O diretor Fernando Meirelles já havia filmado o longa Domésticas, abordando de forma ficcional e bem humorada o cotidiano dessas profissionais. Agora é Gabriel Mascaro quem dirige o documentário Doméstica, que mesmo abordando muitos pontos em comum com longa anterior – não teria como ser diferente já que o tema é o mesmo – ganha particularidades por contar com filmagens e entrevistas que não foram realizadas pelo diretor.
As câmeras foram entregues a sete jovens, que filmaram o cotidiano da casa, dando ênfase ao que considerassem relevante na relação da família com a empregada doméstica – ou empregado doméstico, em uma das casas. Sem controle sobre o que seria registrado, o diretor montou o filme a partir do material que recebeu, de forma que a maioria das críticas fica nas entrelinhas do filme. Não chegam a ser explícitas, pois se escondem em meio à naturalização da exploração do trabalho doméstico.
É bastante comum entre as famílias a confissão de que não conheciam certos aspectos das profissionais que cuidam do lar, nunca tinham parado para uma conversa na qual a doméstica falasse sobre a própria vida ou sequer tinham visto a realização de determinado serviço.
O enfoque geral das famílias é a tentativa mais comum de tentar suavizar a própria imagem afirmando que a empregada é como se fosse da família, porém as supostas provas para corroborar essa bobagem chegam a ser cômicas. Uma das famílias, judia, chama a empregada para participar de um ritual religioso junto à mesa. De fato é um interessante intercâmbio cultural, que faz com que a empregada aprenda novos costumes, mas será que ela teria liberdade de propor algum rito de sua religião na mesa, ou deve apenas seguir uma religião diferente da sua?
Pelo mesmo caminho uma das adolescentes deixa claro, e com muito orgulho, que a empregada é “praticamente da família”, tanto que se senta à mesa com eles para a refeição (como se isso fosse um grande favor). Porém esse membro da família dorme no quartinho dos fundos, separado da casa, e entre todos os integrantes da família a doméstica é sempre a responsável por preparar a refeição e lavar os pratos.
Chega a ser notável certa inocência na exploração que grita na tela o tempo todo. Quando a patroa se emociona ao falar do bebê da empregada, que novamente foi amparada “como se fosse uma filha”, não percebe que ela foi deixada sozinha no hospital para o parto, pois a patroa não pode ficar (maneira fria de tratar uma filha). A ideia aqui não é insinuar que a mulher deveria tratar a empregada efetivamente como filha, mas esconder-se atrás desse paradigma apenas atenua a relação de exploração.
E a naturalização de certos absurdos não se restringe às telas. Em uma pré-estreia com sala lotada, em São Paulo, a plateia gargalhava com uma cena: a empregada, uma negra bem acima do peso, faz verdadeiras acrobacias para passar pano embaixo do sofá (como pode ser conferido no trailer em 1:20), posteriormente a mesma é filmada dormindo ajoelhada sobre o sofá, arrancando risos da jovem patroa que está filmando e da plateia. Não é um riso inocente de uma cena cômica, mas um riso de alguém que sofre para satisfazer necessidades alheias, de alguém que trabalha à exaustão, chegando a dormir em uma posição extremamente desconfortável, tamanho o cansaço.
A crítica à forma como as empregadas são tratadas não propõe que a solução parta dos patrões, individualmente. É evidente que as domésticas devem ser bem tratadas, mas isso é o básico de uma sociedade que pretende ser civilizada. O fato é que a sociedade brasileira vem forçando a existência dessa relação de trabalho desde seus primórdios. Quando pensamos em trabalhadores de um escritório falamos em direitos trabalhistas, a Folha de São Paulo, ao noticiar a PEC 66/2012 em 27/03/2013 falou em “benefícios do empregado doméstico".
Há quem diga que a exploração não tem fundamento, já que nos últimos anos, com a economia aquecida, as empregadas estão cobrando cada vez mais caro, inviabilizando alguns serviços. De fato, ultimamente essas profissionais estão mais valorizadas, porém é uma condição totalmente vinculada à boa fase da economia, pois o pouco excedente de renda é aplicado em educação particular de baixa qualidade, planos de saúde de fachada, bens supérfluos como celulares de última geração e a estrutura de exploração continua, apenas seguindo caminhos paralelos.
Sem um sistema que tribute grandes fortunas para investir em serviços públicos de qualidade, a ascensão das classes baixas é momentânea e o sonho do oprimido é passar ao lado do opressor, como vimos no documentário, na casa de uma empregada que contrata uma doméstica para a própria casa.
Utilizando dois exemplos lúdicos, também do cinema, no filme Amor vemos o casal de idosos cuidando sozinhos da casa, mesmo com muito dinheiro são eles que preparam as refeições, arrumam a casa e fazem limpeza. Em Elles podemos ver Juliette Binoche interpretando uma profissional elegante e bem sucedida, que além de trabalhar fora ainda cuida da casa e cozinha para um marido patético e machista. Em contrapartida podemos pensar no filme de Gabriel Mascaro mostrando uma das famílias cuja empregada cresceu junto com a patroa, pois sua mãe era empregada da família. Depois de alguns anos os destinos de ambas voltaram a se cruzar, o traço em comum de uma foi seguir a profissão da mãe e da outra, que pode escolher qual caminho seguir, foi manter a exploração do trabalho doméstico.
É curioso notar que certas camadas sociais recorrem ao exemplo de países de primeiro mundo sempre que querem ratificar algum mau exemplo de nossa sociedade, mas fecham os olhos para tudo que seja voltado à equidade social.
Um comentário:
ótima análise.
abs
Pedro Tavares
Postar um comentário