Geralmente avesso a entrevistas, Chico Buarque abriu uma exceção ao amigo e diretor Miguel Faria Jr., proporcionando esse valioso documentário, no qual narra episódios marcantes de sua vida, entrecortados por materiais originais e interpretações de suas canções por artistas diversos.
Filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda, Chico acabou produzindo ao longo de sua vida um material artístico de grande valor para a história recente do país, com destaque para o período da ditadura militar, criticada sempre de forma muito inteligente através de suas músicas.
Tendo crescido em uma família extremamente culta, cuja presença é enfatizada no filme tanto pelo pai quanto pela mãe, a intelectual Maria Amélia Cesário Alvim, podemos pensar que o filho foi de certa forma um produto natural, resultante da educação pluralizada, da formação cercada de livros e das amizades extremamente privilegiadas do pai.
O que não podemos esquecer é que boa parte de nossos valores são criados pelo contraste vivido. Não seria nem um pouco incomum se, dentro da realidade em que cresceu, Chico permanecesse distante de qualquer outro modo de vida, resultando em um bon vivant alienado.
No extremo oposto, beirando os setenta anos durante as filmagens, Chico mantém um olhar crítico que de certa forma é uma dialética entre toda sua cultura erudita e a cultura popular, que sempre esteve presente na vida do artista. O bom humor e a serenidade não traduzem deboche e descaso, mas um olhar maduro de alguém que aparentemente sempre esteve no comando da própria vida.
É evidente que estamos falando de um ser humano, que como todos os outros possui defeitos e problemas, que talvez tenham espaço em uma biografia, mas não em um documentário, onde a terapia visando solucionar a crise de criatividade parece ser suficiente para retratar o artista como passível de angústia, como não poderia deixar de ser.
A intenção do filme parece bastante clara, apresentar aos fãs, que não são poucos, a trajetória de um ídolo que iniciou a carreira com a música e hoje coleciona obras em diversas áreas, como teatro, literatura, cinema, além de marcar presença nos campos de futebol – paixão que permeia sua vida desde a infância.
Curioso que um artista tão multifacetado acabe atualmente sendo alvo de críticas tão rasas. Não caberia no filme ainda que tais críticas tivessem começado enquanto as filmagens estivessem em andamento. A participação mais direta de Chico na política foi até o fim da ditadura e o que se seguiu foram alguns apoios, que em se tratando de uma figura pública sempre tem reflexo na campanha de um candidato. Os relatos contemporâneos do filme giram em torno do avô que reúne os netos no apartamento para divertir-se com a improvisada banda, bem distinta da canção ‘A banda’ que alavancou sua carreira.
Cabe a interpretação de que é este senhor – que tanto trabalhou denunciando injustiças sociais e políticas, que enfrentou entraves jurídicos durante a ditadura que o forçaram a permanecer no exterior, que talvez só tenha escapado de ações mais rígidas dos militares graças ao peso do sobrenome – que tem sido duramente criticado por alguns setores da sociedade.
Ninguém é imune a críticas, afinal ninguém é perfeito a ponto de não merecer nenhuma observação desfavorável. O que chama a atenção neste caso é a desproporção entre um ícone para do país sendo criticado por motivos torpes, vindo de pessoas que mal sabem o que estão dizendo.
Isso fica evidente quando Chico é acusado de receber dinheiro pela lei Rouanet para falar bem do governo, quando na verdade essa lei não dá dinheiro a ninguém, somente autoriza a captação de recursos para a produção cultural; ou ainda quando o acusam de hipocrisia ao vetar o uso de suas obras depois de ter lutado contra a censura do regime militar.
Ser a favor ou contra um artista – tanto em relação à obra quanto ao posicionamento político – é opção de cada um e essa postura é moldada por uma série de fatores, porém existe uma lógica que ao ser seguida dá mais legitimidade aos argumentos. Chico, como tantos outros artistas de sua geração, é um cidadão que lutou contra arbitrariedades políticas de um governo ilegítimo que queria impedi-lo de se expressar livremente.
Muito diferente dessa censura estatal, visando à blindagem do governo e o controle da população, é a decisão do artista de ter um controle sobre o que ele próprio criou. Como o próprio Chico já se deu ao trabalho de explicar, não faria nenhum sentido setores que apoiaram a ditadura militar utilizarem hoje suas músicas, geralmente para fins muito distintos, senão antagônicos, aos seus propósitos como compositor.
Um documentário como este é útil sob vários aspectos. Apresenta o homem por trás do artista, relembra fases importantes, apresenta o artista aos que não o conhecem tão bem e, como consequência mais indireta, estimula a reflexão sobre temas recorrentes e indispensáveis presentes em sua obra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário