tantas perturbações pessoais o protagonista faz uma proposta que a cantora considera ao mesmo tempo absurda e tentadora: utilizar suas economias para viverem no quarto de hotel por vários anos, sem sair para nada.

O que fica gritante ao longo do filme é o cansaço do personagem diante dos percalços da vida. Não de uma dificuldade ou outra, mas da somatória de agressões diárias vindas de todos os lados. A solução para ele seria o isolamento total, se distanciando de qualquer contato com o mundo exterior. Não há no protagonista nenhum tipo de vitalidade para deixar o hotel e buscar novos projetos ou soluções para tantos problemas.

Mesmo que esse profundo estado depressivo não seja compartilhado pela cantora, que aceita dividir o quarto, mas não abre mão de sair e investir em sua carreira, é notável sua empatia com o agente. Talvez uma retribuição à oportunidade de vir para a cidade associada ao comodismo de um quarto compartilhado e mais barato, porém há também uma atração pela excentricidade das ideias e histórias do protagonista.

No sentido inverso, ele vê na cantora uma idealização de pessoa perfeita, imaginando que ela seria a única capaz de compreendê-lo e trata-lo da forma que ele gostaria. Essa busca de uma redenção também é frequente em casos graves de depressão, quando é criada pelo paciente uma situação platônica de espera pela perfeição, que evidentemente nunca chega.

Pode ser tênue a distância entre um comportamento patológico e outro excêntrico. Foi essa diferença, dissimulada pelo agente, que fez com que a princípio a cantora se satisfizesse com suas particularidades, até perceber que o mais provável seria a existência de algo mais grave do que uma personalidade marcante.

A brecha que Lourenço Mutarelli nos abre, perceptível também no filme, se dá pela relação de causa e consequência entre os períodos de lucidez e loucura de seu personagem, ou seja, não é difícil concordar com o sentimento de opressão que domina o personagem, afinal não faltam motivos para que às vezes possamos nos sentir agredidos pelo mundo e com vontade de um isolamento por completo; por outro lado nem todos cruzam a linha da insanidade, passando a por em prática verdadeiros absurdos.

O agente pode perfeitamente ser visto como uma pessoa perturbada que precisa de ajuda, mas não dá para ignorar os fatores que podem ter desencadeado essa patologia. Em uma sociedade extremamente agressiva que tenta padronizar ao máximo os comportamentos e frequentemente coibir as individualidades, é bem plausível que algumas pessoas simplesmente não consigam lidar com a pressão, sucumbindo de alguma forma.

A própria cantora mostra muita atração pelas ideias expressas. Talvez ela seja um contraponto que indica a situação não patológica das agressões sociais, quando os indivíduos expressam suas decepções e frustrações por um período determinado, voltando a retomar o ritmo de vida após viver a experiência do trauma. Já o agente deixa claro que todos os seus limites de tolerância já foram ultrapassados e em uma situação deste tipo dificilmente alguém consegue sair sem uma ajuda externa que de alguma forma mostre o caminho.

Foi o primeiro longa dirigido por Machline e a atuação de Mutarelli não é das mais profissionais, o que rendeu algumas críticas. Ainda assim o conteúdo do filme e as reflexões proporcionadas por ele não devem ser descartadas. Com diversas metáforas e ironias sutis, Natimorto traz o desconforto e o incomodo necessários para pensarmos em temas polêmicos e controversos.


terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Acima das nuvens (Clouds of Sils Maria)

O plano de fundo para o longa do diretor Olivier Assayas é a escolha das atrizes para a nova versão de uma peça de teatro, na qual a jovem Sigrid consegue seduzir e desestabilizar a experiente Helena. Com essa linha de raciocínio se estabelece um vínculo entre a fictícia peça, as personagens do filme e, até certo ponto, com as próprias atrizes.

A protagonista do filme é a atriz Maria Enders (Juliette Binoche, que não por acaso deu a ideia do filme ao diretor). Seu sucesso começou quando interpretou Sigrid e agora, com uma carreira já consolidada, Maria pode selecionar com rigor os convites que recebe, não somente para atuar, mas para entrevistas e fotografias. Para isso tem o auxílio de sua jovem assistente Valentine (Kristen Stewart).

Diante da possibilidade de voltar à peça que a consagrou, porém desta vez no papel de Helena, Maria fica muito hesitante. A alegação é a de que teve extrema identificação com Sigrid, não conseguindo agora se imaginar no papel da outra personagem. Com o desenrolar da história, algumas nuances indicam outra possibilidade.

Envelhecer, apesar de um processo inevitável da vida, é um medo muito comum, talvez ainda mais perceptível naqueles cuja profissão está diretamente ligada à imagem. Em uma sociedade patriarcal e machista, as mulheres costumam ter ainda mais pressão para manter a aparência jovem. Para Maria, aceitar o papel seria admitir para o mundo (e para ela) que sua idade já avançou o suficiente para que ela possa interpretar a mulher experiente da peça.

Mesmo bem sucedida profissionalmente, pelo que podemos acompanhar de sua vida Maria é bastante solitária, tanto que vê em Valentine mais que uma assistente. A moça acaba fazendo o papel de amiga, confidente, conselheira e por vezes passa a ideia de que isso só ocorre por estar sendo paga. Diante do que é apresentado da vida de Maria, parece que se ao menos ela tivesse um circulo de amigos da mesma faixa etária, teria o conforto de acompanhar o envelhecimento do grupo como um todo ao invés de acompanhar a passagem da própria vida, sem muitas referências mais próximas.

O contraponto dessa história é a atriz selecionada para viver Sigrid na atual versão. Jo-Ann Ellis (Chloë Grace Moretz) corrobora o estereótipo de atores da nova geração, que aparentemente conquistam mais pela beleza do que pelo talento. Se por um lado a interpretação de Maria tem muito mais qualidade do que a de Jo-Ann, por outro a atriz consagrada vê aquela que tem idade para ser sua filha como foco dos holofotes e flashes, fazendo com que fora do palco ela se torne uma mera coadjuvante de luxo para a menina que parece entender muito mais de escândalos do que de atuação.

Por mais que a protagonista conte com experiência pessoal e profissional, além de maturidade para lidar com uma situação deste tipo, o fato é que as pressões sociais que chegam sobre ela não são tão simples de serem assimiladas e trabalhadas. Racionalmente uma carreira de sucesso, sobretudo no cobiçado e hermético mundo artístico, é motivo de grande orgulho e satisfação. O que não elimina a frustração de ver alguém com menos talento sendo muito mais assediado.

Em um mundo voltado para resultados uma artista que enche um teatro é valorizada, porém qualquer coisa que leve milhões de espectadores às salas de cinema é economicamente muito mais lucrativo, assim toda a indústria prefere voltar sua atenção ao que trará mais dinheiro.

O que poderia atenuar a angústia de Maria seria o apoio de pessoas próximas, entretanto, como já mencionado, seu maior contato é com Valentine, sua assistente e grande admiradora de seu talento. Enquanto ambas riem dos escândalos pessoais de Jo-Ann a diversão de informalidade está garantida mesmo na relação profissional que serve de base para o contato das duas personagens. O problema é que Valentine não pertence à mesma geração de Maria, mas sim de Jo-Ann.

A assistente compreende o posicionamento de sua chefe e a conhece bem o suficiente para compreender o valor de seu trabalho, mas não despreza os valores de sua própria geração, inevitavelmente diferentes daquela que a precedeu.

Os conflitos entre gerações são inevitáveis. É bem provável que Maria, quando representou Sigrid na juventude, tenha despertado sentimentos semelhantes na atriz que fez o papel de Helena. Desta vez os sentimentos estão apenas mais intensos pelo fato da mesma atriz atuar depois de muitos anos.

O que sem dúvida poderia ser atenuado é o desconforto de Maria causado pela pressão social relacionada ao desprezo da velhice. Um dos vários problemas de vivermos presos à juventude é exatamente o sentimento de inadequação aos que se dão conta de que há uma nova geração fazendo o que eles já não têm condições.


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Love

Assim como a sociedade, o cinema de tempos em tempos supera algumas barreiras e o que antes era impensável acaba se tornado até banal. O primeiro beijo – um simples encostar de lábios – foi um escândalo, a primeira nudez, a primeira insinuação sexual, etc.

O diretor Gaspar Noé costuma explorar a fundo tanto as barreiras sociais quanto as cinematográficas, e aqui não é diferente. Em uma trama que trabalha os conflitos de um relacionamento extremamente liberal, que não isenta o casal de problemas, não poderia faltar cenas de sexo, exploradas ao máximo também pelo marketing, já que não se trata de insinuação, mas de sexo real entre os atores.

A trama entrecortada que mescla presente e passado, utilizada em outras obras do diretor, mostra desde o início que o casamento de Murphy (Karl Glusman) com Omi (Klara Kristin) não chega a ser nem satisfatório, e o bebê do casal parece mais um entrave do que uma família nuclear.

De fato o casamento é apenas um galho secundário da trama principal, seu relacionamento anterior, com Electra (Aomi Muyock), que o personagem revive em suas memórias. A história de um relacionamento que por ser intenso e liberal, tem o sexo com presença constante, havendo, portanto a necessidade de que seja mostrado com a naturalidade que acontece no relacionamento.

Muitas vezes usa-se a fugacidade dos relacionamentos atuais para uma pretensa defesa do comportamento conservador da sociedade, sobretudo anterior à década de 60. Isso fica mais evidente quando, em contraponto à liberdade comportamental francesa, um dos expoentes máximos de maio de 68, temos um protagonista norte-americano. A princípio Murphy parece extremamente livre de amarras morais, até que certos entraves veem à tona.

A quebra de padrões por parte do casal não significa sentimentos menos intensos do que os tradicionais casamentos extremamente longevos. Ambos apenas se recusam a aceitar uma rotina cada vez mais morna que costuma se estabelecer após alguns anos de união, compartilhando aos poucos suas fantasias e sempre que possível colocando-as em prática.

Ao invés de pensar em um relacionamento menos intenso, que por isso abre mão da exclusividade, vemos no filme uma relação sincera ao ponto de não permitir que a monotonia destrua o ímpeto do casal. É possível que eles reprimissem suas fantasias mais ousadas em favor de viverem felizes para sempre, ao estilo conto de fadas, que costuma se transformar em fins de semana arrastados em frente à tevê, até que a rotina de trabalho durante a semana volte a separar o casal. Há quem chame isso de amor.

O filme não entra diretamente em fatos históricos, mas podemos facilmente relacionar seus temas com o desenvolvimento social recente. Os frutos da década de 60 na Europa, sobretudo na França, se espalharam pelo mundo, chegando aos EUA na forma do movimento hippie e no Brasil – que evidentemente não tem nenhuma ligação com o filme, mas cabe lembrar – através da tropicália.

Esses são dois exemplos de movimentos que pregavam (e praticavam) extrema liberdade, contestando diversos níveis de autoridade na luta pela autonomia individual. Não dá para dizer que retrocedemos, mas o fato é que tanto aqui como nos EUA alguns posicionamentos políticos atuais, fortemente ligados à moral, dariam a impressão de luta perdida àqueles militantes do passado.

Murphy é fruto desse mundo contemporâneo, com forte influência da moral tradicional e ao mesmo tempo moldada por uma geração que lutou pela desconstrução desses valores. Ao menos pelo que o filme indica, os franceses teriam essa questão mais bem resolvida, já Murphy acaba seguindo o cômodo caminho da hipocrisia.

Enquanto há a proposta de uma mulher como terceiro elemento na relação é muito fácil, em uma sociedade machista, aceitar a ideia e ser visto como uma pessoa de mente aberta. O difícil é ter que realmente desconstruir um valor moral, que de uma forma mais rasa pode até ser visto como a aceitação de outro homem, mas de uma maneira mais inconsciente, o que Murphy e todos aqueles que ele representa precisam é aceitar que a mulher com quem ele se relaciona pode ter desejos tão impactantes quanto os dele.

As relações inusitadas do filme não visam uma forma correta de interação, afinal o certo ou errado pode ser extremamente variável de acordo com os valores de cada um, cabendo ao casal definir seus limites e regras. O que é colocado com muita competência é a necessidade de uma coerência, para que um falso liberalismo não sirva de égide para o milenar machismo que rege os relacionamentos em favor do homem.

Só para não passar em branco, a prova de que o marketing se serve muito bem das cenas de sexo é o trailer oficial do filme. Poderia ser o trailer de um filme pornô, mas Gaspar Noé é mais que isso. 


terça-feira, 24 de novembro de 2015

Sem pena

Que a situação dos presídios brasileiros é degradante e desumana, não dá para negar. A divergência em torno do tema é que muitos defendem que o tratamento dado aos presos deve mesmo ser o pior possível, destituído de qualquer tipo de consideração, dado que estão, em tese, pagando por um crime.

O que o diretor Eugênio Puppo faz em seu documentário é, através do depoimento de diversos envolvidos no sistema prisional, mostrar algumas incoerências que permeiam os presídios e o sistema judiciário, nascidas muitas vezes na desigualdade social, que faz com que aquele que julga esteja sempre muito distante da realidade do que é julgado.

Fomentada por diversos setores da sociedade, a ideia de justiça baseada exclusivamente na punição com o encarceramento ganha cada vez mais força em nosso país. Não por acaso temos a terceira maior população carcerária do mundo, que cresce a passos largos. O detalhe é que estamos atrás da China, com uma população mais de cinco vezes maior, e EUA, que além da população também maior tem uma política extremamente repressiva e criticável.

Uma das falsas premissas em relação ao tema é a de que se o indivíduo está preso é porque cometeu algum delito. Logo no primeiro depoimento essa ideia é rechaçada com a narrativa de alguém que foi confundido com o criminoso e cumpriu pena injustamente. De fato não há sistemas perfeitos e isentos de injustiça, entretanto o caso do filme é apenas um entre tantos que uma população carcerária tão grande implica; e com a condição tão precária dos presídios brasileiros é um motivo mais do que forte para não tolerarmos tais equívocos.

Outro problema latente é a desproporcionalidade da pena, que está diretamente ligada aos diversos preconceitos enraizados na sociedade. O direito não é uma ciência exata, muitas leis são imprecisas e a aplicação está sempre condicionada ao julgamento. Desta forma pessoas que são presas portando algum tipo de droga ilegal podem receber desde penas simbólicas, quando classificadas como usuários, até vários anos de prisão, mesmo portando pequenas quantidades de droga.

O radicalismo dos que afirmam que o porte de determinadas substâncias configura crime, passível de punição severa, deveria esbarrar na complexidade de problemas sociais, que não podem ser sanados com argumentos simplistas, quase infantis.

Vendo alguns depoimentos de presos e mesmo o de um juiz notamos o quanto existem percepções completamente distintas em relação à realidade que cada camada social vive. Apesar de ser muito evidente para aqueles que tiveram uma mínima condição de conforto ao longo da vida que algumas atitudes são ilegais, portanto passíveis de punição, uma parte considerável da sociedade nasceu e cresceu em um mundo completamente distinto.

Esperar que uma pessoa nasça e cresça em meio à violência, vendo parentes e vizinhos presos ou mortos, e ainda assim crie naturalmente um padrão moral semelhante ao da classe média, que sempre teve acesso à educação, cultura, lazer e tudo mais, é tão inocente quanto acreditar que o simples encarceramento por determinado período é eficiente no combate ao crime.

Independente de quanto tempo que um indivíduo passe trancado em uma cela inóspita, essa medida não é – e sequer tem a pretensão de ser – corretiva. Pode ser tentador, ao ver que um preso voltou a cometer um crime ao ser posto em liberdade, pensar que ele deveria ter passado mais tempo na cadeia, pois lá não teria como fazer nenhum mal, porém seria uma medida que somente adiaria o problema.

Alguns, até bem intencionados, acreditam ter encontrado a solução mágica ao afirmar que os presos deveriam trabalhar para bancarem o próprio sustento. De fato seria ótimo, talvez isso até capacitasse alguns deles para a vida pós-cárcere. Um detalhe relevante é que nenhum aspecto social deve ser encarado de forma isolada, pois os efeitos se espalham de forma ramificada. Em uma sociedade capitalista na qual sempre há um contingente de desempregados em maior ou menor porcentagem, alocar a população carcerária como força de trabalho implicaria em redução de salário, redução de vagas e aumento no desemprego entre os que não estão presos.

Ainda que fatores econômicos estejam na base de qualquer debate sobre o sistema prisional, não podemos restringir toda a criminalidade às necessidades econômicas. Basta pensarmos em grandes empresários que mesmo com ampla margem de lucro sonegam impostos – um tipo de crime que, não por acaso, não suscita reações de ódio.

Porém, mesmo as causas da violência sendo múltiplas, uma melhor equidade social só traria benefícios para um país tão carente de direitos e tão sedento por punições.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Numa escola de Havana (Conducta)

A educação em Cuba consegue competir em condições de igualdade com qualquer país de primeiro mundo. Diferente dos vizinhos caribenhos ou sul-americanos, a ilha tem índice de analfabetismo perto de zero, além de atingir metas da Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) que nem sempre são batidas por países desenvolvidos.

Entretanto o papel da escola na sociedade não se restringe a números. Talvez essa restrição seja até mesmo um dos grandes problemas da educação, independente do país. O que o diretor Ernesto Daranas mostra em seu longa é uma relação mais aprofundada e complexa, que não olha somente para as tabelas de resultado, mas para a escola inserida em um contexto social, relacionando os professores, alunos e familiares.

O protagonista é o jovem Chala (Armando Valdes Freire), o típico ‘aluno problema’, presente em todas as escolas. Estamos tão condicionados a pensar na escola como alunos sentados, em silêncio, ouvindo um professor ou copiando matéria, que o estereótipo do problema evidentemente são os alunos como Chala, que arruma brigas e promove desordem.

O que notamos com o desenrolar da história deveria ser bastante óbvio quando pensamos nos problemas da educação, ou seja, o comportamento humano não ocorre de forma puramente instintiva, estando diretamente ligado aos estímulos que recebemos, principalmente durante a infância.

É muito simplista olhar para uma sala de aula esperando que todos tenham o mesmo comportamento. Na verdade essa expectativa, que é generalizada, é tão absurda quanto a metodologia de lecionar o mesmo conteúdo, da mesma forma, esperando que todos aprendam de maneira homogênea. Somos seres distintos, compostos por inúmeras particularidades, que diferencia também a forma como cada um trabalha internamente os conteúdos apresentados.

No filme um pequeno contraponto do olhar incriminador lançado a Chala é a professora Carmela (Alina Rodriguez). Uma senhora que já formou diversas gerações de alunos e não restringe sua atuação à transmissão de conteúdo. Carmela tem uma relação muito mais próxima dos alunos, sendo para alguns quase um membro da família.

Do ponto de vista pedagógico poderíamos indicar alguns comportamentos questionáveis de Carmela, porém ela é a única que tenta compreender as atitudes de Chala a partir de sua história. Isso não quer dizer que ela permita qualquer atitude do menino, mas que compreende suas dificuldades.

Quem abstrai a vida familiar de Chala em sua escola ignora o fato do menino ter que lidar com a mãe dependente química, ter que adestrar cães para rinhas que renderão algum dinheiro e ter que lidar com a violência doméstica de um homem que ele nem sabe se é seu pai ou não. Seria no mínimo incoerente desprezar os problemas pessoais de uma criança se até na vida adulta, quando supostamente temos mais maturidade para lidar com dificuldades, levamos em conta aspectos pessoais ao avaliar o desempenho profissional.

Se a função da escola é formar cidadãos ela não deve se restringir ao conteúdo curricular e fechar os olhos para problemas externos quando um aluno não tem nenhuma outra fonte de ajuda. Isso seria a postura de uma instituição voltada para a formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho.

Sob este prisma o fato de ser um filme cubano cria uma diferença fundamental na história. Até aqui poderíamos substituir Chala por uma infinidade de crianças ao redor do mundo, que também precisam enfrentar problemas desproporcionais à idade, além de serem cobradas por um bom comportamento e desempenho na escola.

A diferença é que em Cuba, sobretudo no primeiro período da revolução, a ideia era justamente formar cidadãos críticos, emancipados de um mundo voltado para o trabalho que enriquece patrões e aliena empregados. Não por acaso Carmela já tem idade avançada e está prestes a se aposentar.

Com comportamento bem distinto, os professores mais novos da escola não mostram a mesma empatia nem a mesma paciência com Chala. Mesmo que tenham tido aula com Carmela em seus tempos de criança, os novos profissionais tem a tendência de apoiar a transferência de Chala para um internato. Uma atitude muito mais próxima de quem quer formar mão-de-obra, mesmo que para isso seja necessário excluir os que não conseguem se adequar a essa ideia.

É claro que a escola não deve ser a única instituição responsável pela formação do indivíduo. É possível dizer que não é sequer a principal instituição, já que a maioria das crianças chega à escola com uma base familiar, que segue se desenvolvendo ao longo de todo o período escolar. Entretanto quando essa regra falha, como no caso de Chala e de tantos outros, não há nada melhor que a escola para a transmissão de valores e para a formação de um indivíduo.

Restringir a vida à mão-de-obra já é uma ideia terrível, quando essa restrição é imposta a alguém que dificilmente poderá contar com alternativas externas, é quase uma condenação inapelável.


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Sala do Suicídio (Sala Samobójców)

No início do filme o adolescente Dominik (Jakub Gierszal) vive uma vida bastante confortável. Filho único em uma família rica, repleta de capital social e cultural, parecia ter um destino de sucesso traçado, desde que não saísse dos trilhos impostos pelos papéis sociais.

A guinada de sua vida começa na escola, quando começa a sentir atração por um amigo. O que era para ser uma brincadeira de adolescentes acaba ganhando outra dimensão e com a ajuda das redes sociais Dominik começa a sofrer de maneira intensa com o bullying.

É a partir deste ponto que o diretor Jan Komasa começa a diferenciar sua obra de tantas outras que abordam tema semelhante. Da mesma forma que na vida real inúmeros adolescentes sofrem bullying e reagem de diversas formas, Dominik é um exemplo de quem tem uma intolerância extrema aos insultos.

Não é possível julgarmos a reação das vítimas como certa ou errada. O erro está sempre naqueles que agridem; no caso do bullying essa agressão pode ser física, verbal ou virtual, como é o caso do filme. O extremo terror expresso pelo protagonista é compreensível ao pensarmos na sua relação com os pais.

Em nenhum momento Dominik tem uma educação efetiva por parte dos pais, que parecem confiar tão cegamente no caminho natural da vida do filho, que para eles significaria terminar os estudos, casar com uma bela moça e arrumar um excelente emprego, que sequer consideravam outra hipótese para o futuro dele.

O jovem que materialmente sempre teve tudo se mostra extremamente despreparado quando enfrenta uma situação de confronto. Sua reação diante do stress repentino é a fuga da realidade. A saída aparentemente perfeita vem com amigos virtuais que conhece na internet, que o apresentam à ‘Sala do suicídio’; um simulacro da realidade, onde cada um cria seu avatar e assume as características sonhadas – não necessariamente factíveis no mundo real.

Esse ambiente virtual tem ganhado muitos adeptos. O que a princípio parece apenas uma brincadeira ou um jogo acaba ganhando destaque a partir do momento em que mais ações podem ser representadas, fazendo com que as interações virtuais se aproximem bastante da expectativa dos participantes. Em pouco tempo algumas pessoas – como Dominik e os demais participantes da sala – passam a considerar aquele mundo virtual como suas vidas, não apenas como representações de avatares.

Podemos pensar em inúmeros problemas decorrentes dessa aparente substituição. O que fica mais evidente no filme é a fragilidade das relações que se estabelecem no ambiente virtual. Em comum todos querem a fuga de seus problemas, mas na ânsia de protagonizar a própria vida todos se esquecem de acolher quem está próximo.

Quando finalmente se dão conta de que algo está errado em casa, os pais de Dominik não veem um problema com o filho, mas um problema com os planos milimetricamente calculados por eles para a perpetuação de um futuro perfeito. O que os personagens do filme não percebem é que os planos só são perfeitos em um universo onírico. Mesmo no plano virtual nossos ideais esbarram em uma série de imprevistos, sobretudo quando nossas intenções se cruzam com as de outras pessoas. O inferno, já disse Sartre, são os outros.

Os pais do jovem, evidentemente acostumados a de uma forma ou de outra terem tudo o que querem, acreditam que mais uma vez estão diante de algo que podem comprar ou simplesmente conseguir com uma ordem. A ideia imediata, sobretudo partindo de quem não faz ideia de como funciona o mundo virtual, tão pouco tem noção de como se sente alguém que interage nesse mundo, é a mais simples, ou seja, afastar Dominik de seus novos amigos.

Para o jovem a ‘sala do suicídio’ não era apenas uma brincadeira ou um passatempo, era toda sua vida, seus amigos, um lugar onde podia se expressar e ao menos aparentemente ser compreendido.

É muito raso olhar para um simulacro do mundo real e considera-lo um ambiente menor. Como vemos no filme, aqueles que recorrem à sala buscam fugir de uma realidade cruel e desagradável. Entretanto é possível que o mundo virtual não seja tão diferente do que vivemos ao por os pés na rua. Assim como as decepções de cada um dos integrantes da sala são compostas por atitudes vidas de outras pessoas, lá dentro a única diferença é a imaterialidade, as pessoas, assim como suas atitudes e seus conflitos de interesse, permanecem os mesmos.


terça-feira, 27 de outubro de 2015

Beasts of no nation

Com seu longa o diretor Cary Joji Fukunaga parece não ter a intenção de entreter. Beasts of no nation é uma ficção baseada no livro homônimo de Uzodinma Iweala que mostra a dura realidade de um povo que precisa lutar pelas necessidades mais básicas, mesmo estando cercado de riquezas naturais.

É através da vida do pequeno Agu (Abraham Attah) que somos introduzidos em uma realidade extrema e cruel. Sua vida, sempre difícil, torna-se ainda pior após sua família ser assassinada por uma das milícias que tentam tomar o poder na região. Quase como um filhote de animal selvagem que perde a proteção dos pais, Agu não tem muitas alternativas se quiser continuar vivo.

Como acontece em qualquer território que tenha Estado omisso e desigualdade latente, as carências da população acabam virando moeda de troca, nesse caso servindo de base para a busca por apoio na guerra civil. É curioso notar que na guerra são incorporados elementos do mundo ocidental, como armas pesadas, para não dizer a própria ideia de aniquilamento do inimigo, porém muito dos costumes nativos são mantidos. Vemos uma soma de cultura com o pesar de contribuirmos com a pior parte.

Resta a Agu juntar-se ao exército composto por meninos não muito mais velhos que ele, recebendo o que seria um treinamento militar que não vai muito além de simular um rifle com um galho de árvore e talvez o mais importante: uma chance de sobreviver naquele ambiente hostil.

Não dá para dizer que no Brasil vivemos uma situação semelhante. A concretização de uma guerra civil, além das próprias características geográficas, nos afasta da condição do filme. Porém é inegável que a violência de nossa sociedade atinge níveis inaceitáveis, de forma que podemos ao menos imaginar uma analogia para que o contexto do filme fique mais próximo à nossa realidade.

Os planos abertos da área urbana do filme mostram um cenário semelhante a algumas favelas brasileiras. Moradias precárias, crescimento urbano sem planejamento e infraestrutura insuficiente para sanar as demandas da população, que acaba tendo a qualidade de vida extremamente comprometida.

O mesmo Estado que deveria ter o monopólio legítimo da violência deveria também fornecer condições de vida digna aos seus cidadãos. Ao abrir mão de políticas públicas de segurança, saúde, educação, etc. – seja no Brasil, na África ou em qualquer outro lugar – o Estado cria uma lacuna que quem conseguir preencher será aceito, ou pela simpatia proveniente da assistência ou pela intimidação da violência.

Nesse cenário a população acaba rendida, sem tem a quem recorrer. Em meio à violência os moradores locais acabam encontrando mais identificação com os grupos que lutam pelo poder, tanto por seus integrantes geralmente terem a mesma origem local quanto pela proximidade, infinitamente superior à de um Estado omisso e desinteressado nas necessidades mais urgentes dos moradores.

Quando o Estado atua somente combatendo a violência já institucionalizada não faz nada além de remediar de forma precária seus próprios erros, cometidos ao longo dos anos anteriores. Já os grupos que se digladiam pelo poder vivem quando muito uma ilusão de vitória, como, voltando ao filme, é o caso do personagem Commandant (Idris Elba), que lidera a milícia que aliciou Agu.

Uma diferença fundamental entre Estado e milícias de uma guerra civil é que estas não têm controle sobre as riquezas do país, nem negociam abertamente com empresas e órgãos internacionais. A partir do momento que existe um interesse externo em relação ao fim do conflito, existem mecanismos para que a guerra acabe e os líderes locais, que pareciam imbatíveis, tornam-se apenas mais uma peça descartada.

Nessa hierarquia social os líderes da guerra civil não estão muito acima dos demais indivíduos envolvidos direta ou indiretamente no conflito. O que vemos no filme é que Agu, algumas outras crianças e os jovens não perderam somente a infância – o que já não seria pouco –, muitos perderam sua civilidade, sua noção de indivíduo, sendo reduzidos a seres irracionais, que passam o dia em busca de alimento e fugindo da morte.

Conforme o próprio título indica, não são mais crianças, jovens ou adultos. Sequer são seres humanos. São bestas selvagens lutando pela sobrevivência, sem nenhuma identificação com a nação em que vivem, seja ela qual for. O paradoxo de bestializar esses indivíduos é que entre todas as espécies, a única que tem a capacidade de desvirtuar seus semelhantes a tal ponto é a nossa.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

Marcados Pela Guerra (Camp X-Ray)

A opinião mais comum sobre prisioneiros é que se uma pessoa está na cadeia é porque fez algo de errado, muitos ainda consideram que a condição de cárcere despe o indivíduo de qualquer direito, justificando qualquer tipo de tratamento que venha a receber de agentes da lei.

Em resumo essa era a ideia da protagonista Amy Cole (Kristen Stewart) quando, após se alistar no exército norte-americano, chega na prisão de Guantanamo. A versão oficial do exército e do governo é que a prisão é destinada aos terroristas, de forma que os militares já chegam no local dispostos a lidar com inimigos.

O diretor Peter Sattler construiu uma linha temporal simples, mas eficiente. Pouco a pouco os preconceitos em relação a prisioneiros e militares são apresentados, para serem desconstruídos ao longo das poucas relações que se estabelecem entre os personagens.

O detento que se destaca na trama e serve de contraponto às regras militares é Ali Amir (Peyman Moaadi). Os soldados devem vigiar os detentos constantemente, pois mesmo que passem o tempo todo isolados em uma cela individual, pequena e com opressoras paredes brancas, devem ser impedidos de cometer suicídio. Independente de como uma pessoa foi parar em Guantanamo e qual nossa opinião a respeito disso, não é difícil imaginar o desespero de passar vários anos isolado do mundo nessas condições.

Por parte dos militares, nenhum contato é permitido. Instigando o ódio e construindo uma personalidade animalizada aos detentos, o exército obriga que todos mantenham distância dos supostos terroristas, sem conversa, sem contato físico, usando até mesmo luvas cirúrgicas enquanto estão em serviço.

Ali Amir mostra o porquê de tanto rigor, primeiramente aparentando justificar todas as barbáries atribuídas aos detentos. O problema é que, conforme o próprio filme indica através da fala de um militar, os detentos conhecem empiricamente os procedimentos da prisão há anos, enquanto soldados como Amy ainda não conhecem bem as nuances da relação distante entre as partes envolvidas.

Com o tempo e com a paciência de quem passa longas horas sem entretenimento, Ali consegue começar a puxar conversa pela fresta da porta e a chamar a atenção da vigia que ele sequer sabe o nome, já que os militares são obrigados a andar sem identificação. De detalhe em detalhe Cole percebe que o detento está longe de ser um terrorista impiedoso que visa destruir seu país.

Mais velho e com muito mais cultura que a jovem militar que ainda não sabe muito bem o que quer, Ali consegue estabelecer um vínculo mais forte, ainda que somente por curtas conversas durante o turno de Cole, em contrapartida o comportamento hostil dos demais soldados em relação aos detentos começa a incomodá-la. Um motivo para isso é exatamente a justificativa para o exército exigir distância entre detentos e vigias, ou seja, uma vez estabelecido um vínculo que mostre aos americanos a pessoa que ocupa o lugar do suposto terrorista, seria muito mais fácil o desmascaramento de absurdos cometidos pelo exército.

Ali é apenas um dos detentos de Guantanamo que é mantido em cárcere injustamente e Cole é apenas uma entre diversos militares que aplicam as leis com a mesma facilidade com que quebram as regras quando convém. O filme nos instiga a pensar em quantos detentos e militares reais não são representados por esses personagens, atuando na vida real para manter vivo o medo exacerbado do terrorismo.

Da mesma forma que Cole chegou à prisão munida de todos os preconceitos que a convenciam de aceitar qualquer ordem como correta e necessária, o medo do terrorismo faz com que a população norte-americana não apenas apoie, mas exija do governo atitudes agressivas contra países inteiros, sob a justificativa de combate a um terrorismo muito mais psicológico que real.

Em uma escala distinta, porém mais próxima a nossa realidade, é possível afirmar que a estrutura baseada no medo atua também em presídios ditos comuns, que não abrigam terroristas. Ao transformar todos os presos em uma massa uniforme e isenta de individualidades os governos moldam um inimigo da sociedade e, de forma semelhante ao exército norte-americano, cometem barbáries com o apoio e o clamor de ampla parcela da sociedade, que acredita serem medidas necessárias para a segurança.

Pode ser que entre tantos detentos em Guantanamo haja potenciais terroristas, assim como entre milhares de presos em nosso sistema prisional há verdadeiros criminosos, mas tratar todos da mesma maneira não proporciona recuperação e ainda instiga o ódio, que traz mais problemas do que solução.


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Que Horas Ela Volta?

A atual relação entre patrões e empregadas domésticas tem raízes antigas em nosso país. Desde a época da escravidão os patrões mantinham empregadas destinadas a servi-los em cada detalhe do cotidiano. Esta obra da diretora Anna Muylaert mostra uma transição na forma como empregados e patrões se relacionam, ainda que persistam algumas características extremamente anacrônicas que demonstram uma exploração explícita, porém tão naturalizada que muitas vezes sequer é notada.

A protagonista Val (Regina Casé) representa brilhantemente um estereótipo mais antigo da empregada doméstica, que é o sonho de muitos patrões que buscam uma serva ao invés de uma trabalhadora. Val é extremamente dedicada, atenta aos mínimos detalhes, e é prestativa desde quando precisa servir um copo de água aos patrões até quando precisa ser quase uma babá do adolescente Fabinho (Michel Joelsas).

Ela vive um cotidiano determinista, no qual ocupa um local muito bem delimitado. Suas aspirações não vão além de mandar dinheiro para a família que ficou no nordeste e comprar alguns bens de consumo para mobiliar o quarto minúsculo relegado a ela em um canto externo da mansão suntuosa dos patrões.

Esse destino traçado ao longo dos séculos de escravidão que formaram nossa sociedade é interrompido quando a filha de Val, Jéssica (Camila Márdila), chega a São Paulo para prestar vestibular. A simples pretensão de cursar arquitetura em uma universidade pública já quebraria a expectativa de uma sociedade estratificada, na qual a filha de uma empregada nunca teria acesso a um emprego muito melhor que o da mãe.

Além disso, tendo tido acesso à educação e cultura, a menina tem uma postura social muito distinta daquela que sua mãe espera. Para Jéssica é um absurdo a mãe morar no serviço, principalmente morar em um cubículo de uma casa tão grande e vazia. Seus sonhos não são restritos ao consumo de bens e eletrodomésticos pagos em infinitas prestações.

Jéssica tem consciência de que o papel de cada um dentro daquela casa nada tem de natural, sendo somente uma perpetuação de uma sociedade similar às castas indianas, nas quais um indivíduo não pode de forma alguma ascender socialmente. Hoje, graças a um período mais longo de prosperidade econômica, muitos vivem uma situação semelhante à de Val e Jéssica, ou seja, jovens que não precisaram começar a trabalhar tão cedo, tendo a possibilidade de uma educação melhor, desenvolveram uma visão mais crítica do meio em que vivem.

É evidente que o cenário está longe do ideal. O fato de a menina prestar o vestibular almejando uma universidade pública já é um grande passo quando comparado ao cenário tradicional da relação entre patrões e empregados, porém ainda não existe a menor possibilidade de pensarmos em igualdade de condições. Basta uma olhada rápida para a família que emprega Val para notarmos o abismo existente entre os personagens.

Em uma situação como essa é recorrente o argumento de uma suposta meritocracia, que justificaria a posição social privilegiada de uns em detrimento de outros. Porém Carlos (Lourenço Mutarelli), o patriarca da família, deixa bem claro que vive da herança que recebeu de seu pai e atualmente não precisa trabalhar para sustentar a família.

Se por um lado suas atitudes demonstram uma vida vazia por trás de todo o luxo e conforto de quem vive de renda, por outro notamos um resquício latente de coronelismo naquele que, por sempre ter acesso a tudo o que quer, acredita ser onipotente, sem perceber que não há mérito algum em suas ações, mas apenas um poder financeiro que felizmente já não tem a força do passado.

O desdobramento da emancipação econômica é claramente demonstrado pela postura de Jéssica e os efeitos são espalhados pouco a pouco, quando a menina vai mostrando, às vezes de forma conflituosa, para a mãe como algumas atitudes dentro da casa não fazem sentido. Tudo isso é possível graças ao rompimento gradual – muito mais lendo do que o necessário – de barreiras sociais responsáveis pela manutenção de uma classe muito restrita no topo da pirâmide econômica.

Agora o desafio é impedir retrocessos advindos de crises econômicas, que sempre são mais custosas aos mais pobres, e garantir que jovens como Jéssica tenham não somente acesso ao estudo, mas condições de uma inserção real no mercado de trabalho. Diferente do que muitos insistem em tentar argumentar, isso não significa um privilégio. Privilégio têm aqueles que não precisam levantar do sofá sequer para pegar um copo d´água.


terça-feira, 29 de setembro de 2015

Dois dias, uma noite (Deux jours, une nuit)

Os irmãos Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne trazem às telas dois problemas que tendem a ficar cada vez mais comuns em nossa sociedade. Um deles é a depressão, que cresce a passos largos como um dos transtornos mais comuns entre as pessoas; o outro é o conflito de interesses no ambiente de trabalho, sem que este seja isento da influência da depressão.

O filme tem início com o fim da licença da protagonista Sandra (Marion Cotillard), que se afastou do emprego por estar deprimida. Ao invés de retomar seu cargo, os diretores da empresa chegaram à conclusão de que uma funcionária a menos não faria falta, de forma que os demais empregados votariam pela manutenção de Sandra ou um bônus de mil Euros – ficando implícito que alguém poderia ser demitido posteriormente, já que a produção poderia ser mantida sem um dos funcionários.

O estado de saúde de Sandra é complexo. A medicina está distante de um tratamento e diagnóstico precisos em relação aos distúrbios que levam à depressão, ou seja, não é algo que se mede através de um exame e mesmo os medicamentos têm efeitos variáveis de uma pessoa para a outra. A aptidão de um deprimido, portanto, é extremamente subjetiva e seu estado pode oscilar muito rapidamente.

Essa alternância no estado de ânimo vai se manifestar várias vezes no desenrolar da história, pois graças à insistência de Sandra e uma outra funcionária, o chefe aceitou realizar nova votação. Assim ela terá o fim de semana para falar com seus amigos e tentar fazer com que mudem de opinião, para conseguir maioria dos dezesseis votos.

Todo mundo gostaria de receber mil Euros, ainda mais com crises econômicas em ciclos cada vez mais curtos, e vemos como cada um dos funcionários têm seus motivos para votar pelo dinheiro. Alguns dão uma justificativa mais fria, outros instigam nossa compreensão, mas os discursos sempre estimulam algumas conclusões.

Abordados de forma mais superficial, podemos notar diversos temas permeando a vida dos personagens, como a imigração ilegal, machismo ou mesmo uma necessidade material, que em perspectiva podem ser facilmente classificada como menos importante que o emprego de Sandra, mas não temos elementos para julgar uma decisão pelo dinheiro sem conhecer os personagens de forma mais profunda.

Em nenhum momento devemos nos esquecer da condição psicológica da protagonista. Se chegou ao ponto de precisar de uma licença, sua depressão atingiu um nível elevado e a recente recuperação não implica em uma condição totalmente livre dos sintomas. A forma com que cada pessoa lida com os sintomas é muito variável e, no caso de Sandra, cada pequeno entrave é visto como um grande obstáculo intransponível, que a aproxima do estado deprimido.

A tendência pessimista de quem vive uma crise faz com que pequenos tropeços sejam encarados como a prova de que estão certos ao imaginarem que não são capazes. É uma espécie de situação invertida, ao invés de terem a noção de que estão vendo o mundo sob o véu da depressão, os deprimidos têm a ideia de que durante a manifestação dos sintomas estão finalmente enxergando a realidade sem distorções.

Somada a esse agravante, temos uma situação de concorrência interna inerente ao capitalismo. A amizade construída em um ambiente de trabalho em que os funcionários desempenham a mesma função pode facilmente esbarrar na disputa por uma vaga na empresa.

Tem se tornado cada vez mais comum as corporações adotarem um discurso demagógico de que estimulam o bem-estar e as relações amistosas entre os empregados, entretanto essa suposta cooperação deve ser em prol dos interesses econômicos dos empregadores, que adotam o velho discurso de que melhores resultados trarão benefícios para todos na empresa.

A partir do momento que os funcionários se organizam visando um benefício da categoria, o discurso é alterado. No filme, por exemplo, a opção do bônus parece tentadora e talvez até justa para alguns, porém sem dúvida a quantidade de trabalho passa a ser maior para cada um e a falta de consideração por parte da empresa que demite uma funcionária debilitada, ao invés de oferecer auxílio psicológico, poderá no futuro ser estendida a qualquer outro empregado.

A falta de empatia e muitas vezes o egoísmo dos personagens não se restringem ao filme, nem podem ser atribuídos exclusivamente à personalidade de cada um. A concorrência ilimitada é um fator real, percebido em muitas empresas, que pode afetar o desempenho do trabalhador de diversas formas. Quando a hostilidade de um local de trabalho encontra uma pessoa deprimida, ou potencialmente depressiva, o resultado para a empresa pode ser somente a necessidade de reposição de um funcionário, para o qual resta seguir em frente com mais um problema a ser resolvido.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

Pais e filhos (Soshite Chichi Ni Naru)

Neste longa o diretor Hirokazu Koreeda não chega a abordar um tema inovador. O guia central do filme já foi filmado diversas vezes, porém isso não reduz a qualidade do trabalho, que faz uma crítica muito interessante de um aspecto da sociedade japonesa que costumamos venerar por aqui.

O protagonista Ryota Nonomiya (Masaharu Fukuyama) tem a família que forma o estereótipo mais comum que fazemos do Japão. Um profissional bem sucedido, viciado em trabalho e que cria o filho de seis anos com rigor, para que este siga seus passos. Tudo ia bem até que a família descobre que o bebê foi trocado na maternidade.

Este é o tipo de problema para o qual não há uma solução fácil, para deixar tudo ainda mais complicado, com sempre acontece quando este problema ganha as telas, a outra família tem comportamento bem diferente, consequentemente o filho biológico já passou seis anos sendo criado de uma forma bem distinta da que Ryota esperava.

Alguns pontos podem ser ressaltados, pois ficam nas entrelinhas da crítica principal do filme. Geralmente olhamos para um recém-nascido como um ser em formação, que vai aprender tudo com aqueles que estão a sua volta. Não que esteja errado, mas esquecemos que, principalmente para aqueles que nunca tiveram um filho, existe também um aprendizado por parte dos pais. Ryota age sempre de forma segura e rigorosa, sem parar para refletir se suas ações estão realmente corretas, fechando os olhos para alternativas ao seu modo de agir.

Complementando essa ideia, o protagonista simboliza de forma direta aqueles que idealizam o futuro dos filhos e trabalham para que desde a infância a criança corresponda à expectativa criada. Nesse cenário extremo parece não haver espaço para a individualidade, já que todos os passos do filho são seguidos de perto e com rigidez para que este siga os passos do pai, ou os passos que o pai escolheu.

Era de se esperar que Ryota desse grande valor à ideia de que o filho é seu herdeiro, portanto ambos têm um laço sanguíneo. Apesar de, conforme indicado, não haver uma solução fácil para este problema, o comportamento do protagonista acaba dificultando ainda mais a situação, tanto com a criança quanto com sua esposa e com a outra família envolvida no caso.

O outro pai é Yudai Saiki (Lily Franky), mais velho e muito menos formal que Ryota. O tratamento que dá aos filhos também é muito distinto, não somente pela condição econômica. A família Saiki tem menos dinheiro, mas Yudai é muito mais presente na vida dos filhos, quebrando qualquer formalidade para brincar com as crianças, sem hesitar para rolar no chão ou entrar em um brinquedo do parque.

O problema da troca não se torna menor ou mais fácil para Yudai, mas ele simboliza um comportamento antagonista, que costuma ficar fora de nosso estereótipo de comportamento dos japoneses, mas que existe e é valorizado no filme. Ao exaltarmos o rigor e a seriedade como padrão de comportamento a ser seguido pensamos no resultado final, esquecendo do lado ruim deste processo.

Podemos pensar que para um pianista é melhor começar os estudos ainda na infância, assim como a criança criada por Ryota, de modo que o maior potencial de aprendizagem será utilizado ao máximo. O problema é quando este rigor atropela certas necessidades da infância que são igualmente importantes, tanto para a criança quanto para os pais, que pensando no futuro dos filhos chegam a perder o presente.

Chama a atenção no filme como as mães têm um papel secundário na história. A impressão que temos é que os filhos são só dos pais e eles tomarão as decisões que acharem melhor, independente de qual seja a opinião das esposas. Talvez esse fosse o comportamento esperado em relação ao que é construído para o personagem Ryota, mas o mesmo é notado em relação à família de Yudai. Dá a entender que este é o padrão da sociedade japonesa, que sem dúvida não é um modelo a ser seguido.

Mesmo que a intenção do diretor não tenha sido fazer um filme voltado ao público ocidental, o que ganha destaque é essa crítica a um modelo que estamos habituados a admirar e utilizar como exemplo a ser seguido. É sempre bom ver que o sucesso pode esconder muitos percalços ao ser imposto com tanto rigor.


terça-feira, 1 de setembro de 2015

Branco Sai, Preto Fica

Historicamente o cinema nacional alternativo deve driblar inúmeras dificuldades econômicas para desenvolver as narrativas. Não é diferente nesta obra do diretor Adirley Queirós, que chega a inserir uma viagem no tempo em seu filme, sem que isso implique em gastos astronômicos com efeitos especiais.

A base do enredo se desenvolve em uma região que escancara um abismo social gigantesco. Nos arredores de Brasília, que possui renda per capita compatível com as áreas mais ricas da Europa, estão as cidades satélites, periferia composta por descendentes daqueles que construíram a capital e vivem hoje em uma situação econômica oposta à magnificência da cidade que sedia o governo federal.

Um baile de black music realizado nessa periferia foi palco de mais uma intervenção desastrosa da polícia militar, criando dois protagonistas do filme, um cadeirante (Marquim do Tropa) atingido por um dos policiais e outro com a perna amputada (Shockito) ao ser pisoteado pela cavalaria da tropa.

Até aqui não há nada de ficção na trama. Trocando por um baile funk ou um show de rap falamos da realidade cotidiana de qualquer periferia brasileira, onde as ações com uso de força desproporcional, quando não desnecessária, da polícia militar fazem com que, segundo dado divulgado recentemente, dois terços da população tenham medo da instituição.

O passo seguinte do filme é hiperbolizar a realidade para escancarar os problemas sociais reais. O acesso da população retratada na capital brasileira já é restrito por uma série de fatores econômicos e sociais; no filme este acesso é restrito para quem tem um passaporte, que logo vira moeda de troca de altíssimo valor.

Além disso, a impunidade que costuma absolver policiais militares que cometem verdadeiras atrocidades é tão institucionalizada que é combatida por autoridades do futuro, que mandam um agente (Dilmar Durães) em uma viagem no tempo para reunir provas contra a corporação.

Permeando a questão central da injustiça, que coloca vítimas como culpados e absolve criminosos, vemos as dificuldades de quem não conta com a assistência mínima por parte do estado. O cadeirante passa boa parte do dia fazendo a programação de sua rádio pirata, montada no porão de sua casa. Não contando com mais que elevadores precários para que a locomoção possa ser feita em seu sobrado, vemos poucas alternativas para o personagem que passará o resto da vida naquela situação.

Cadeirantes passam por uma reformulação total da vida, não é somente uma questão de mobilidade – como se fosse pouco – mas uma mudança psicológica, uma reordenação de atividades simples que passam a tomar muito mais tempo e dificuldades que apesar de evidentes nós nunca paramos para pensar. O mínimo de coerência por parte de um Estado que torna um de seus cidadãos paraplégico é oferecer-lhe todas as condições de conforto, para tentar ao menos minimizar suas dificuldades antes inexistentes.

A situação do personagem amputado não é muito melhor. Evidentemente suas limitações são menores, já que uma prótese é bem mais simples e eficiente do que uma cadeira-de-rodas, porém não é aceitável que mais uma vítima gratuita da violência estatal tenha que permanecer trabalhando para prover o próprio sustento.

Como já foi dito, a narrativa do filme é baseada em extrapolar a realidade. Em teoria essas vítimas da violência teriam garantida ao menos uma pensão vitalícia, na prática o que vemos são pequenas esmolas se comparadas às reais necessidades de acompanhamento médico em diversas áreas.

A parte de ficção científica do filme, que envolve a viagem no tempo, traz um lado mais lúdico e cômico à trama. Porém analisando os fatos comparados ao que temos no cotidiano, mais absurdo do que um personagem viajar no tempo para reunir provas de um crime é a veracidade de personagens lesados permanentemente por aqueles que deveriam zelar pela segurança, para que posteriormente tenham que levar uma vida dura, marcada por batalhas diárias, enquanto os responsáveis seguem suas vidas profissionais, aterrorizando a população marginalizada.

Branco sai, preto fica traz uma infinidade de denúncias sociais que qualquer país minimamente civilizado já deveria ter sanado. Uma população que tem medo da polícia, que por sua vez dá todos os motivos para que esse medo fique cada vez maior, não tem como se sentir segura. Cidadãos que devem recorrer a tratamentos caseiros por não poderem contar com o atendimento profissional em um hospital não têm como manter a confiança em um Estado que além de abusar da violência não cuida de suas vítimas.

O ideal seria olhar todo o argumento do filme como uma ficção científica insólita. Infelizmente chega a este nível somente a viagem no tempo, o restante dos fatos são assustadoramente plausíveis.


terça-feira, 25 de agosto de 2015

A festa de despedida (Mita Tova)

Existem várias formas de abordar um tema polêmico em filmes. A adotada pelos diretores Sharon Maymon e Tal Granit utiliza o humor para aliviar o peso de algumas cenas mais tensas, que são inevitáveis ao falar sobre abreviar a vida de doentes terminais.

Toda a trama é vivida por um grupo de idosos que moram em uma casa de repouso em Jerusalém. Diante do sofrimento de um deles, que no leito do hospital pedia insistentemente para que encerrassem com sua dor através da eutanásia, o grupo passa a discutir a viabilidade de, contra a lei, tomar alguma atitude que resultasse na morte, e consequente alívio, do amigo.

Até esse ponto já temos uma polêmica gigantesca, debatida por vários setores da sociedade há séculos. O médico do grupo lembra o juramento de Hipócrates para alegar que não pode fazer nada neste sentido, os demais se questionam quanto à legalidade do ato, além do constrangimento de ajudar um amigo a acabar com a própria vida.

Com um tema tão controverso, dificilmente um consenso é encontrado. No filme não é diferente. Ainda assim Yehezkel (Ze'ev Revach) cria uma máquina que, acionada pelo próprio paciente, libera anestésico e depois uma substância letal. O sofrimento do paciente pode terminar, mas sem dúvida aqueles que seguem a vida vão precisar de tempo para se recompor.

Tudo parecia resolvido, não fosse pelo fato de um desconhecido ficar sabendo da máquina e ter a esposa em uma cama de hospital, pedindo pela eutanásia. Nessas horas parece que nosso senso de justiça por direitos iguais é aflorado e nada convence o personagem a desistir de ajudar a esposa.

Sempre com humor os diretores mostram como pode ser grande a demanda pela eutanásia. A grande maioria das pessoas sonha com uma morte súbita, indolor, com total repulsa à ideia de ficar entubado em um quarto de hospital. Ainda que a prática fosse legalizada, a decisão final seria difícil para todos os envolvidos. Desde o médico que cuida do paciente e considera a possibilidade de cura, até a família que além dessa mesma hipótese encara a dificuldade de perder uma pessoa importante.

Um de tantos problemas que pairam sobre o tema é a diferença de percepção de quando olhamos para um caso distante e quando vivenciamos o problema de perto. Uma coisa é imaginarmos o que faríamos diante de uma situação semelhante a do filme, onde um idoso sofre sem esperança – talvez até sem vontade – de melhora. Outra coisa bem diferente é olharmos para uma pessoa com quem temos forte laço afetivo, em uma situação extremamente delicada em um hospital.

Ouvir o desejo enfático de morrer e até considerar, racionalmente, que esta seja a melhor opção não nos garante a frieza de auxiliar de alguma forma a eutanásia. É uma dessas situações cuja reação que nos suscitará é imprevisível, só quem vive é que pode dizer qual é a própria reação.

Com a disseminação da procura pela máquina inventada por Yehezkel outro problema vem à tona. Qual o momento de recorrer à máquina? Na ânsia por abreviar o sofrimento é inevitável o risco de impedir uma possível cura, ou ainda, na ausência de um laudo médico, nada garante que o paciente não esteja dramatizando uma situação que justifique seu real desejo de encerrar sua vida. Com a depressão na terceira idade se manifestando de forma bastante comum e com difícil diagnóstico, um idoso do filme pode simplesmente querer a eutanásia para se livrar de uma vida solitária e infeliz, ao invés de passar por um tratamento psiquiátrico.

Podemos pensar também nas doenças degenerativas. O limite da tolerância é inexistente. Cada paciente tem sua própria avaliação, que pode ir em sentido contrário ao dos médicos e das pessoas próximas sobre o próprio estado de saúde. É uma análise pessoal, porém sempre tendenciosa, pelo fato da pessoa sempre considerar a relevância de se evitar futuros sofrimentos e constrangimentos causados pelos sintomas de sua doença.

Além de abordar os temas polêmicos e tensos de uma forma bastante sensível, estimulando nossa reflexão acerca do que é exibido, os diretores também têm o grande mérito de conseguir inserir humor na medida certa, aliviando a tensão e divertindo à medida em que também instrui. É um equilíbrio difícil de ser acertado, mas como bem podemos ver neste caso, o resultado pode ser muito agradável.


terça-feira, 18 de agosto de 2015

Tiranossauro (Tyrannosaur)

Lidar com a angústia tem se tornado uma luta cada vez mais comum. Em maior ou menor quantidade quase todo mundo já se deparou com situações aflitivas e a forma com que cada um reage a essas situações varia muito. Esse sentimento parece ser a base deste longa do diretor Paddy Considine.

Não é apenas internamente que devemos trabalhar nossas angústias. A maneira com a qual exteriorizamos o sentimento é bastante particular e à medida que temos uma vida social, o comportamento gerado pela angústia interfere bastante em nossa vida e nas relações pessoais que estabelecemos.

Um dos extremos do filme é Joseph (Peter Mullan). Sentindo o peso da idade, seu passado parece atormentá-lo ainda mais que o presente. Fechado e com uma personalidade marcante, geralmente agressiva, parece que colhe a solidão que cultivou ao longo da vida.

É fugindo de uma das tantas confusões nas quais se envolve que o personagem entra no brechó de Hannah (Olivia Colman). Entre todas as reações que um sujeito cambaleando e desorientado pode suscitar ao entrar em uma loja vazia, Hannah exprime a que lhe dá conforto; oferece apoio ao desconhecido com base na sua própria fé, que a princípio serve de amparo para qualquer dificuldade que cruze seu caminho.

Independente de qual seja, a fé costuma ser um grande conforto em situações de extrema angústia. A ideia de um ser superior nos olhando e, sobretudo, cuidando de nossos problemas é agradável por intervir diretamente em uma das necessidades imediatas que o sentimento proporciona, ou seja, oferece cuidado e promete justiça.

O problema da fé é que ela é sempre muito abstrata. Não dá para controlar os fatores que levam uma pessoa a crer ou não em determinada religião, de forma que nada fará com que Joseph passe a ser religioso. Às vezes a conversão ocorre e não são poucos os casos de pessoas que dizem ter ‘encontrado o caminho’ ao entrar para uma igreja. É bom que essas pessoas não cruzem com um personagem como Joseph, que não mede esforços para deixar claro que todo o conforto religioso não passa de um engodo, vazio de conteúdo.

Invertendo o ponto de vista, Hannah tem uma personalidade muito mais contida que a de Joseph. Fica evidente ao longo do filme que ela acumula suas emoções ao máximo, o que não significa que não é atingida pelos efeitos negativos de alguns sentimentos. O que vemos fora das telas é que a propensão a um acesso de fúria por parte de pessoas assim é possível, mas muito menos frequente, sendo necessário estímulos muito mais intensos do que ao explosivo Joseph.

É curioso que por mais que sejamos complacentes com as dificuldades de Joseph, não é o tipo de personagem que chegamos a sentir pena ou mesmo defender com muito empenho. Ainda que ele sinta o peso da solidão, seja responsável em determinadas situações e justo em relação àqueles que precisam de ajuda, trata-se de um personagem bastante amargo e o remorso que demonstra por algumas atitudes do passado é logo coberto por algum momento mais egoísta.

Por outro lado, Hannah tem uma postura tão passiva diante das injustiças que sofre que não há como não a olhar como vítima. Com um marido que usa o discurso da moral cristã como escudo para poder agredi-la, física e psicologicamente, sua reação mais transgressora é beber escondida, rezando, como sempre, para que as coisas melhorem.

É claro que nas entrelinhas dessa trama principal há uma série de temas polêmicos, que isoladamente já renderiam um filme cada. O machismo no casamento de Hannah, o peso da idade do – também machista – Joseph, a trama de apoio formada pelos vizinhos de Joseph – que envolve uma criança em uma família desestruturada –, etc., tudo muito bem amarrado, dando um ritmo muito bom ao filme.

Quanto à angústia dos protagonistas, parece ficar cada vez mais clara ao longo da história a ideia de que é no mínimo imprudente julgar as maneiras que as pessoas encontram para lidar com o sentimento. É claro que nem tudo é aceitável, mas o fato de Joseph criticar a postura religiosa de Hannah não significa que ele sabe como se tranquilizar de forma satisfatória.

Entre os dois extremos retratados, as pessoas buscam inúmeras alternativas para o próprio desconforto. Drogas – lícitas e ilícitas –, relações sociais, hobbies, esportes... uns são muito mais aceitos que outros, mas em condições limites, como algumas apresentadas no filme, o respeito e consideração em relação aos que estão sofrendo são sempre muito bem-vindos.


terça-feira, 11 de agosto de 2015

A história da eternidade

Para contar sua história da eternidade o diretor Camilo Cavalcante intercala três tramas que se desenvolvem em um pequeno povoado do sertão nordestino. Em meio a diversas obras que narram a saga deste povo sofrido, que segue rendendo material a ser denunciado através da arte, este longa se destaca por colocar três protagonistas mulheres nas histórias, com cada uma tendo que lidar com seus próprios problemas e de alguma forma interagir com os personagens masculinos, que às vezes têm comportamentos vergonhosos.

Infelizmente alguns elementos ainda não podem faltar quando se pretende fazer um retrato realista da sociedade em questão. Logo no início somos apresentados a Querência (Marcélia Cartaxo), que enterra o filho em um pequeno caixão branco, coberto com a terra árida e poeirenta do local. Difícil pensar em quanto deve durar o luto de uma mãe e como devem ser inseridas novas histórias em sua vida, incluindo o afeto em relação a Ederaldo (Leonardo França), o sanfoneiro cego que não se cansa de tentar conquista-la.

Mais jovem, a adolescente Alfonsina (Débora Ingrid) assume o papel da mãe, que talvez tenha morrido, cuidando da casa e cozinhando para os irmãos, o pai e o tio. Ao que tudo indica a menina personaliza um estereótipo fatalista do gênero feminino em uma sociedade não apenas machista, mas restrita em um modo de vida com pouquíssimas alternativas. O talento da jovem atriz associado ao sempre brilhante Irandhir Santos, que faz o papel do tio Joo, dão destaque à história.

A menina é o vértice de dois extremos. Seu pai, Nataniel (Claudio Jaborandy), é a imagem clássica do sertanejo vaqueiro, que mantém uma vida extremamente dura para sustentar a família em terra tão hostil – o que não justifica certas atitudes do personagem. Já seu tio é um artista que estimula os sonhos da menina e o desgosto do irmão, que não vê com bons olhos suas performances artísticas incompatíveis com o estilo de vida do tradicional “cabra macho”.

Por fim a terceira história que se mescla às outras duas traz Das Dores (Zezita Matos), já idosa e solitária, que fica radiante com a notícia de que o neto Geraldo (Maxwell Nascimento) virá de São Paulo passar alguns dias com ela. Como era de se esperar, a visita não é redentora; além do choque cultural das gerações o jovem volta por ter sido jurado de morte na metrópole.

Desta forma o diretor apresenta através das três histórias fases distintas de mulheres que sofrem, mas que também carregam nos ombros responsabilidades imensas, dentro de um ambiente tão machista que não vê em atitudes fortes e corajosas mais que uma simples obrigação. Entre a menina que cuida da casa com toda a responsabilidade, a mulher que chora a morte do filho e a avó que acolhe o neto independente dos motivos de sua fuga, podemos ver uma trajetória de problemas de vidas que seguem por uma estrada muito estreita e com poucas alternativas.

A história parece de fato eternizada pela dificuldade secular de viver em um ambiente hostil não somente pelo clima árido, mas pelo comportamento árido de pessoas presas a uma tradição dura. Invertendo a lógica tradicional de narrativas baseadas no protagonista masculino e chefe de família, vemos dessa vez aquelas que costumam ser coadjuvantes graças à herança machista da sociedade, mas que na prática ocupam papel indispensável na vida das famílias.

Em meio à moral exacerbada e a necessidade de manter distância física, já que a proximidade é sempre mal vista graças ao tal pecado da carne, vemos que é através do contato que os personagens acabam buscando a solução para suas angústias. É no afeto que tentam encontrar um pouco de alívio, o que deveria parecer bastante natural em uma espécie que evoluiu há milhares de anos através da vida em grupo.

Infelizmente o que parece natural pode soar absurdo do ponto de vista social. Sem adiantar detalhes em relação à conclusão das histórias, é possível antever o que fica até evidente ao longo do filme; certas normas de conduta tornam-se inquestionáveis em curto prazo, corroborando a ideia de que mudanças sociais acontecem lentamente. Mesmo as grandes revoluções são explosões de pequenos acúmulos que ocorrem ao longo do tempo, até que ganham força para maiores mudanças.

A impressão que fica é que o filme realmente conta a história da eternidade, que se por um lado é mutável, por outro conserva-se quase intacta quando analisada em um espaço de tempo curto. Ampliando esse conceito para um espaço maior que o do filme fica claro que com atitudes um pouco menos rígidas muitos problemas poderiam ser evitados.


terça-feira, 28 de julho de 2015

Jauja

A história deste longa é bastante simples, mas tem a capacidade de instigar muitas reflexões. Basicamente um pai (Viggo Mortensen) parte da Dinamarca com sua filha (Viilbjørk Malling Agger) em busca de Jauja, um paraíso mítico, cercado de mistérios.

Contrariando a expectativa de uma vida perfeita almejada pelo pai, a menina foge com um soldado que conheceu e por quem se apaixonou no caminho. A partir de então a meta do pai passa a ser encontrar a moça, para isso ele parte em uma jornada solitária e longa, na qual o papel do ator ganha destaque, já que na ausência de diálogos a atuação deve transmitir emoções e ações de forma mais clara.

Os elementos da trama não são novos, mas rearranjados com competência pelo diretor Lisandro Alonso. A busca por uma terra livre de problemas é constante na história; no ocidente cristão ela existe desde que Deus expulsou os homens do Éden, condenando a humanidade a viver fora do paraíso.

A dúvida que fica neste ponto do filme é quanto ao que seria feito pelos homens em uma terra supostamente paradisíaca. No plano individual todos se julgam aptos para viver na terra prometida, deixando para trás aspectos de nosso cotidiano dos quais não sentiríamos nenhuma saudade.

Porém o que vemos no filme são soldados treinados e impiedosos nas batalhas buscando uma terra que seja pacífica. Não é necessário ser um grande historiador para saber que não existem terras com ou sem problemas, eles se desenvolvem de acordo com as relações pessoais de seus habitantes. Um desenrolar quase previsível de um novo local subitamente habitado pelos soldados do filme seria a reivindicação de um exército para proteger a sociedade de possíveis invasores, a partir daí é gerado uma classe poderosa e dominadora, que desestabiliza todo o equilíbrio harmônico que se espera de moradores de um lugar tão idealizado.

Pela quantidade de lendas sobre terras prometidas e lugares míticos, cujo simples acesso garantiria uma vida perfeita, é notável que coletivamente esquecemos o potencial que temos desperdiçado ao longo da história ao encontrarmos terras com grandes chances para uma sociedade senão perfeita, ao menos aceitável.

Já contamos com uma bagagem cultural que deveria ser suficiente para percebermos nossa responsabilidade – as vezes individual, as vezes coletiva – nos problemas do local em que vivemos, portanto mais eficiente que migrar para uma terra perfeita, seria investirmos na melhoria da sociedade de forma igualitária, para que possamos nos aproximar de uma vida tranquila e com menos problemas.

No filme a prova de que o ideal de terra perfeita é muito particular, portanto inviável para uma sociedade, vem do próprio núcleo familiar do protagonista, ainda que ele viaje somente com a filha.

É de se esperar que uma adolescente tenha um ideal de felicidade muito distinto daquele que seu pai planeja, desta forma a menina foge com um dos soldados fazendo com que o pai desista da procura por Jauja e passe a ter como única meta reencontrar a filha.

O que fica claro depois da jornada do pai é que uma terra paradisíaca, independente do nome que seja dado, seria a materialização de um sonho pessoal. Cada um teria sua própria terra dos sonhos, de forma que em essência seria muito tênue a diferença entre a Jauja do filme e a Terra no Nunca, que materializa a perfeição idealizada por uma criança.

A viagem do protagonista é longa e intensa. Acompanhamos de perto as angústias e apreensões do pai, o que faz com que o filme seja longo. Talvez pudesse ser um pouco mais curto, porém essa é uma característica necessária ao drama. Seu tempo é diferente de uma comédia, que pede cenas curtas e dinâmicas. É acompanhando os detalhes da personagem do filme que sentimos mais diretamente as emoções que precisamos absorver da obra.

Como dito no início, a história do filme é simples e com poucos elementos, somado a isso temos um filme longo, que nos proporciona pensar bem em cada detalhe apresentado na história. Vale a pena considerarmos a viabilidade da ideia de buscar uma terra distante, que deixe para trás os problemas e nos ofereça uma vida livre de preocupações. Vemos que os problemas existem em qualquer lugar e talvez seja mais eficiente pensar em nossa atuação no próprio local em que vivemos do que sonhar com terras oníricas.


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