Um Estado governado por militares, com tortura de cidadãos civis, eventuais assassinatos e ocultação de cadáveres por parte daqueles que deveriam zelar pelo bem estar da população. Na economia, um falso crescimento amparado pela dívida externa que aumentava exponencialmente. A corrupção era facilmente dissimulada, tanto através da censura institucionalizada quanto pelas formas violentas que o estado de anomia oferecia aos militares para inibir denúncias.
As linhas gerais do que foi o período de ditadura militar no Brasil não nos dão uma ideia exata do que sofreram aqueles que foram politicamente perseguidos. Neste ponto o livro ‘Batismo de sangue’ de frei Betto, aqui adaptado pelo diretor Helvecio Ratton, elucida o terror vivido pelas vítimas do regime, detalhando as arbitrariedades, as torturas físicas e o terror psicológico imposto pelas autoridades.
O argumento insano de que bastava não cometer crimes para não ter problemas com o Estado, ainda que possuísse alguma legitimidade, era falso. Mesmo os criminosos reais devem ser punidos com respeito à dignidade humana, não obstante, é notável no filme que inocentes foram torturados, até que a suspeita de envolvimento com a guerrilha fosse desfeita.
A tortura e toda forma de punição pelo suplício é inaceitável qualquer que seja o aspecto analisado. É no mínimo frustrante pensar que hoje algumas pessoas vejam os métodos utilizados nos porões da ditadura, que incluíam dias de privação de sono, choques elétricos nos órgãos genitais, estupros, queimaduras e o que mais a criatividade sádica pudesse criar, como algo minimamente construtivo.
A narrativa se restringe ao recorte histórico da perseguição a frades dominicanos, sob a alegação de contribuir com guerrilheiros liderados por Carlos Marighella (Marku Ribas). Questionar um governo ditatorial e lutar pela democracia não é crime. Ainda que atos políticos pudessem ser nivelados com crimes comuns, a justiça baseada em leis, com direito à defesa e contraditório são ganhos sociais pelos quais lutamos duramente.
Um dos destaques da história, até por ser o autor do livro, é frei Betto (Daniel de Oliveira), que não sofreu torturas físicas por influência familiar. Militante político com habilidade rara de tecer alianças entre a Igreja e os combatentes, após quatro anos de cárcere o dominicano produziu várias obras aproximando os valores cristãos de uma política social voltada aos necessitados.
Essa proximidade, que deveria ser elementar, nem sempre é valorizada pela instituição política representada pela igreja Católica. Contrariando dogmas religiosos, algumas figuras notórias da Igreja distorceram interpretações bíblicas com o intuito de relativizar a atitude dos militares e tentar atribuir alguma culpa a ser punida, por parte dos frades.
A omissão custou caro, sobretudo a frei Tito (Caio Blat). Em resposta à covardia acima da média de sua sessão de tortura, Tito resistiu estoicamente para livrar seus companheiros do mesmo suplício pelo qual passou. Porém os efeitos da tortura não são mesuráveis. Assim como a resistência à dor é variável, portando aquele que cede às pressões não pode ser criticado, os traumas gerados pelo sofrimento são imprevisíveis e, no caso de frei Tito, irreversíveis.
No outro extremo da história, o destaque é o torturador Sérgio Fernando Paranhos Fleury (Cássio Gabus Mendes). Um pai dedicado e amoroso, que defendia valores morais e a instituição familiar; tudo lavado com o sangue de civis torturados impiedosamente.
O autoritarismo em nome da liberdade do ‘cidadão de bem’ que precisava ser protegido da ameaça do comunismo não se sustenta. O período de tensão política e forças divergentes que culminaram no golpe de 64 nunca chegou a ter um movimento de esquerda coeso e forte a ponto de almejar o poder.
O que muitos tentam impor através do discurso histórico como ações terroristas foram, na verdade, reações ao autoritarismo que tomou o poder, barrando avanços sociais e trabalhando em prol de uma elite econômica que até hoje concentra a maior parte da riqueza do país.
Há alguns anos atrás poderíamos pensar em Batismo de Sangue como um documento histórico obrigatório. Hoje, com o avanço da extrema direita e grupos de manifestantes clamando pela volta do regime militar em carros de som, a obra ganha tom de alerta. Quem sabe as cenas de tortura – inevitavelmente desagradáveis e repugnantes – não sirvam de aviso para a falta de limites daqueles que em nome da ordem instalam um caos silencioso e sangrento.
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