terça-feira, 29 de maio de 2012

O Corvo (The Raven)



E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á nunca mais! 



Os escritos geniais de Edgar Alan Poe tiveram reconhecimento tardio. O grande responsável pela notoriedade do escritor foi Baudelaire, que ao traduzir as obras para o francês chamou a atenção dos fãs de literatura para a qualidade das obras, ricas em mistério, terror e criatividade. Com linguagem rebuscada, apesar de objetiva, Poe segue como autor ímpar em seu estilo, talvez sem tanto reconhecimento quanto merece.

Com personagens muito focados no aspecto psicológico, cujos distúrbios ou insanidades podem explicar muitos casos aparentemente sobrenaturais, os contos de Poe são pouco explorados no cinema. As histórias fantásticas já ganharam algumas adaptações, que costumam ser conhecidas principalmente entre os amantes do chamado cinema de arte. Este longa, do diretor James McTeigue, traz uma saída interessante para abordar a obra de Poe e dar notoriedade ao autor.

Inspirado nos livros, não há uma história adaptada, mas um roteiro de ficção formado pelo recorte de várias obras, mantendo o clima de suspense, investigação e uma pitada de terror, com a presença do próprio Edgar Alan Poe (John Cusack). É evidente que não há nenhuma pretensão de documentar a vida do escritor e mesmo as obras citadas são distintas do original, já que o terror de Poe, conforme citado, é focado no psicológico. No filme, por ter como guia um fã do autor que coloca em prática suas ideias mirabolantes, as cenas de terror são mais diretas e explícitas, o que evidentemente segue uma prática, sempre questionável e criticável, de seduzir os espectadores.

O que chama a atenção no longa é a transição existente na mente brilhante de Poe entre sua vida e sua obra. De fato as verdadeiras ações da vida do autor ocorreram majoritariamente em suas obras, relegando à realidade uma existência sofrida, bastante dura em todos os sentidos e, sobretudo solitária. A principal companhia de Poe eram mesmo seus personagens, que provavelmente viviam um duplo de sua própria personalidade. Meticulosos, detalhistas, calculistas e extremamente tensos em suas ações, tal qual seu criador.

Entre as várias histórias citadas no filme, algumas apenas com leves menções, como o incêndio que remete os fãs ao conto “O gato preto”, uma delas não é sequer citada, porém a essência do conto “Willian Wilson”, no qual um misterioso duplo do protagonista o persegue, vivendo como uma sombra misteriosa de seu próprio eu, pode ser identificada, ainda que não tenha existido a intenção desta analogia no roteiro. No filme, o assassino que tem como base as histórias de Poe – sem nome aqui, para não estragar nenhuma surpresa – pretende claramente seguir como uma espécie de duplo do autor, dando corpo à mente do escritor que possuía incrível capacidade de fantasiar a realidade, tornando-a fantástica, quem sabe com a intenção de uma fuga da própria vida angustiante que teve.

Ainda que o tipo de violência do filme seja muito mais explícito do que é sugerido nos contos, não chega a ser uma falha na adaptação, já que a fidelidade ao texto não era a intenção do filme. Seguindo a mesma mudança de literatura para cinema, o grande amor de Poe no longa é Emily Hamilton (Alice Eve), que apesar de manter o estilo angelical das descrições femininas do escritor, corresponde em parte às complexas histórias de amor, tanto dos escritos quanto da vida real de Poe. O escritor sempre permeou sua vida com amores platônicos, sendo que os poucos concretizados sempre acabaram por trazer mais sofrimento à sua difícil vida. Nas obras é possível encontrar personagens mais próximos a Emily, que pode até corresponder ao amor, mas de forma alguma chega a ser factível.

Para unir os diversos elementos trazidos às telas, há o detetive Emmett Fields (Luke Evans), uma versão do personagem August Dupin, que por sua vez representa toda a meticulosidade de autor. Não tão ativo no filme, Fields tem seu trabalho complementado pelo próprio personagem de Poe no desfecho do mistério central da obra, o que também aproxima mente e corpo, pois Dupin traz muito de seu criador e é uma tradução muito clara do estilo de vida que, baseado na contemplação do que o cerca, tira conclusões precisas e encantadoras.

A produção de McTeigue pode ser criticada por muitos aspectos, sobretudo pela tentativa exagerada de tentar dar um verniz moderno a uma obra que retrata meados do séc. XIX, porém a ideia de colocar o escritor em contato com suas próprias obras, fazendo uma espécie de ponte entre o que Poe vivia e escrevia, é bem interessante. O desfecho que cria uma versão para a morte do escritor é apenas uma parte da trama, afinal Edgar Alan Poe morreu em circunstâncias muito menos misteriosas do que tentam nos passar. Um período mais difícil que o normal culminou no consumo excessivo de álcool, levando a um coma alcoólico nas sarjetas de Baltimore. Como toda sua vida, o desfecho foi bem menos romântico que o de suas obras.


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