Parece não ser difícil aceitar que um chefe de estado deve ser competente mais com suas ações que com suas palavras. Entretanto em 1936, com a ascensão de Hitler totalmente baseada em sua oratória impecável, fica difícil negar o potencial que o domínio da palavra pode oferecer, ainda que para uma figura já simbólica na época, visto que as principais decisões durante o reinado de George VI (Colin Firth) ficavam por conta do primeiro ministro, na época, para desespero do resto do mundo, Winston Churchill (Timothy Spall).
Talvez a falta de ações diretas do rei, que servia quase como escudo para as ações durante a guerra – o que já não é pouco – valorizasse ainda mais o peso de seu discurso, pois o que restava ao monarca era exatamente explorar a tradicional figura de realeza para tentar encorajar e motivar os britânicos. Desta forma, nada pior do que gaguejar em um discurso para responder a uma ofensiva alemã. Não mostraria apenas a tensão, mas também medo, hesitação e todos os sentimentos exatamente opostos aos pretendidos; pior, mostraria inferioridade britânica já partindo do discurso do chefe de estado.
Apesar do enfoque do filme dirigido por Tom Hooper não ser a biografia de George VI, é possível notar traços do personagem condizentes com a superioridade com a qual membros da família real costumam ser educados. O estereótipo que costumamos criar para membros da monarquia, encenados a exaustão nos filmes, é de pessoas soberbas, por vezes verdadeiros carrascos para seus súditos. George VI não chegou a inspirar o terror, o que era mais comum durante a Idade Média, de forma que a tentativa de impor sua superioridade, geralmente frustrada, já que a mínima discórdia culminava em palavras embargadas, vinha da simples tradição da monarquia inglesa; basta pensarmos que se um jovem príncipe não tem o direito de ser canhoto, sendo forçado a escrever com a mão direita, também não deverá ter o direito de portar-se diante dos súditos sem certa arrogância.
A superioridade, que já era difícil de sustentar diante da insegurança que tinha em si, ficou completamente abalada diante de Lionel Logue (Geoffrey Rush), que em troca de alguns exercícios contra a gagueira cobrava a igualdade. É neste ponto que vemos o quanto é difícil deixar de lado hábitos adquiridos ao longo de toda a vida, muito mais difícil deve ser para um rei cantarolar um discurso sério, mesclando palavras de baixo calão durante os ensaios para evitar gaguejar.
É curioso para quem não é membro da corte ver a igualdade e simplicidade sendo impostas, mas estranho mesmo é a supervalorização de características secundárias para um governante, ou seja, falar bem (neste caso específico, sem gaguejar) tornou-se mais relevante que o conteúdo do discurso; pior, o primeiro sucessor ao trono inglês seria o Rei Edward VIII (Guy Pearce), que não tinha nenhum problema de dicção, mas tinha a intenção de cometer um ato imperdoável diante da população: casar-se com uma mulher divorciada.
O primeiro impacto ao vermos alguns bastidores da história – como valorizar a forma do discurso mais que seu conteúdo, ou julgar um escândalo sexual como fator preponderante na vida do governante – pode parecer alguma maluquice histórica, mais uma entre tantas insanidades que rondaram a Segunda Guerra. Porém o hábito de colocar a aparência muito acima da essência permanece intocável.
Para permanecer apenas com os pontos citados em relação ao filme, vimos recentemente o Brasil ser governado durante oito anos por um ex-operário com pouco estudo. Lula pode, e deve, ser criticado por diversos fatores políticos, mudanças drásticas em relação ao longo período em que foi oposição e escândalos que abalariam a popularidade de qualquer outro político. No entanto uma das críticas mais frequentes é em relação à sua fala, ainda que os inúmeros erros de português não impeçam a expressão do pouco que resta do político que de fato visava governar para os pobres. O conteúdo dos discursos de Lula raramente é considerado e as críticas plausíveis pelas atitudes, que nem sempre são condizentes com as palavras, quase nunca são formuladas, mas a aparência do discurso desconstrói a falsa imagem de governante onipotente.
Deixando o Brasil para uma analogia com a abdicação do trono por parte de Edward VIII, já vimos Bill Clinton ser perdoado por criar guerras para, mais uma vez, aquecer a indústria norte americana, para logo em seguida quase perder o poder graças a um escândalo sexual envolvendo sua estagiária; mais recentemente podemos acompanhar Silvio Berlusconi (uma espécie de Paulo Maluf da Itália) ter sido eleito após várias denúncias de corrupção e agora ser julgado, também por escândalos morais.
Em todos os casos aqui abordados, do filme ou não, podemos notar que as críticas mais explícitas podem até ser justificáveis, mas sem dúvida tiram o foco sobre as reais atribuições de um governante, que sem dúvida deve prezar por sua aparência, mas deve ser realmente cobrado pelas ações políticas.
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