quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Preso na Escuridão (Abre Los Ojos)

O diretor Alejandro Amenábar não chegou a brilhar diretamente com seu longa metragem, mas a obra deu origem à refilmagem “Vanilla Sky”, dirigido por Cameron Crowe. Sem querer diminuir a obra de Crowe, seu trabalho foi muito mais fácil; pegar uma boa trama, analisar os pontos falhos, reencenar com grandes astros como Tom Cruise e Cameron dias, além de Penélope Cruz, presente em ambos, e tudo isso amparado por um orçamento milionário.

Amenábar tem o mérito de lançar a obra original em um país com muito menos tradição que a badalada Hollywood e encantar por brincar com a ideia de espaço e de tempo através de uma aparentemente simples história de amor.

A princípio o enredo é o mesmo de qualquer novela da Globo. O galã César (Eduardo Noriega), rico e bem sucedido, se encanta pela bela Sofia (Penélope Cruz). Ao aceitar uma carona de Nuria (Najwa Nimri), a quem até então estava tentando se desvencilhar, César se envolve em um acidente, no qual a moça morre e ele tem seu rosto completamente desfigurado.

Poderíamos imaginar que a história se desenvolveria com a dificuldade de um personagem como César lidar com uma condição inusitada, em que seu dinheiro não pode resolver um problema. De um lado o narcisismo arrogante de quem sempre teve tudo e está habituado a se tomar como modelo a ser seguido, de outro o discurso vazio e pouco eficaz que tentaria diminuir a importância das cicatrizes, valorizando o conteúdo.

Diante de uma situação semelhante o que resta às pessoas próximas é realmente tentar dissociar a pessoa de sua aparência. Teoricamente está correto, pois nenhum fator externo deveria ser tão preponderante diante do que somos. Já na prática esbarramos em dois problemas:

Primeiro que pelo pouco que vemos César não chega a ser um exemplo de conteúdo e mesmo sendo um exímio desenhista, se destaca principalmente pela aparência e bens materiais. Além disso, a tentativa de dissociar a essência da aparência falha por ser falsa.

Não somos indivíduos que têm uma aparência, separada do ‘eu’, como uma roupa natural que nos veste, protege e identifica. O que é aparente aos que nos veem é indissociável do que somos, desfazendo assim qualquer hierarquia do que vem a ser mais importante. Erramos ao tentar classificar pessoas que preferem cuidar do corpo e pessoas que preferem cuidar da mente – ou alma, espírito, consciência; como queiram. De uma forma ou de outra são cuidados dispendidos ao indivíduo, indissociável.

O filme dá algumas pinceladas em pessoas que optam por congelar os corpos depois de mortas, na tentativa de voltarem à vida quando houver tecnologia para ressuscitar os corpos. Walt Disney deve ser o mais famoso dos corpos nessa situação. Somos levados a pensar que o rico e indignado César vai recorrer a essa técnica para voltar à vida quando as técnicas de cirurgia plástica forem eficientes a ponto de poderem restaurar seu rosto.

Aos poucos as peças desconexas e confusas vão ganhando coerência e sentido. Sem detalhar o enredo daqui para frente – para evitar surpresas e não influenciar na impressão de cada um – o que vemos é uma realidade paralela muito intrigante e simbólica.

Até onde se sabe o desfecho é pura ficção, mas forma uma metáfora muito interessante sobre as impressões que temos sobre nossa vida e nosso passado. À certeza de que nossa memória tende a nos guiar, por vezes é atirada uma realidade conflitante com provas suficientes para nos deixar sem argumentos.

Para Walter Benjamin a memória é construída a cada vez que nos lembramos de determinado fato. Resumindo ao extremo, é como se o que chamamos de verdade fosse uma somatória de fatos que ocorreram e pequenas distorções que fazemos a cada vez que pensamos em tais fatos.

A confusão proposital da narrativa do filme, misturando sonho, realidade, presente, passado, etc., é uma forma de levar para as telas a bagunça de sentimentos e lembrança que sintetizamos em uma espécie de ‘versão oficial’, a qual chamamos de verdade.

Lidar com mudanças bruscas que nos obrigam a bater de frente com o que acreditávamos não é fácil. Quando se trata de reformular toda a vida, como é o caso de César, não basta tirar uma roupa e vestir outra mais adequada à ocasião. Conforme já citado, essa ‘roupa’ não existe separadamente, ela é parte intrínseca do indivíduo, que deve, portanto, se reconstruir por inteiro.


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