O filme de Cao Hamburger tem como guia a história dos irmãos Villas-Bôas e a empreitada destes na expedição Roncador-Xingu, que culminou com a criação do Parque Nacional do Xingu, há cinquenta anos. Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas (Felipe Camargo, João Miguel e Caio Blat) viajam rumo ao Brasil central e começam a contatar os primeiros índios, para pouco a pouco fazer o intermédio entre duas sociedades bastante distintas.
Por parte dos irmãos vemos uma sensibilidade que deveria ser básica e óbvia, visto que apenas olhavam para os índios como habitantes locais, com valores distintos e estranhamento diante de cada detalhe de uma cultura desconhecida. O que torna essa postura especial é o fato de tantas pessoas – desde o descobrimento do Brasil até hoje em dia, passando pela época retratada – verem os índios com desprezo, como se fossem eles os invasores de terras, que por direito supostamente seriam dos brancos.
Alguns equívocos dos Villas-Bôas foram inevitáveis, sobretudo graças às situações novas e inusitadas, muitas vezes até sem solução, pelas quais tiveram que passar. Mas além da saga dos três irmãos, o filme nos apresenta questões antigas, abertas até hoje e que frequentemente ganham notoriedade. É um papel importante do cinema alertar para diversos pontos, facilitando a compreensão da sociedade e desfazendo preconceitos fortemente enraizados.
Ainda que seja antiga a e óbvia a evidência de que os índios foram os primeiros a chegarem em terras hoje brasileiras e, consequentemente, ocuparam o território colocando em prática um estilo de vida totalmente diferente do que estamos acostumados, é visível no filme como este uso raramente é respeitado. Em linhas gerais ou a posse das terras aparece repentinamente nas mãos de algum latifundiário, visando à lavoura ou criação de gado, ou o estilo de vida indígena é desconsiderado, de forma que a tentativa de conciliação entre as duas sociedades se dá com base na sociedade urbana, espremendo pessoas em pequenos lotes, inviabilizando a caça, pesca e qualquer atividade indígena.
É importante ressaltar que a visão indigenista atual difere da apresentada no filme, já que a tentativa dos Villas-Bôas de manter os índios afastados dos brancos e conservar sua cultura sem a presença de elementos herdados dos colonizadores é inviável. Pelo tanto de adeptos, parece sedutor defender que os índios devem manter os próprios costumes intactos, caso contrário, devem parar de reivindicar seus direitos e adaptar-se ao modo de vida dos brancos. Porém nossa sociedade vive em um caldo cultural formado por elementos heterogêneos. Herdamos dos índios muitos hábitos de vida, costumes e práticas que se somaram a tantos outros elementos culturais distintos, assim como as tribos incorporaram muito de nossos hábitos em seus cotidianos.
Cobrar de tribos indígenas a vida isolada e livre de elementos de nossa sociedade seria cobrar um retrocesso que não impomos aos nossos próprios hábitos. Podemos pensar que o estilo de vida em grandes cidades no início do séc. XX era mais saudável, menos agressivo ao ambiente e viável para a sociedade, porém seria absurdo propor a volta dos mesmos moldes de vida, dado que os desdobramentos históricos não são reversíveis. Os problemas devem ser resolvidos com base em elementos presentes, não com proposta de volta ao passado.
Responsabilizar os índios pelos conflitos atuais pela disputa da terra é fechar os olhos para injustiças históricas, sem que para isso tenhamos que retornar a um passado muito remoto. Vemos em Xingu que na época retratada fazendeiros já invadiam terras do norte do país para construírem suas fortunas através do cultivo de monoculturas, geralmente voltados à exportação, que sequer fornece alimento ao próprio país.
Além disso, militares já impunham sua ignorância por meio de força política e bélica para por em prática vontades insanas, que a despeito dos indígenas visavam à instalação de bases onde nunca foram necessárias, tão pouco úteis. Com o advento da ditadura militar a questão indígena, como todas as outras em território nacional, foi ainda mais negligenciada. O símbolo máximo de desrespeito é apresentado no filme através do início da construção da Rodovia Transamazônica. A obra colocada como imprescindível pelos militares, cujo progresso nada poderia barrar, segue até hoje como uma rota esburacada, muito pouco útil e marcada pelos impactos socioambientais gerados.
A beleza das paisagens exuberantes do Xingu e o trabalho dos irmãos Villas-Bôas diante das insanidades políticas contra os indígenas devem ser reverenciados, porém sem esquecer alguns absurdos que rondam ainda hoje a relação desnecessariamente complicada entre índios e brancos. A quem soa absurdo destinar uma área equivalente à Bélgica aos índios, resta a dúvida: não é mais absurdo concentrar vinte milhões de pessoas no perímetro urbano da grande São Paulo?
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