A poesia de Pablo Neruda o levou a ser um expoente da literatura latino-americana. Esse filme do diretor Pablo Larraín mostra um pouco da vida política do escritor, levando ao questionamento se foi o lado poeta que influenciou o político ou vice-versa.
Muito antes do reconhecimento mundial através do prêmio Nobel de literatura, com que foi agraciado em 1971, Neruda foi senador no Chile na década de 1940. As ditaduras militares ainda não haviam sido instauradas e o poeta já tinha que lidar com a perseguição política. Este é o recorte de sua vida retratado no filme, interpretado por Luis Gnecco.
Pensando em um contexto mais amplo, a hegemonia geopolítica era disputada entre uma potência capitalista e outra, que ao menos no discurso, defendia o sistema comunista. A existência de um governo já descaracteriza a teoria comunista, mas ainda assim a disputa da guerra fria seguiu por algumas décadas.
A proximidade geográfica e cultural facilitou a influência dos EUA em toda a América Latina, plantando uma semente de ódio ao pretenso inimigo. O discurso dominante, imposto a qualquer preço, moldou um imaginário sobre comunismo que em nada se assemelha à ideologia marxista. Ao longo dos anos muitos internalizaram a ideia de combate ao inimigo, sem nunca ter chegado perto de um livro de Marx ou de seus estudiosos.
Na contramão dessa aversão ideológica, intelectuais e artistas buscam na essência de uma sociedade mais justa a inspiração e o material de suas obras. Entre personalidades renomadas da América Latina, Neruda se destacou por sua atuação política direta. Não se restringiu ao apoio a políticos, mas foi eleito para o senado e chegou a pleitear a presidência do Chile, abrindo mão da candidatura em nome de Salvador Allende.
Uma oposição crítica e engajada, que proponha alternativas muito melhores à população, é um pesadelo aos que governam colocando o capital acima do social. A saída costuma ser a perseguição política, que no filme fica a cargo do inspetor Óscar Peluchonneau (Gael García Bernal).
A necessidade de capturar Neruda diz muito sobre a necessidade de fabulação em torno da figura do suposto transgressor. Óscar não persegue o poeta real, mas a imagem criada de alguém perigoso que deve ser detido.
Não há nada de errado na fuga de Neruda. A premissa de que ‘quem não deve, não teme’ não condiz com as perseguições políticas, nem com os métodos nada constitucionais daqueles que, em nome da lei e da ordem, torturavam e aplicavam sanções ilegais. Mesmo antes de Pinochet tomar o poder através do golpe militar chileno, Neruda sabia da necessidade de buscar refúgio.
As armas do poeta são as palavras. Na tentativa de se defender sem abrir mão dos ideais políticos que o levaram à clandestinidade, não espalhava bombas ou armadilhas. Seu ataque era deixar um pequeno e silencioso livro, dedicado a Óscar, cuja curiosidade o levava à leitura.
Conhecer o suposto inimigo instiga reflexões e questionamentos. Tudo o que se busca aniquilar através da censura, para que o conteúdo real não desmonte o trabalho de criação do inimigo pelo desconhecido.
Em contrapartida, o que o Estado repressor tem a oferecer além da força desproporcional é um ataque à moral e aos costumes de uma vida boêmia, que não por acaso fica na esfera privada do indivíduo, não tendo influência em sua atuação política.
Atado à rígida hierarquia militar, Óscar deve somente cumprir seu dever sem questionar a legitimidade das ordens. Para ir além de um mero executor, busca através de sua caça o reconhecimento e talvez algo que o tire da mediocridade de um agente repressor. Uma fama que não tem condições de alcançar através do talento, a exemplo de Neruda.
Como se pode comprovar décadas mais tarde, com as ditaduras que assolaram tanto o Chile quanto os países vizinhos, a perseguição aos artistas acontecia por parte daqueles que alegavam visar a destruição do monstro intitulado comunismo, mas na prática pareciam buscar a censura de um estilo de vida.
Em um movimento histórico ondulatório, oscilando entre períodos de maior repressão e outros mais liberais, vemos o quanto valores morais conservadores se expressam de forma capilarizada na sociedade, censurando hábitos considerados promíscuos como uma maneira de manutenção de um sistema excludente.
A morte de Neruda, que aconteceu algumas décadas após os fatos do filme, segue envolta em mistérios. Muitos juram que o poeta foi assassinado pelos militares. É uma possibilidade que, mesmo se for falsa, revela a incompatibilidade de uma vida dedicada à arte contestadora, com um regime totalitário e repressor.
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