terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mutum

Transpor uma obra literária para a linguagem cinematográfica não é tarefa das mais fáceis, que dirá quando se trata de um trabalho de Guimarães Rosa. Pois o filme dirigido por Sandra Kogut é uma boa versão para a vida de Miguilim, narrada por Guimarães em Campo Geral.

Se por um lado os romances deste singular autor são permeados de reflexões interiores, com personagens imersos em pensamentos profundos mesmo quando fazem parte do universo infantil, por outro a diretora soube explorar a ideia de que uma imagem diz mais que mil palavras para dar sua versão visual à muitas partes do filme. É evidente que o livro sempre resulta em uma obra mais profunda e completa, porém este filme é um exemplo que conseguiu transpor de forma satisfatória a essência do romance.

Dois personagens centrais tiveram os nomes alterados, e o resultado não foi muito agradável. Miguilin virou Thiago (interpretado por Thiago da Silva Mariz) e seu irmão Ditinho virou Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso) com a interpretação de ambos chamando a atenção pela qualidade, que frequentemente é sofrível entre atores infantis.

Kogut soube retratar o universo infantil mostrando que para as crianças o mundo é mágico. O sentimento de encanto diante de novidades, o temor de involuntariamente cometer algum pecado e o senso do que é certo e errado – evidente quando Thiago é requisitado pelo tio Terez (Rômulo Braga) para entregar um bilhete para sua mãe – ganha um aspecto visual e mesmo a característica pensativa do garoto, que observa atentamente o mundo para aprender com o que a vida tem a lhe oferecer, é notada no longa. Apesar de muitas reflexões presentes no livro não se adequarem ao filme, as características gerais do garoto foram bem encenadas.

Felipe é o irmão mais velho que no livro serve mais de espelho ao mais novo que vê o primogênito como um exemplo a ser seguido. Na versão filmada os dois garotos mantêm a forte amizade e descobrem juntos a vida, debatem sobre o que é pecado ou permitido, dividindo as responsabilidades e brincadeiras. Tal qual no livro é extremamente angustiante acompanhar a tensão da família depois que Felipe corta o pé e sofre com uma infecção. Este pode ser o elo principal do filme com uma das possíveis críticas sociais contida na obra. A cineasta faz questão de mostrar em dois planos sequência cédulas de dinheiro, e a moeda é o Real, ou seja, apesar de ser uma história escrita no início da década de 60, ainda hoje a região pode ser retratada da mesma forma. Sem escolas para as crianças, sem assistência médica e a dificuldade de locomoção que torna Mutum uma terra distante e isolada.

No filme, como não poderia deixar de ser, aparece o médico que chega a cavalo – nada mais que o próprio Guimarães que se transformou em personagem literário para relatar suas viagens como médico pelo sertão – e descobre que Thiago é míope. Essa é uma das muitas metáforas contidas na obra do escritor, dialogando com a dúvida se Mutum é ou não um lugar bonito. Thiago só sana essa dúvida quando coloca os óculos do médico, indicando que uma das interpretações possíveis é a que Mutum sempre foi bonito, para ser melhor aos olhos de seus próprios moradores faltam alguns detalhes de fora como os óculos, ou remédios para Felipe, ou uma escola para as crianças.

Sandra Kogut fez um belo filme que merece ser visto, depois do livro que é leitura obrigatória.



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