A ideia de um cão sem dono remete de imediato a duas possibilidades, uma é a liberdade proporcionada pela ausência de alguém que, por ter posse, têm também direitos sobre sua propriedade; a outra é a falta dos cuidados que um dono pode proporcionar, implicando em sentimentos de solidão e desamparo.
Através do personagem Ciro (Júlio Andrade) os diretores Beto Brant e Renato Ciasca conseguem mostrar esses dois caminhos. Focado em um protagonista bastante intimista e fechado em si mesmo, aos poucos o longa nos proporciona romper as barreiras que o personagem ergue em torno de si, para que possamos mergulhar em seus sentimentos. A princípio não é fácil, mas entre os comportamentos extremos de Ciro é possível encontrar conflitos muito comuns, gerados pela projeção do amor entre pais e filhos na vida adulta.
O personagem leva uma vida espartana em um apartamento pequeno e quase sem mobília. O espaço é dividido com o vira-lata sem nome, afinal só os donos podem escolher nomes e Ciro vê o cão como um amigo. Se por um lado a profissão de tradutor (de russo) não lhe possibilita muito mais conforto que a vida atual, forçando o rapaz a depender da ajuda financeira dos pais, por outro Ciro não se incomoda com a simplicidade material que o cerca e não hesita em recusar um emprego que não corresponde às suas expectativas.
É com a presença de Marcela (Tainá Müller) que a segurança de Ciro será colocada em xeque, pois a princípio ele não demonstra grande afeto pela moça, como era de se esperar pelos poucos elementos que temos sobre sua vida, e a relação parece ser sustentada pela sonhadora modelo, ratificando o estereótipo reducionista de que a mulher valoriza mais os sentimentos.
Os percalços que afastam o casal podem ser encarados como desejados por Ciro, mas é diante da perda que os sentimentos, antes blindados pelo personagem introspectivo, vêm à tona. Consequentemente só então ele sente o peso do isolamento, tendo que buscar conforto com o porteiro Elomar (Luiz Carlos Vasconcellos Coelho), cuja experiência de vida poderia ajudar muito, mas certas coisas só aprendemos vivenciando.
A trama do protagonista é muito bem fechada quando os diretores mostram mais detalhes sobre sua família. A partir daí fica mais fácil compreender o isolamento de Ciro, como uma forma de negar a atenção exacerbada dos pais e buscar a individualidade. A aparente confusão do personagem, que primeiro demonstra frieza para depois desabar diante da ausência de Marcela, segue a mesma linha, pois a atenção que a moça dava ao cão sem dono o remetia aos mimos maternos. É de se esperar que se Ciro se afastou dos pais para buscar a individualidade a distância de Marcela também lhe agradará, mas há dois pontos relevantes: o primeiro é a dificuldade de nos livrarmos de fato da forma com que fomos criados, principalmente quando essa criação está baseada no conforto que a proteção familiar pode oferecer; o segundo é que ao optar por viver sozinho Ciro mantinha o controle da situação, ao passo que a separação da namorada fugia de seu arbítrio, gerando toda a angústia que explodiu em crise.
É interessante comparar esse filme com o trabalho seguinte de Beto Brant, “O Amor Segundo B. Schianberg”, pois ainda que não tenha tido essa intenção é possível olhar para o casal retratado (encenado por Marina Previato e Gustavo Machado) como uma alternativa para o relacionamento de Ciro e Marcela, pois, com estereótipos semelhantes, o casal do segundo filme mostra mais maturidade para encarar as dificuldades do relacionamento, de forma que conflitos são resolvidos em conjunto, ao invés de algumas atitudes isoladas que tentam prever sentimentos.
São duas obras bem intimistas e reflexivas, que nos mostram aspectos interessantes do comportamento complexo, e muitas vezes incoerente, das pessoas – dificultado pela necessidade de interagir com outras pessoas igualmente complexas.
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