terça-feira, 19 de agosto de 2014

Leva

O título do longa das diretoras Juliana Vicente e Luiza Marques não vem do verbo levar, mas do substantivo, “ajuntamento de pessoas; recrutamento; grupo, coletivo”, conforme indicado no início da obra. Uma leva de sem-teto que luta pelo direito constitucional à moradia.

Pessoalmente eu cresci ouvindo e acreditando que um grupo de pessoas que ocupa um prédio, ainda que abandonado, comete um crime. Deveriam ser punidos por invadir um imóvel que não lhes pertence e se querem de fato um lar, que trabalhem para compra-lo. Tento reduzir minha vergonha de ter acreditado nessas bobagens com o fato de nunca ter sido apresentado aos argumentos em prol dos movimentos sociais.

Esse é o ponto principal do filme, pois dá voz aos excluídos, àqueles que normalmente são retratados pela mídia que representa a especulação imobiliária, criando uma imagem diametralmente oposta à real atuação dos movimentos sociais que se organizam pela busca de moradia.

Ao contrário da desordem e bagunça comumente associada ao MTST e suas subdivisões, com apenas algumas entrevistas de lideranças vemos uma aula de política suficiente para envergonhar a maioria esmagadora daqueles que criticam as ações, mas restringem a própria atividade política ao voto bienal. 

Política, gostando ou não, se faz de forma cotidiana e diária. Os movimentos de ocupação que se organizam no centro de São Paulo – que é o foco do documentário – não fazem outra coisa senão lutar por direitos constitucionais dos quais todos deveríamos ser beneficiados. A diferença é que grande parte da população brasileira restringe sua indignação diante da falta de serviços estatais a comentários preconceituosos, com raízes históricas que ratificam a criminalização da pobreza e são de grande utilidade aos que estão no poder.

Em um país em que a desigualdade social é uma das maiores do mundo, a ilusão de ascendência social faz com que mesmo os que estão economicamente mais próximos dos integrantes de movimentos sociais mostrem repúdio em relação aos seus membros, tentando assim uma proximidade com as classes mais altas, compostas em parte por proprietários de imóveis desocupados, geralmente herdados há várias gerações, que permanecem aguardando uma valorização imobiliária.

“Mas eu trabalhei duro para comprar minha casa e não é justo que algumas pessoas ganhem um apartamento de graça”. O filme desconstrói essa falácia com muita competência, mostrando tanto o equívoco quanto as nuances econômicas que tornam a questão bem mais complexa do que a suposta meritocracia de pagar por um imóvel. A questão que fica implícita no filme e não caberia no documentário é como a sociedade brasileira acaba prejudicada pelo preconceito que estabelece contra os movimentos sociais.

É justo que um trabalhador consiga, depois de tanto esforço, comprar sua sonhada residência. Ainda mais justo é que todos tenham pelo menos a oportunidade de ganhar um salário descente, para sanar suas necessidades imediatas como alimentação, educação, etc., e poupar o suficiente para um dia – ainda nesta encarnação – comprar sua casa própria.

Injustos não são aquelas pessoas que ocupam um prédio abandonado há décadas, fugindo assim das ruas ou de moradias que não oferecem o menor conforto ou mesmo dignidade. Injustos são os poucos proprietários que concentram diversos imóveis, mantendo vários deles fechados por pura especulação. Sequer a famigerada meritocracia pode ser aplicada na maioria dos casos, já que uma sondagem histórica indica que a origem de tantas propriedades é fruto de várias ações, nenhuma relacionada ao trabalho, esforço ou mérito pessoal.

Enquanto a especulação imobiliária atinge negativamente a cidade, com consequências que extrapolam as fronteiras da moradia, os proprietários de imóveis vazios encontram respaldo em uma disputa social desnecessária e maléfica, que insiste em criminalizar as vítimas por um problema.

Um dos desdobramentos de uma sociedade tão heterogênea e desigual é que o discurso oficial da mídia é controlado por pouquíssimas pessoas ricas. Ainda que numericamente os movimentos sociais sejam dominantes, seu discurso não tem espaço. É mais cômodo acreditar na versão simplista de que os errados são os que ocupam uma propriedade ao invés de investigar as origens desta propriedade e os impactos sociais de mantê-la fechada.

Uma alternativa a esta tradição elitista é a produção independente de obras como Leva, para mostrar um lado cuidadosamente ocultado ao longo de todo o desenvolvimento de grandes cidades com São Paulo. Felizmente há tempos mudei meus paradigmas e assisti ao filme ciente da condição dos militantes dos movimentos sem-teto, ainda assim gostaria que de ter tido contato com alguma obra deste tipo durante a adolescência.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...