terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Chico Rei

Uma das grandes funções do cinema é servir de aporte para a transmissão de fatos históricos, que são de suma importância tanto para evitar a repetição de tragédias quanto para evidenciar certos absurdos passados que influenciam muito em nosso cotidiano. Toda história é contada a partir de um ponto de vista, cuja verdade acaba sendo formada por uma dialética entre lembranças e intuitos. Nessa linha de raciocínio temos, por exemplo, inúmeras obras retratando os horrores do holocausto, com algumas delas criadas por judeus que se esforçam em retratar o fato sob o ponto de vista do oprimido, ao invés do opressor.

A Segunda Guerra teve seus campos de batalha distantes do Brasil, mas nosso ‘holocausto’ foi bem mais longo. Durante três séculos negros foram covardemente capturados na África e condenados ao trabalho forçado nas lavouras e minas de ouro na América. Outra diferença para o holocausto é que hoje, judeus como Steve Spielberg podem retratar com maestria a vida de pessoas como Oskar Schindler, enquanto negros brasileiros continuam sofrendo duros preconceitos e enfrentando barreiras sociais e econômicas, que dificultam até mesmo a narrativa da história sob o ponto de vista dos oprimidos. Ainda assim temos algumas obras muito bem elaboradas para a descrição da escravidão. Uma delas, com direção de Walter Lima Junior, conta a história de Chico Rei, lendária figura que pagou pela liberdade de tantos negros quanto lhe foi possível comprar com o ouro que, com mais facilidade que o comum, encontrava nas minas.

Difícil narrar com precisão a vida de Chico Rei, interpretado por Severo d’Acelino, afinal a documentação da época era precária, sobretudo em relação a assuntos vergonhosos como a exploração tão cruel de seres humanos, por isso o filme é baseado em relatos populares e outras obras com o mesmo tema. Mais importante do que o retrato fiel do que aconteceu, é a simbologia criada ao redor do escravo que com sua facilidade para encontrar ouro, poderia tranquilamente viver em paz, mas preferiu salvar o máximo de pessoas possível. Como um tipo de Schindler de sua época, o ex-escravo pode comprar a liberdade de seu povo – aceitando aqui que a liberdade pode ser comprada – o que o torna herói em uma época em que o racismo era institucional e subsidiado até mesmo pela igreja.

Os relatos históricos do transporte desumano, do leilão de escravos, dos castigos, dos abusos e uma série de outras nuances, com a intervenção do cinema ganham a força da imagem, que choca, mas não chega sequer a um vislumbre do que foi viver tudo isso, sentir na pele e na consciência tudo o que nenhuma mente sã seria capaz de criar para rebaixar um ser humano para um estado indigno até mesmo para animais. Se hoje a situação encontrada no Brasil melhorou – já que transformar a escravidão de constitucional para crime, apesar de ser o mínimo, é uma melhora – ainda está longe do ideal e talvez mais próxima da escravidão do que gostaríamos. Em um mundo menos segregado, mas ainda preconceituoso e com fortes bases da estrutura escravocrata, as grandes fontes de renda não são mais minas de ouro, mas grandes empresas cujos donos, não por acaso, nada têm de descendência africana.

Infelizmente o filme fornece vários elementos que nos permite fazer ligação com a sociedade de hoje, não é preciso nem criatividade, basta um jornal, um programa de televisão, ou uma simples caminhada pelas ruas para notar o quanto o período da escravidão nos influencia e como essa influência é absurdamente aceita passivamente. Para piorar – como se precisasse – teorias são criadas ao longo dos anos para tentar atenuar a barbárie e, como sempre, culpar as vítimas por sua condição. Neste caso específico, é frequente atribuir a captura de escravo aos próprios negros de tribos rivais, omitindo convenientemente que essa captura era feita sob a mira de armas de fogo e das ameaças mais torpes.

Esta falácia absurda e ignorante pode ter duas justificativas. Uma delas é a evidente busca de alívio moral daqueles que se recusam a admitir a culpa, preferindo jogá-la na vítima e surpreendentemente não sentir nenhum peso na consciência por isso (caso ainda não tenha ficado claro, faço um paralelo quase infantil para dizer que, ainda que de fato as tribos rivais capturassem outras por vontade própria, a receptação de carga roubada também é crime).

A outra hipótese é bem subliminar no filme: a de julgar os escravos com base na atitude dos europeus; atitude esta que se dá pela lógica de mover o mundo pelos interesses, ao invés dos princípios. Ou seja, é possível ver no filme que, diferente de Chico Rei, que ajudou ao máximo seu povo, europeus que vinham para o Brasil eram explorados pela metrópole portuguesa, de forma leve se comparada com a exploração dos negros, porém a relação entre europeus e senhores de escravos nunca chegou perto da cooperação que havia entre os negros. Como lidar com essa inveja? Jogando a culpa nas vítimas, como sempre.

Essa é uma grande produção da década de 80, obrigatória ao pensarmos em escravidão, assim como o longa “Quanto vale ou é por quilo?”, que adapta Machado de Assis para comparar mais explicitamente a época da escravidão com os dias atuais.


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