terça-feira, 17 de abril de 2012

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Para a sorte de quem admira o cinema nacional, mais uma obra literária de Marçal Aquino ganha uma adaptação para as telas. A parceria de sucesso com o diretor Beto Brant é mantida, com o auxílio de Renato Ciasca. As obras de Aquino podem não ser muito fáceis de adaptar, afinal o autor tem amadurecido seu estilo e aprimorado cada vez mais as histórias paralelas que recheiam a narrativa, sempre rica e detalhada. Apesar disso a experiência adquirida ao longo de vários trabalhos com Beto Brant faz com que o roteiro consiga extrair a essência da obra, fazendo uma verdadeira adaptação cinematográfica, transpondo os pontos necessários à trama.

Cauby (Gustavo Machado) continua sendo o narrador, porém sem a voz ativa do livro, apenas com sua presença marcante em todas as cenas, fazendo com que o seu ponto de vista em relação aos fatos seja passado ao público. Diferente do personagem mais intelectualizado do livro, aqui temos uma personalidade mais leve e solta, distante de compromissos mais profundos e interessado em viver de forma mais simples, ainda assim sempre intensa.

Lavínia (Camila Pitanga), como não poderia deixar de ser, mantém todo o esplendor da personagem do livro. Com grande interpretação, que consegue manter toda a intempestividade e complexidade da personagem, cujo humor alterna rapidamente. Somos fisgados pela curiosidade e vontade de conhecer um pouco mais sobre os mistérios que se escondem por trás da bela moça. Seria um casal perfeito, sem grandes laços familiares, em uma cidade distante, com a possibilidade de algo próximo ao ‘felizes para sempre’, que insistem em tentar nos vender. Porém, as histórias de Marçal Aquino retratam muito bem a realidade.

Ernani (Zecarlos Machado) é o pastor que prega seus cultos aos índios locais e, para a insatisfação de Caubi, é casado com Lavínia. A religião do pastor no filme é um pouco mais próxima à realidade local, já que no livro a ideia parece ter sido a continuidade de uma igreja que, desde o descobrimento do Brasil, busca fiéis entre os índios, suprimindo as características locais. O pastor das telas é mais descontraído e visa alertar os moradores sobre o risco da exploração por parte da mineradora e de madeireiros, porém sem abandonar completamente o poder de doutrinação da palavra religiosa.

Um triângulo amoroso bem estruturado e com fortes relações entre os personagens já forneceria material suficiente para um longa, mas Marçal Aquino tem grande facilidade em utilizar problemas sociais locais para engrandecer suas obras, encaixando muito bem uma série de personagens entrelaçados, que dão fluência à obra.

A poesia do título condiz com o relacionamento de Lavínia e Cauby. A magia encantadora de um casal recém-formado é permeada por fotografias artísticas e um estilo de vida que se encaixa perfeitamente com o relacionamento construído. O que chama a atenção em Lavínia, talvez até mais que sua alternância de humor, é sua lealdade em relação ao pastor Ernani. O fato de a moça ter o coração dividido entre duas paixões faz com que sua situação seja bastante real. A fidelidade cobrada pelo tradicional amor romântico é facilmente tentada frente a determinadas situações e a confusão de Lavínia, que reconhece a importância de seus dois amores, fazendo o possível para corresponder a ambos, sem conseguir abrir mão dos benefícios distintos que cada um tem a oferecer, a torna ainda mais distante de uma simples personagem.

A inserção do trio no meio social em que estão revela como ainda é forte a cobrança social em relação ao comportamento individual. Sobretudo quando a população é fortemente influenciada pela igreja e o pastor desta tem sua reputação manchada por um forasteiro descompromissado. Se por um lado a igreja retratada cumpre o interessante papel de alertar e informar a população sobre os problemas causados pela mineradora e pela extração de madeira – ainda que esta não seja uma responsabilidade religiosa – por outro é quase inevitável que a doutrinação religiosa acabe cerceando certas crenças locais. Este é, estruturalmente, o ponto mais distinto entre livro e filme, já que nas telas a igreja de Ernani é menos estereotipada, mesclando diversos elementos para formar a religião. Ainda assim fica evidente que certos problemas, como a tensão gerada pela existência do triângulo amoroso, já são complexos o suficiente sem a intervenção de outras pessoas.

Profundo e poético, ‘Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios’ chama a atenção por vários aspectos. Tem talento de sobra, desde a concepção do livro por Marçal Aquino, passando pela direção competente de Beto Brant e Renato Ciasca, até a atuação impecável dos atores, sobretudo de Camila Pitanga, que definitivamente deveria abandonar as novelas e nos presentear com mais atuações no cinema.


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...