Mais que um documentário sobre rodeios, o que a diretora Tatiana Lohmann nos apresenta é um olhar feminino sobre um universo predominantemente masculino. Não se trata das mega produções milionárias em que se transformaram as festas de rodeio – ainda que inevitavelmente este seja o cenário de algumas partes do filme –, mas sim da visão bastante particular de uma cineasta que até então não conhecia os bastidores de uma arena e o quanto estes bastidores ainda mantêm da tradição que deu origem aos espetáculos atuais.
A ideia de domar um animal selvagem acompanha a história da humanidade desde seus primórdios e foi esse desejo, ou mesmo necessidade, que aliado à diversão nas horas vagas daqueles que conduziam o gado em longas jornadas, deu origem à festa realizada no meio rural. Aos poucos o entretenimento passou a ser lucrativo, portanto moldado para atrair cada vez mais público – e mais dinheiro. Em meio à modernização, a profissionalização e mesmo a transformação da festa em esporte, perdura a figura do peão de boiadeiro, visto muitas vezes como guerreiro, herói ou mesmo um mito, que enfrenta sua sina em uma arena repleta de espectadores.
Neste universo situado entre a modernidade e o tradicional Tatiana Lohmann opta por narrar seu trabalho em primeira pessoa, expondo claramente suas intenções e o caminho percorrido ao longo das gravações. O resultado desta escolha é extremamente positivo, pois a diretora expõe também os preconceitos que tinha antes de iniciar o trabalho – sem dúvida presentes em muitos que olham a sinopse do filme – e desconstrói pouco a pouco as barreiras que existiam entre a cineasta e o tema retratado. Assim como ela foi seduzida pelos bastidores do rodeio e seus personagens, sua forma de apresentar o trabalho também seduz a quem assiste e desfaz muitos preconceitos.
O primeiro ponto a ser desconstruído é a imagem de maus tratos aos animais, que recentemente passou a ser a grande polêmica em torno dos rodeios. O filme deixa claro que nenhuma injúria aos animais foi presenciada e que a fiscalização sobre o tratamento dos touros é rígida. É claro que as críticas em relação ao evento são muitas e existem diversos argumentos contra sua realização, mas uma das funções de um documentário é exatamente esclarecer alguns pontos relevantes sobre o tema analisado, sendo que nesta obra em particular é coerente a argumentação de que um touro de rodeio é um animal bastante valorizado neste meio, valendo uma pequena fortuna a seu proprietário, de forma que não seria muito inteligente maltratá-lo. Além disso, como já foi mencionado, o sistema capitalista lapidou os rodeios ao seu interesse, de forma que maus tratos significariam lucros menores.
Voltando o foco do documentário sobre a figura do peão de boiadeiro, Tatiana Lohmann torna marcante sua visão feminina sobre os homens que dedicam suas vidas às montarias. O olhar delicado, complementado pela narrativa suave da voz feminina, contrasta com a imagem do homem rústico, quebrando até mesmo a rigidez de cenas repletas de adrenalina, como o peão se preparando sobre o touro antes de entrar na arena. Até mesmo no machismo histórico, enraizado na figura do peão, a diretora encontra brechas como a forte ligação de um dos peões com sua mãe e a devoção de todos à figura feminina da Virgem Maria.
Fica claro com o desenrolar do filme como o estereótipo do indivíduo que ganha a vida de rodeio em rodeio é construído socialmente e é cercado por uma aura que encanta os que se aproximam. No depoimento dos homens mais velhos notamos um machismo latente, que hoje poderia beirar o cômico, não fossem as consequências trágicas que essa forma de preconceito pode acarretar; e é nesse meio bastante fechado e rígido que os peões nascem e crescem, desenvolvendo a personalidade com base nos discursos que acompanham desde pequenos. Aos poucos esse estereótipo vem mudando e os homens mais novos já não são tão radicais em suas falas, ainda que os resquícios do machismo ainda estejam presentes. Esta mudança também remete ao espetáculo que rompeu as fronteiras da área rural e agora deve servir às grandes massas. Aquela figura retratada pelos velhos homens de rodeio já não venderia tanto.
Aos poucos a figura do peão adaptou-se, mas não perdeu o encanto sobre o rodeio. É este encanto que aos poucos deixa a diretora do filme cada vez mais compenetrada em seu trabalho, trazendo consigo quem assiste ao filme e passa a compreender um pouco mais aqueles homens solitários – tanto na vida errante quanto nos segundos de eternidade sobre o touro –, devotos e que inconscientemente resgatam a figura do herói. Apesar do filme não ter a intenção de abordar aspectos econômicos dos rodeios, é evidente a disparidade da distribuição do lucro dos eventos, já que as arenas lotadas, que ostentam dezenas de logotipos e investem alto na caracterização do espetáculo contrastam com as casas simples daqueles que arriscam suas vidas – com total consciência e desejo – para levar entretenimento ao público. Ganhar um carro ou uma moto pode ser muito para os rapazes de vida simples que chegam ao estrelato relâmpago, mas não chega a fazer grande diferença no lucro que os rodeios promovem às empresas. Parece que o que move os peões é muito mais a paixão que o dinheiro.
Uma frase muito marcante de Tatiana Lohmann estampa os cartazes do filme: “Tem aspectos num homem que uma mulher não entende, só contempla.” A recíproca é verdadeira, pois a delicadeza extraída de um universo tradicionalmente rústico tem a marca feminina que ultrapassa nosso entendimento. Melhor mesmo é contemplar.
Um comentário:
Obrigado, Alexandre! E muito obrigado também por ter ido às exibições no Folha Documenta e na Sociais, e agora ter publicado este texto, que tá muito bom! Já publicamos na página do filme no facebook :)
abraço!
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