terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sal de Prata

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)


A ideia de trabalhar a produção cinematográfica dentro de um filme não é nova, muitos longas utilizam certa metalinguagem, mostrando os bastidores do cinema nas telas de diversas formas. Em “Sal de Prata” o diretor Carlos Gerbase explora os desdobramentos do relacionamento da economista Cátia (Maria Fernanda Cândido) com o cineasta Veronese (Marcos Breda), depois que este morre e deixa trechos de roteiros incompletos.

O universo do cinema, e das obras de arte em geral, abre espaço para sonhos e devaneios que podem ser inspirados em fatos reais e particularidades da vida do autor, mas isso não é regra, sendo que os fatos descritos, muitas vezes minuciosamente, podem não passar de imaginação. É com esse entrave que a economista se depara quando começa a ler os roteiros que o cineasta, quando vivo, não mostrava para ninguém. Acostumada com um campo de atuação profissional muito mais focado na realidade, sem muito espaço para sonhos em meio às transações financeiras milionárias, Cátia tem grande surpresa ao ver que Veronese recheava suas obras com cenas de sexo.

Ainda que a economista soubesse que seu relacionamento não era um mar de rosas, diante dos roteiros o ciúme era inevitável ao imaginar que as cenas eram inspiradas em outras mulheres, principalmente na bela Cassandra (Camila Pitanga), a atriz favorita de Veronese, que, assim como ocorre com cineastas reais, passou a despertar suspeitas de relacionamento entre as pessoas próximas.

A partir daí o diretor oferece uma série de hipóteses interessantes de conflitos para pensarmos o filme. Além do ciúme póstumo de Cátia, que curiosamente fortalece o relacionamento do casal quando já não há possibilidades devido à morte de Veronese, temos algumas disputas pelos roteiros inacabados que acirram a disputa entre diretores e a gradual inserção de Cátia no sedutor ambiente de filmagens, a partir do momento que a moça supera o impacto de se deparar com histórias até então inimagináveis escritas pelo namorado.

Durante o filme, como é característico em histórias similares, alguns momentos começam a deixar dúvida sobre o que é ficção e o que é realidade na vida das personagens. Este limite incerto é trabalhado propositalmente, explorando as possibilidades ilimitadas que o cinema oferece, porém não é tão incomum nos depararmos com situações cotidianas que parecem fugir da realidade, diálogos diante dos quais somos forçados a interpretar os diversos personagens que inconscientemente criamos – e estas interpretações não são necessariamente pejorativas –, ou mesmo situações para as quais imaginamos caminhos completamente inviáveis, tal qual um roteiro de ficção, apenas pelo deleite de sonhar com o que sabemos que não acontecerá.

Este limite entre real e imaginário que atua diariamente dentro de cada um de nós costuma passar despercebido. O mundo do cinema que Gerbase retrata é capaz de chamar a atenção para a possibilidade do irreal, da expressão dos sonhos que por vezes reprimimos sem perceber, mesmo diante da dura realidade, e dos prazeres que a representação na vida cotidiana pode proporcionar, já que atuar e encarnar personagens na vida “real” é obrigatório para todos, ainda que muitos não tenham consciência disso. A diferença entre as pessoas que atuam de forma deliberada não está relacionada ao caráter ou à sinceridade, mas ao prazer que os personagens da vida real podem proporcionar. Sem medo e sem culpa.



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