quarta-feira, 10 de maio de 2017

A despedida

A visão de mundo que temos, além de muito particular, oscila ao longo da vida. Por vezes de forma tão gradual que sequer percebemos. Da adolescência em que doze horas de sono não são nenhum absurdo, passando pela maturidade em que a necessidade de estabilização pessoal e profissional traz inseguranças, atravessamos nuances comportamentais até que alguns chegam em uma fase presumivelmente final.

De repente o corpo mirrado passa a pedir uma fralda geriátrica para estancar a falta de controle dos esfíncteres, sair sozinho da cama demanda um esforço que questiona se aquilo é mesmo pertinente, o banho matinal deve ser sentado e com toda a atenção para que um mero deslize não resulte em uma queda fatal, a barba insiste em crescer ignorando a falta de firmeza das mãos que mal dão conta de empunhar a lâmina de barbear. Neste cenário a bênção da consciência intacta é amaldiçoada pela percepção das habilidades perdidas.

Contrariando o provável pouco tempo restante de vida, o corpo exige paciência monástica para sustentar um resquício de orgulho e se vestir sozinho. Essa é a tarefa repetida diariamente ao longo de noventa e dois anos e que agora reduz as expectativas do velho Almirante (Nelson Xavier).

Sair sozinho para tomar café na rua. Difícil imaginar o que passa pela cabeça de alguém que ao anunciar algo que qualquer criança pode fazer, desperta no filho – com razão – temor e receio. O que o personagem ilustra é algo muito comum em pessoas cuja idade compromete severamente as habilidades físicas.

Aquele antigo almirante, de passado incógnito, mas que inevitavelmente prezava pelo físico militar, mal tem condições de caminhar pelas calçadas e ruas esburacadas. Caminhar sozinho é uma opção. O filho poderia acompanhá-lo, mas a necessidade é de provar a si mesmo que ainda pode ser independente. Como convencer um almirante de que agora nem à padaria ele pode ir sozinho?

Driblar os buracos no caminho, em uma cidade excludente para quem tem alguma dificuldade de locomoção, mostra quanto o descaso do poder público pode tornar ainda mais difícil a vida daqueles que merecem atenção direta e indireta do Estado. Seja através de serviços e benefícios, seja através de uma cidade estruturada, a atenção aos idosos é uma mínima retribuição aos serviços prestados ao longo da vida.

Diante da presunção de um fim próximo algumas necessidades podem ganhar peso, visando não deixar pendências. O antigo desafeto deve ser procurado, não para realçar os desaforos, mas para admitir os erros, pedir perdão e selar a paz com um abraço fraterno. Pouco importa o que houve no passado, talvez até mesmo o erro tenha sido bilateral, mas pode ser assumido sozinho, desde que isso sirva para tirar dos ombros debilitados o peso simbólico de uma culpa.

A despedida não estaria completa sem a presença de um amor. A relação com a amante, a enigmática Fátima (Juliana Paes), poderia render várias análises, explorando a questão patriarcal e os problemas envolvendo um relacionamento com idades tão díspares. Porém esse não é o objetivo do diretor Marcelo Galvão. 

Fátima não demonstra apenas carinho, afeto e respeito em relação ao amante, mas também respeito à sua condição física e consideração com seu esforço pela independência. Diferente dos familiares, ela não o trata como um objeto de cristal fino, mas como um homem debilitado pelos mesmos anos que proporcionaram conteúdo intelectual.

O impacto das situações extremas do filme, que é baseado em uma história real, pode despertar reflexões sobre temas recorrentes no contato entre idosos e pessoas mais jovens. É formado um conflito de interesses quando um lado quer preservar a integridade física de quem já está debilitado e outro quer lutar contra os efeitos adversos da idade.

Mais do que bater de frente com quem supostamente é teimoso e inconsequente, o filme mostra ser válida a tentativa de se colocar no lugar do outro, valorizando suas pequenas conquistas. Ao Almirante, e a tantos idosos em situação semelhante, o corpo já impõe regras suficientes.

Recusar um cuidado paternal que, invertendo a lógica, passa a vir dos filhos, não é teimosia nem falta de reconhecimento, mas sim uma tentativa de resistir e preservar a dignidade do que resta a ser vivido. Quando só a consciência está intacta e isso é encarado como algo ruim, ninguém tem o direito de privar o indivíduo até mesmo de suas próprias decisões.


* Eu estava na metade deste texto quando soube da morte do ator Nelson Xavier. Fica minha singela lembrança.


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