Um Estado, em tese, deveria zelar pelo bem-estar do cidadão. Atuar como mediador de conflitos e alocar os recursos de forma eficiente são prerrogativas teóricas de qualquer governo representativo. Da religião deveríamos esperar uma atuação semelhante, pois mesmo após a laicização dos governos as igrejas mantêm a pretensão de atuar pelo bem de seus fiéis.
O diretor Andrey Zvyagintsev mostra que essas funções podem ficar bem distantes da realidade quando, na prática, o Estado e a igreja são geridos por pessoas totalmente descomprometidas com o que deveria ser sua real função. É com essas pessoas que a sociedade deve lidar.
Mesmo com o enredo se desenvolvendo em uma pequena cidade no norte da Rússia, os temas expostos são universais. Ao menos no Brasil o momento atual nos aproxima dos russos, não apenas devido ao bloco econômico BRICS, mas uma trajetória pós-ditadura e um irritante histórico de corrupção endêmica faz com que nossas terras tropicais se aproximem bastante das terras áridas e geladas.
O protagonista Kolia (Aleksey Serebryakov) poderia seguir uma vida pacata, lidando com percalços naturais e monótonos de uma pequena cidade, mas desde o começo vemos que ele tenta proteger sua casa e oficina, onde a prefeitura da cidade pretende construir um prédio.
Se por um lado um dos deveres do Estado é garantir aos cidadãos seu direito à propriedade, por outro os interesses coletivos se sobrepõem aos individuais. Caso haja uma necessidade justificável a propriedade privada pode ser desapropriada. O que vemos no filme – e no dia-a-dia – são governantes cedendo à pressão política e econômica de classes mais altas e prejudicando diretamente pessoas como Kolia.
Grandes propriedades têm a chamada função social. Países que conseguiram atingir um nível mais elevado de democracia representativa impedem por meios legais a acumulação ilimitada de terras, grandes edifícios abandonados em áreas com muita infraestrutura, etc., já que tudo isso acaba pesando indiretamente na conta das classes mais baixas.
Já em países com grande desigualdade social e consequentemente pouca representatividade política, as classes economicamente superiores adotam o falso discurso de liberdade para subverter as funções do estado. Assim como o Brasil, a Rússia viveu um longo período ditatorial. Políticos não precisavam dar satisfação dos seus atos, dissidências eram resolvidas de forma violenta e a imagem de grandeza era sustentada com muito mais maquiagem do que fatos concretos.
No filme essa época terrível é indicada de forma paradoxalmente muito bonita. As cenas externas são repletas de grandes navios encalhados, que em contraposição ao passado aparentemente glorioso do qual participaram, agora enferrujam e apodrecem no mar, assim como a ossada de baleia sugerindo, entre outras possibilidades de interpretação, a grandeza natural que também é efêmera, restando à posteridade somente seus descendentes. Este é, politicamente, o ponto crucial.
O atual regime político descende daquela incompetência de gestão baseada nos interesses pessoais acima do coletivo. A burocracia mantem níveis desnecessários e o Estado, simbolizado no filme pelo prefeito bêbado que tenta impor sua vontade de forma ridícula, se apoia nos ricos para que juntos permaneçam longe dos mais pobres.
O conteúdo de Leviatã se encaixa nas ideias descritas por Hobbes em seu livro homônimo. Resumindo ao extremo, um Estado que na teoria é onipotente, necessário para manter a ordem entre os homens, cuja relação é bastante conflituosa, conforme vemos no filme. Mesmo assim, a igreja aparece no filme com uma metáfora interpretada da maneira que mais lhe convém.
Diferenciando a religião da instituição igreja, vemos que esta desde sua origem opta pelo poder, mais do que pelo conforto espiritual de seus fieis. O conluio entre a cúpula da igreja – seja ela a ortodoxa do filme ou a romana que se sobressai em nossa sociedade – com políticos corruptos costuma ser tão eficiente para ambos quanto maléfica para a sociedade.
O poder da igreja que poderia influenciar positivamente na política em prol do cidadão é na verdade trabalhado para ludibriar fiéis e amenizar seus prejuízos. Religiões trazem poucas mensagens claras. A maior parte de seus dogmas é baseada em metáforas tão abstratas que podem ganhar o significado mais conveniente para as situações vividas.
Seguindo este pensamento, o Leviatã referente ao estado onipotente é interpretado pelo religioso como a criatura bíblica que vive nos mares. Joga ao cidadão um peso que na verdade pertence ao estado e tira a atenção do verdadeiro causador do problema.
Leviatã é um filme longo, tem tempo suficiente para alternar períodos dinâmicos com partes mais lentas, apresentando um cinema russo que é desconhecido para a maior parte do público brasileiro. Ainda assim as injustiças vividas por Kolia e sua família farão par a muitas situações daqueles que assistirem ao filme por aqui.
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