terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Tomboy

O filme de Céline Sciamma começa mostrando o cotidiano de uma família francesa que acaba de mudar para um novo bairro. Um casal com duas crianças, recheando o período conturbado de mudança com brincadeiras que deixam a transição mais leve e com uma vida bastante harmônica, daquelas que não parecem ter potencial para virar roteiro de cinema. Ao contrário das aparências, a história que se desenvolve é surpreendente, tocante e suscita muitas reflexões.

Conforme já indica a sinopse e o trailer, portanto não é nenhuma revelação comprometedora, a filha mais velha é Laure (Zoé Héran), que graças aos cabelos curtos e o corpo ainda sem os efeitos dos hormônios pós-puberdade, não têm muitas dificuldades para se passar por Mickaël entre os novos amigos que faz na vizinhança. A partir de então a vida dupla, já que os pais não sabem que a filha se passa por menino, é vivida com muita naturalidade por Laure, talvez muito por conta da falta de contato com padrões sociais que, mesmo sendo absurdos, podem inibir atitudes e até desejos.

É curioso que o tema seja abordado a partir de uma criança. O resultado é um filme leve e por vezes até divertido, apesar da complexidade de algumas situações. A presença da infância deve deixar os mais ignorantes bastante confusos – sobretudo aqueles que não se desvencilham da necessidade de ‘explicar’ tal comportamento com rótulos patéticos como doença, falta de vergonha, falta de religião, etc. E deixa as possibilidades de desdobramentos da história também muito vagas, afinal naquela idade as aspirações de uma pessoa podem ser muito confusas em todos os sentidos, trabalho, estudos e, por que não, sexualidade.

O fato é que Mickaël começa a se enturmar com as demais crianças da vizinhança e seu segredo não é fator determinante para os conflitos que aparecem, pois um grupo de crianças, em qualquer lugar do mundo, terá algumas divergências independentes da sexualidade. Já Laure segue sendo a filha mais velha, brincando com a irmã e agradando aos pais. Tudo muito simples, mas tanto em casa quanto com os amigos, a menina deve manter um segredo que não é exatamente fácil. Sabe que a atitude desagradaria aos pais, portanto esconde a identidade masculina que criou para corresponder às expectativas. Também sabe que ninguém em seu círculo de amizades aceitaria a mudança de gênero sem nenhum tipo de problemas, afinal a infância pode nos remeter à ideia de inocência e pureza, mas sabemos que as crianças podem ser bastante cruéis entre si.

A simplicidade com que a menina vive suas duas personalidades encontra contraste na intolerância das outras pessoas, e o curioso é que esta intolerância não se baseia em quem é Mickaël, mas em quem as outras pessoas esperam que Laure seja. De fato todos os pais geram, ainda que sem perceber, expectativas em relação aos filhos e não há nada de mal nisso, mas é fundamental que estejam conscientes de que muitas, se não todas essas expectativas, não serão cumpridas. Os filhos não nascem com a responsabilidade de corresponder aos pais e devem crescer com apoio para se desenvolverem como indivíduos com vontade própria, desejos e muitas vezes dúvidas em relação às quais os pais deveriam intervir no sentido de auxiliar, não de confundir ainda mais, reagindo muitas vezes com violência quando o comportamento ou os desejos dos filhos diferem muito do esperado.

Ainda que a criança tenha coragem para contrariar a expectativa dos pais e agir como Mickaël fora de casa, todo grupo de pessoas é regida por ações sociais coletivas, mesmo ainda na pré-adolescência, o que influencia muito no comportamento das crianças, sempre tão preso aos padrões e sempre tão hostis em relação a tudo que seja diferente do esperado. Esses padrões são formados em grande parte pelo círculo social em que a criança vive, ou seja, independente de como os pais de Laure tratem o comportamento da filha, seu convívio com a sociedade não será fácil, afinal o repúdio ao que foge do padrão, sobretudo quando falamos sobre sexualidade, é antigo e extremamente sólido – vide as recentes agressões físicas, bancadas evangélicas no governo, etc.

A sensação que fica em várias partes do filme é que apesar da vida não ser nada fácil, por vezes nada agradável e frequentemente desestimulante, Céline Sciamma consegue nos mostrar que, ao menos nas telas, os temas mais difíceis também têm momentos de leveza e recompensa. Esses momentos podem ser bastante raros, mas muitas vezes é o que nos resta.


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