terça-feira, 1 de julho de 2008

Cama de Gato


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“Cama-de-gato” é uma antiga brincadeira infantil de origem indígena, na qual, segundo o dicionário Houaiss, “um participante faz passar entre os dedos um cordão ou barbante que tem as pontas ligadas, criando com ele várias disposições ou armações que são transportadas para os dedos de um segundo participante”. Esse emaranhado de fios passa das mãos de um para outro, e não deve ser desfeito.

“Cama de Gato” é também o primeiro longa de Alexandre Stockler, em que o emaranhado consiste numa série de problemas que formam uma bola de neve na vida de três jovens inconseqüentes da classe média.

A produção é do Movimento T.R.A.U.M.A. (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso), uma versão tupiniquim para o dinamarquês Dogma 95, do qual segue alguns princípios. A preocupação do Trauma é com o conteúdo dos filmes, não com sua rentabilidade; e fazer os filmes, para o grupo, é mais importante do que discutir as dificuldades da realização, especialmente no Brasil.

O resultado da aplicação desses pressupostos é um filme cru. “Cama de Gato” teve um orçamento de apenas 13 mil reais (elenco e equipe técnica não cobraram cachê) e quebra com a tradição da procura pela perfeição de imagem, iluminação e som. São utilizadas condições naturais de luz, que faz com que a imagem fique, algumas vezes, imperfeita e escura. É perceptível a liberdade dos atores em relação ao roteiro, que implica em cenas com grande improviso, em contraposição às direções rígidas. A cena de sexo, seguido de estupro, que choca pelo realismo extremo, mereceria mais destaque, não fossem tantos outros temas polêmicos abordados ao longo do filme.

As filmagens começam na vida noturna, com depoimentos de jovens que permitem traçar um estereótipo de uma parcela da sociedade da qual fazem parte os protagonistas. É possível identificar na ficção muitas situações verídicas, com algumas cenas retratando simbolicamente fatos reais que ganharam repercussão nacional.

A história conta com três personagens principais, Cristiano (Caio Blat), Chico (Rodrigo Bolzan) e Gabriel (Cainan Baladez). Representantes característicos da juventude de classe média alta paulistana, começam com uma conversa com pinceladas de política, demonstrando que chega a existir certa preocupação com a desigualdade social. Mas o engajamento e a preocupação dão lugar ao individualismo e à necessidade de diversão a qualquer custo. A rotina de festas tem espaço de destaque quando os três amigos passam no vestibular e querem comemorar o acesso à universidade.

O desenrolar da trama coloca os jovens em uma espiral crescente de problemas, iniciada por uma morte acidental – a primeira atitude inconseqüente dos jovens – e a necessidade de ocultar o crime para poder viver tranquilamente no país da impunidade. Os atrapalhados (e azarados) amigos não contavam com uma série de infortúnios que tomaram proporções inesperadas.

O humor negro de situações tragicômicas mostra como, mesmo em situações de extrema gravidade, que demandam atitudes sérias, os personagens encaram os fatos de maneira irresponsável, e o desenrolar da trama mostra que eles não têm outro objetivo que não o de livrar a própria pele, sem a menor ética ou sentimento de culpa.

Assim como no início, o filme termina com cenas externas (entrevistas com jovens da mesma faixa etária dos personagens), mas dessa vez o depoimento é sobre o roteiro do filme e possíveis soluções para a "cama-de-gato", ou seja, Stockler dá mais realidade às filmagens ao buscar na sociedade que pretende retratar a solução para os problemas criados.

Para quem assiste, a princípio a tendência é concordar com a brincadeira inserida no meio do filme – talvez o único momento cômico que não é cercado por tragédia –, segundo a qual situações como as que são descritas só acontecem no cinema. Mas uma reflexão sobre fatos recentes presenciados em nossa sociedade nos remete à impunidade, muitas vezes tão inacreditável quanto as trapalhadas dos jovens protagonistas.

O filme dribla dificuldades financeiras com talento e conteúdo, faz uma denuncia direta de crimes cotidianos – geralmente impunes – e prova que é possível fazer cinema de forma diferente e inusitada. Merece ser lembrado pela idéia de quebrar barreiras e propor algo novo, muito mais do que por ter uma cena de sexo chocante. Os cineastas não precisam seguir os princípios do Movimento Trauma, mas os que seguirem estarão fazendo bom cinema, com certeza.


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